As cúmplices

Crônica

Giovana Valadares
Notícias de um tempo ausente
3 min readAug 27, 2020

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Foto por Mona Eendra, obtida no Unsplash

Vó Nízia se tornou mãe ainda bem jovem, com 20 anos. Sua filha, Eliane, também colocou outra pessoa no mundo com a mesma idade: Ariely, ou como era chamada pela vó, Lili. Para vó Nízia ela sempre foi Lili, e não aquela que carregava responsabilidades, problemas, pesos e traumas. Era muito mais simples.

“Eu não tinha que me justificar nem me explicar, nossa relação era
bastante sincera. Meus pais são meio controladores, então não deixavam a gente passar muito tempo com ela e eu fugia, ia escondido pra casa dela, desde nova. E a gente criou essa cumplicidade, nós éramos muito cúmplices uma da outra”, conta Ariely.

As duas tinham transtorno bipolar. Vó Nízia era vista como uma pessoa
difícil, sofria com as crises e as pessoas não entendiam direito. “Ela sabia que sempre podia contar comigo. Depois acabei descobrindo que eu também tinha esse transtorno e, agora, sem minha vó aqui, começo a entender melhor o porquê dela se recolher por um grande período de tempo, enquanto seus momentos de alegria e euforia eram tão bons mas tão curtos. Tudo isso se relaciona a períodos longos de depressão e períodos curtos de mania que a vida do bipolar traz.”

Diziam que ela tinha um gênio forte, que era ruim, grosseira. “Se fosse um
homem fazendo isso, ninguém ia falar nada. Mas por ela ser uma mulher forte, ela era vista como vilã.” Lembrou de um momento onde sua avó de certa forma a “assumiu”, a aceitando como bissexual antes de ela mesma se aceitar. Virou para ela um dia, em que devia ter uns 16 anos, e falou:

- Lili, se um dia você quiser trazer uma namorada aqui tá tudo bem viu, pode trazer, eu te amo de qualquer jeito e vou amar ela também.

Ela ainda estava começando a ficar com meninas e estranhou um pouco.
Depois, com o tempo, viu que para sua vó era algo tranquilo, que ela não deixaria de ser a mesma neta de sempre só porque tinha uma orientação sexual diferente.

Assim como vó Zulmira, da “Última ligação”, vó Nízia também era muito
vaidosa. Amava cuidar de suas unhas. “Eu fazia minhas unhas com 6, 7 anos, porque eu queria ter as unhas da minha vó, e ela me ajudava. Me dava bronca quando eu sentava lá sem estar com as unhas feitas, e quando eu comprava batons, ela testava. Queria que eu comprasse mais um batom pra ela. Ela não saía de casa sem salto, descoloria o próprio cabelo, fazia hidratação, máscara de argila comigo.”

Por isso, Ariely tem um autocuidado no seu dia a dia até hoje. Da vaidade como um momento de atenção consigo mesma, amor próprio: “Isso que eu aprendi com minha vó, algo que eu acho muito ancestral, em diversas sociedades, de ver mulheres fazendo isso, que é sentar com outras mulheres e ter esse cuidado pessoal. Tem umas tribos que as mulheres trançam os cabelos umas das outras, um cuidado próprio, de trocar desabafos, segredos, confidências e conselhos.”

Ela quebrava um pouco o “estereótipo” das avós, “que você chega lá e tem mil comidas, de fazer docinhos, coisas assim. Odiava cozinhar e usava roupas decotadas. Aproveitou a vida e não tinha nem um pouco de vergonha ou receio de ser quem ela era”.

Vó Nízia se foi recentemente, de um jeito muito brusco. Partiu com 63 anos.

“E eu procuro pensar nela nos momentos que eu podia desabafar com ela, do apoio incondicional que me dava também. Realmente rezar, e pedir proteção, pedir ajuda e força, pois é isso que ela representa pra mim, uma mulher forte, uma mulher que protegia todos que gostava. Ela gostava de poucos, mas os que gostava era com muita intensidade”, conta emocionada.

Uma música veio na minha cabeça, sobre a intensidade. “Dona
Cila”, de Maria Gadú, começa com os dizeres “De todo o amor que eu tenho, metade foi tu que me deu, salvando minh’alma da vida…”

E Ariely prova que é isso mesmo.

“Às vezes a gente tem medo de ser intenso né, de demonstrar tanto amor quanto raiva, quanto desprezo, quanto carinho, e minha vó nunca teve medo de demonstrar nada. Acho que aprendi e aprendo muito com ela. Está tudo bem você demonstrar que não gosta daquilo, está tudo bem você encher de amor quem você ama, está tudo bem você se colocar como prioridade e não ficar aceitando aquilo que te incomoda.”

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