Design Centrado no Usuário, enquanto pessoas negras nunca foram o centro

Karen Santos
Coletividad
8 min readDec 4, 2019

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No dia 21 de Novembro a convite do Edu Agni, participei do encontro, Consciência Negra no Design, um evento realizado anualmente pela Mergo, com o intuito de reunir potências criativas negras para falar não somente de design, mas também para discutir seu perfil e identificar oportunidades e desafios a superar nesse mercado ainda tão pouco inclusivo.

Fiquei muito pensativa sobre o que levar naquela palestra, queria algo que tivesse ligação com UX e Design no geral, mas que também fizesse conexão com a realidade das pessoas negras e periféricas como eu.

Foi então que comecei a refletir sobre os processos de Design que usamos para as soluções e criações de produtos e serviços e defini o meu tema: Design Centrado no Usuário, enquanto pessoas negras nunca foram o centro.

Quando eu ouvi falar de UX Design e que eu poderia trabalhar com isso eu me apaixonei imediatamente. A ideia de pensar na experiência das pessoas, de criar a partir de outras perspectivas e não só desenhar telas, ou fazer projetos pensando unicamente no lucro, fez com que eu me identificasse, me pareceu muito familiar.

Curso Mergo — Dinâmicas de Design

"O design centrado no usuário é o processo aonde mantemos o foco nas necessidades, desejos e limitações dos usuários durante todo o projeto, a cada tomada de decisão, desde a concepção até o lançamento do produto. " — Edu Agni

Nós negros sempre fomos UX Designers, porque sempre trabalhamos para melhorar a experiência do outro

Quando ouso dizer que os negros sempre foram "UX Designers" é porque nós sempre trabalhamos para melhorar as experiências das outras pessoas, da nossa comunidade, de diferentes povos e em várias gerações de forma consistente.

Pintura do francês Jean-Baptiste Debret de 1826 retrata escravos no Brasil

Lutamos todos os dias para criar um mundo melhor, onde somos vistos, ouvidos ou de forma negativa, repetimos/iteramos o processo de servir, de levar experiências boas e agradáveis para outras pessoas e nem sempre usufruímos dela.

Mas o que isso tem a ver com o processo de Design?

O processo de UX geralmente é dividido e baseado em variadas etapas, mas para dar mais contexto aos meus exemplos eu trouxe: Empatia, Ideação, Definição, Prototipação e Entrega.

Nós passamos por essas fases subconscientemente, quando trabalhamos para eliminar barreiras de diferentes situações da sociedade, situações essas, que nos excluem ou nos incluem de forma precarizada.

Fase I: Empatia

A primeira fase do design da experiência do usuário é entender o problema.
O problema é algo que faz com que os usuários não sejam atendidos.

E muitas das necessidades não atendidas da comunidade negra estão enraizadas no fato de que a sociedade não acredita que merecemos ocupar os espaços.

Essa exclusão profundamente enraizada pode parecer que a mídia se recusa a destacar nossas histórias ou atender as nossas necessidades básicas como seres humanos.

O percurso desumano da comida até sua casa

Workshop UX para Minas Pretas — UX Research

Fizemos um Workshop de UX Research com o UX para Minas Pretas, ministrado pela Diana Fournier, onde o desafio foi aprofundar a pesquisa sobre os entregadores de comida de SP. Além das participantes irem para as ruas, fazer pesquisa de guerrilha, trouxemos dados importantíssimos que legitima quais lugares estamos ocupando na criação de produtos e serviços digitais e físicos.

Dados

65% dos respondentes fazem entregas há até 6 meses;

57% trabalham todos os dias (de segunda a domingo);

50% trabalham até 10 horas;

75% trabalham até 12 horas

25% têm até 19 anos;

75% têm até 27 anos;

40% têm até o ensino fundamental completo;

53% têm até o ensino médio completo;

Quase 30% dos entregadores de aplicativos de comida “beliscam” os pedidos;

Em média, ciclistas entregadores ganham R$ 936 por mês trabalhando 12 horas por dia;

A principal motivação para iniciar a fazer entregas por aplicativo foi que “estava desempregado”;

Os entregadores são homens jovens, na (maioria) negros, e que moram nas periferias de São Paulo.

Fonte: Aliança Bike

Bicicletas compartilhadas, mas não públicas

Pode parecer que nós não temos direito ao lazer, conforto e mobilidade.

Eu abri um dos aplicativos de bikes/patinetes compartilhados, para ver se eu poderia dar uma voltinha aqui na “quebrada” onde moro, uma região periférica. E no fundo, eu já sabia que não iria encontrar, mas fiquei surpresa por confirmar que preciso atravessar a cidade para ter acesso a esse produto.

E ai procurando dados sobre isso, encontrei uma matéria onde Rodrigo Lages Vitório, da Associação Transporte Ativo diz:

“A dinâmica da periferia é pendular. Tem um movimento de pessoas saindo de manhã, esvaziamento durante o dia, e no fim do dia há o retorno destas pessoas através dos meios de transporte.

Então qual é o objetivo, facilitar a locomoção dentro daquela área durante o dia? Este tipo de sistema na periferia não parece ser o mais adequado.

O objetivo desse sistema não é promover o deslocamento da pessoa da periferia até o centro utilizando a bicicleta.

A bicicleta é mais adequada em curtas distâncias".

Ao postar no meu twitter, uma das empresas retornou com o comentário abaixo:

Pode parecer que não precisamos nos locomover de forma confortável e segura.

Outro exemplo muito alarmante que temos é a restrição que aplicativos vêm colocando para motorista em regiões periféricas.

Por que estamos ocupando lugares de servidão e não estamos sendo nicho dessas empresas, personas, usuários finais?
Por que eu não me vejo sendo o foco dos produtos digitais, uma vez que tenho grande potencial para ser consumidora real?
Por que pessoas como eu, não são maioria a frente dessas soluções, criando, desenhando, pesquisando, testando?
Por que estamos apenas na ponta mais precarizada desses produtos?

"Se você tomou seu café na padaria, chegou no trabalho de taxi e encontrou a sua mesa limpinha é porque a periferia acordou primeiro!"

Fase II: Ideação

É quando determinamos as necessidades, desejos e comportamentos dos usuários. Isso pode ser pesquisas, entrevistas, mapa conceitual, personas, mapa de empatia, jornada do usuário e outras técnicas.

Os negros conduzem essas técnicas o tempo todo. Quando testemunhamos ou experimentamos uma prática de exclusão, racismo, machismo e homofobia, realizamos pesquisas, através das nossas personas, analisamos o nosso mapa de empatia. Ligamos ou enviamos uma mensagem para nossos amigos, ou membros da família e perguntamos se eles também têm, ou já tiveram experiências parecidas e inconscientemente estamos criando uma contagem. Começamos a reunir números quantitativos e rígidos sobre o problema. Em algum momento, nossa pesquisa se transforma em uma entrevista qualitativa, a nossa jornada de usuário diante de uma experiência ruim.

Fase III: Definição

A definição é onde os Designers tiram o que aprenderam de suas pesquisas e identificam os principais problemas. A definição pode vir na forma de mapeamento de afinidade.

Ux para Minas Pretas Mulheres e DInheiro — Nubank

Em todos os encontros do UX para Minas Pretas, temos abraços, choro e momentos de muita sensibilidade, pois ali lidamos com as nossas afinidades, entendemos que situações que eu sendo mulher negra passo, é muito parecida com situações de outras mulheres negras naquele espaço.

Meu primeiro curso na Mergo — UX Weekend 2018

Quando você é um dos únicos alunos negro em uma sala de aula e se aproxima da outra pessoa negra que está naquele lugar e vocês conversam, vocês identificam que existe algo em comum e que nem tudo está certo.

Primeiro evento do Ux para Minas Pretas no Nubank — Abril 2019

Ou quando nos reunimos e levamos 150 mulheres negras no Nubank para falar de UX, um público que é maioria nesse evento, mas não nas empresas, entendemos que existe um problema aqui e ele não é pequeno.

À medida que encontramos semelhanças em nossas experiências, emergimos com uma compreensão dos problemas centrais.

Fase IV: Prototipação

Com uma maior compreensão dos principais problemas, os designers começam a conceber soluções. Através de wireframes, maquetes ou protótipos. Com isso avaliando o produto de um concorrente e o que ele oferece a seus usuários.

Nós negros, conduzimos análises competitivas cada vez que percebemos que esses produtos e serviços beneficiaram apenas um grupo de pessoas.

Com isso começamos a pensar em como algumas dessas práticas também poderiam apoiar a comunidade negra.

Estamos fazendo perguntas como:

“Imagine se os negros também tivessem acesso ao espaço X?”

“Imagine se os negros também pudessem fazer tal coisa?”

Fase V: Implementar

Depois de todo o mapeamento, prototipação e teste, os designers lançam o produto final.

É aqui que nós negros começamos a realmente visualizar como seria a criação de espaço. Começamos a entender que as empresas nem sempre se concentram na experiência negra.

As empresas colocam o produto final na rua e dormem tranquilas sabendo que ela criou algo incrível para nós negros, pessoas com deficiência, mães, LGBTQIA+ e outros grupos minorizados?

Eu não acredito nisso, mas tive uma escolha, de tentar mudar esse cenário a partir das mulheres negras que é o que sou e é a luta que escolhi lutar, dentro de uma área que traz muito o termo "empatia", mas que não cria para mim e para os meus semelhantes, que não me considera consumidora, que acha que eu não sou usuária, logo, eu não preciso estar no centro.

Enfim, o encontro foi maravilhoso. Além da minha fala, tivemos a honra de ouvir a Bianca Fidelix e a Isabella Barbosa, ambas UX no Santander e a incrível Jucrizo Designer de Serviços na Livework Brasil. Elas compartilharam suas vivências e sonhos como mulheres negras no Design, os participantes também contaram suas histórias do dia a dia e juntos fizemos dessa noite, um momento de muito aprendizado!

Encontro Consciência Negra no Design — Mergo e Thoughtworks

Para não me alongar tanto, no próximo texto trago os resultados do UX para Minas Pretas em 9 meses de vida, detalhes sobre como temos colocados mais mulheres negras no mercado para atuar na linha de frente dos produtos e serviços com foco em UX Design.

Enquanto isso, você pode dar um pulo no nosso perfil aqui no Medium e ler o texto: UX para Minas Pretas: uma iniciativa para formar profissionais do futuro

Obrigada por ter lido!

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