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14 min readMay 12, 2017

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Todo videogame possui uma linguagem. Ela é expressada pela combinação das imagens que estão na tela da tv com o que os botões fazem; é uma chave para que possamos, bem, interagir, comunicar, expressar o que há naquele mundo dentro de um jogo. Às vezes é bem óbvio, chega um momento em que a gente liga um videogame e já sabemos; o ◯ faz uma coisa, o X faz outra, o □ faz outra e o △ também. Aí essas coisas vão se repetindo e, pouco a pouco, percebemos que não é que um jogo tenha uma linguagem, é que a linguagem dos videogames existe. E é estranho, também, pois isso só funciona porque a gente pensa e imagina igual um jogo. Tire um segundo para pensar em um parente seu que nunca tocou num videogame tentando fazer a mesma coisa.

É bom estar acostumado a essa linguagem, mas, pra falar a verdade, gosto é de aprender novas.

ICO é um jogo interessantíssimo, sobre um garoto que foi amaldiçoado e condenado a passar a vida dele trancado dentro de um castelo, numa terra proibida. Lá ele encontra uma bela garota, de vestido branco, indefesa e presa numa gaiola. A partir desse momento ele decide que seu objetivo é sair daquele castelo junto com a garota. Uma coisa legal que o jogo faz logo no começo é estabelecer que os dois falam línguas diferentes, então quando ICO (vamos chamar o garoto de ICO) fala, as legendas saem normais, em inglês, porque afinal estamos jogando com ele, então nada mais justo que entendê-lo; quando Yorda, a garota, fala, as legendas são símbolos estranhos que não fazem sentido. Como eles vão sair dali, se não conseguem se comunicar? Apertando botões.

Quando Yorda está longe, você aperta R1 para emitir um som, que a chama. Quando ela está perto, o mesmo R1 segura sua mão. Isso é importante, pois são as duas coisas que você mais vai fazer com ela; é o suficiente. É incrível pensar que, com tanta simplicidade, os dois não só conseguiram se virar no castelo, resolvendo todo tipo de quebra-cabeça engenhoso, como também criaram um laço forte só através de barulhos e segurando a mão um do outro. Tem umas partes em que você precisa pular buracos, igual qualquer jogo de plataforma, exceto que, depois que você pula, Yorda também precisa pular, e aí vem a parte legal: quando você aperta R1 perto do buraco que ela vai saltar, ICO estende a mão pra Yorda num gesto de “não se preocupe, vai ficar tudo bem, confia que eu seguro você” e ela, depois de hesitar um pouco, pula. Somente nessa cena o jogo comunicou medo, confiança e depois de tudo alívio (eu gosto de falar que são botões, mas lá no fundo sei que isso não é a linguagem dos botões e sim a linguagem do amor[!]), e o jogo todo é isso: dois bonecos que não conseguem conversar direito se virando pra dar tudo certo. A melhor parte é que você também tem que aprender a se acostumar com o jeito que o jogo se comporta. O botão de pular não é normal, todo o jeito de como ICO se move, bate e interage com as coisas é meio alienante de como videogames são. Não só em seus botões, mas as animações e coisas assim não funcionam do modo considerado “fluído”, sendo mais lentas e duras. Isso é bom. Jogos não são feitos para se acostumarem a nós, e sim o contrário. Nós temos que aprender o modo como ICO se comporta com o mundo a sua volta. É o jeito que ICO funciona e não precisa ser assim em mais nenhum outro videogame.

É normal a linguagem dos jogos existirem, porque começamos a pensar como um jogo. Após os primeiros passos, após nos acostumarmos com os significados, vem a parte em que chegamos no nível de interação de “pensar como o jogo”, em que ficam evidentes não só as idiossincrasias, mas também as semelhanças entre o jeito de cada jogo usar sua língua para comunicar-se com o jogador. Aí começa a fazer sentido características como as de ICO, em que “ataque” significa ação desesperada ou apertar “R1” para “segurar alguma coisa”, mesmo que não nos outros jogos.

(A primeira vez que joguei ICO, anos depois de ter jogado SOTC, achava que precisava ficar segurando R1 para que ele pudesse se manter pendurado em plataformas.)

Existe uma pessoa, mais especificamente um diretor/autor no meio dos videogames, que merece muito reconhecimento (mais do que possui): Goichi Suda, ou Suda51 (em japonês cinco é Go e um é Ichi, formando Goichi, daí o 51). Suda, desde os primórdios de sua carreira, depois de se divertir com jogos de Wrestling (uma paixão dele), cria obras bem curiosas. Você pode até traçar algum paralelo entre os jogos feitos por ele, mas chegar a algum deles sem saber nada sobre, especialmente se forem uma parte da KILL THE PAST, é pedir pra ficar confuso. Mas tudo bem, é normal, o primeiro contato é estranho porque é uma estética nova, geralmente carregada de coisas que fazem sentido só dentro delas mesmas ou, para falar a verdade, não estão nem aí com o que são os outros jogos. Um exemplo de ‘não estar nem aí’: em um episódio de Flower, Sun & Rain, você encontra um piá na entrada do hotel, jogando futebol e, bem na hora em que você aparece, ele chuta a bola numa bicuda que te atinge com tudo. Você, transtornado com a atitude, vai xingar a criança. Já preparado com os mais diversos xingamentos que podem ser proferidos a alguém com menos de treze anos, inicia a discussão. Mas ele é terrível! Começa a falar coisas muito feias! E essas coisas feias são as várias contradições que o jogo possui. “Onde já viu? Um cara de terno num hotel tropical. E, pelo amor de Deus, que coisa idiota você ter que fazer a mesma coisa em todos os capítulos. Por que diabos dar nome para uma maleta?” e mais atrocidades. Então ele sai correndo. A fase consiste em você correndo atrás dele e passando nervoso com todas as incongruências sendo apontadas. Quando você consegue pegar o diabinho, o episódio acaba. Não tem recompensa, punch-line, ou lição. É só pra ver se você aguenta ir até o final.

Bom, killer7 é um jogo onde você controla killer7, um grupo de assassinos que foi criado para destruir um grupo terrorista chamado Heaven Smiles. Esse grupo de assassinos é uma pessoa, só que possui 7 (eu gosto de digitar 7, meu número da sorte) personalidades diferentes. Tem um cego, um lutador de wrestling, uma femme fatale, um surdo, um ladrão, o dan (não sei descrevê-lo de outro modo que não seja “o dan”) e o “personagem principal”. Ah! Tem mais um, outra hora comento dele. A história acontece num mundo onde parece que só existem Estados Unidos e Japão (Ocidente e Oriente), e eles estavam até que em paz, mas aí os Heaven Smiles veio e começou a explodir tudo. Isso meio que tá estourando um conflito entre EUA e JP, então durante o jogo acontece muita briga de partidos políticos (fica mais fácil de acompanhar depois de jogar Silver Case [apesar de ainda ser extremamente denso e confuso]) por baixo dos panos, enquanto estamos tentando matar o Heaven Smiles. É quase certeza que o Partido Conservador tá planejando algo contra o Partido Liberal e isso vai acabar, sei lá, explodindo o Japão inteiro. Ops.

Gosto dessa parte sobre os partidos, aliás. É estranho um joguinho que fale de conflito desse modo e nem sei se é tão importante assim. Também não sei se consigo escrever alguma coisa aqui que faça jus ao quão bom é acompanhar essa rixa, principalmente por não existirem as palavras certas para descrever TUDO na minha cabeça. Posso resumir. Toda essa coisa é um xadrez jogado pelos deuses durante a eternidade. Sempre vai existir conflito, sempre vão existir os dois lados e sempre eles vão estar um contra o outro, dentro desses dois lados vão surgir mais lados que também vão acabar entrando em conflito e provavelmente tem alguém olhando tudo isso acontecer e dando risada. Essas coisas estão e vão continuar acontecendo, independente do que você faça.

Dias atrás li um texto num canto da internet em que o cara falava que killer7 era um jogo inteiro baseado numa justaposição entre ocidente/oriente. De acordo com ele, os controles e reações que o jogo despertava no jogador dependiam do lado do mundo que ele era. Se ele fosse ocidental, ele iria reagir negativamente aos controles por causa dum instinto talvez americano de querer liberdade em tudo e quando não consegue o que quer se irrita. Já no lado oriental, eles iriam se adaptar muito bem à falta de controle por estarem acostumados a coisas que são projetadas através de um caminho pré-determinado, porém iriam se irritar muito com o fato dele se tornar um jogo em primeira pessoa. Acho interessante o pensamento tangencial da pessoa que chegou nisso — principalmente quando ele diz que essas partes do jogo foram feitas para deixar públicos específicos putos da cara — mas não concordo com ele, não. O maior problema é achar que killer7 foi feito para ser alguma coisa que já existia, ou uma reação a elas. killer7 foi feito para ser killer7 e só. Ele é um conjunto de conceitos que acabam, pois é, irritando pessoas, como qualquer coisa inteiramente nova. A associação dos conflitos com abstrações mecânicas talvez seja normal, considerando que o jogo é uma pilha de contrastes (as duas pessoas que representam os dois lados, [eu falei, né? que tinha mais uma personalidade? ela é um velho de cadeira de rodas, que representa um dos lados no jogo de xadrez, uma figura divina talvez] os heaven smiles e as pessoas, o fato de poder escolher um lado no final, as duas personalidades da samantha, etc, etc). Só que ele não é só as coisas que irritam os outros, a parte principal do jogo não é o confronto entre os dois lados do mundo ~~ mas ele está ali, o xadrez no fundo ~~, na verdade, k7 é a junção de todas essas coisas; ele não tenta ser uma fatia de seu mundo, killer7 É o ponto de convergência entre as fatias.

Nas partes finais de cada fase, você tem que entregar balas (de arma, mesmo) especiais que são obtidas resolvendo quebra-cabeças para um atendente, em troca de um ticket. Esse ticket serve para você entrar no fim e enfrentar os chefes. A primeira coisa que acontece quando você passa pela porta do ticket é ter de subir uma escadaria preta com algumas luzes em volta enquanto toca uma musiquinha de balada e depois disso já é o sub-chefe, geralmente um tipo diferente de Heaven Smile dos que você já enfrentou antes, exigindo uma tática nova (na maior parte do tempo essas lutas ocorrem em lugares MUITO estreitos, então a parte legal é que mesmo esses Heaven Smile aparecendo depois, a parte da tática não envolve só o modo de matá-lo como também o modo de se comportar no cenário). A dica de como matar é dada pelo espírito de um menino, se comunicando através de um “enigma”, assim como em diversos outros diálogos.

Entre a batalha com o Novo-Heaven-Smile e a escadaria-baladeira tem mais uma coisa: o coliseu. Ele é grande, parece mais um estacionamento, tem várias portas e cada uma leva para uma dessas partes do jogo; ou seja, sempre se passa por lá no final das fases. Não existe nem a mínima possibilidade de se adiantar nisso, entrando numa porta diferente da que vai avançar a fase atual e acredite, você VAI querer saber o que tem em pelo menos uma das portas. Aí que entra a genialidade dos controles, você não se move normalmente, na verdade você segura A (ou qualquer botão que seja na versão de ps2) para andar num caminho pré-determinado pelo jogo, não existe movimento pelo direcional — apenas virar o personagem para frente ou para trás. Esse talvez seja o primeiro choque de alguém que vai jogar k7 e está… bem, acostumado com videogames. Outra coisa, o botão de recarregar a arma é no direcional direito, onde geralmente se controla a câmera (não se controla a câmera em k7) — aí acontece muito no começo de você pensar em ajustar a câmera e aparecer o personagem recarregando a arma — e para atirar, então! é necessário executar muitas ações: mudar a visão para primeira pessoa, “escanear” o cenário para enxergar os Heaven Smiles, mirar, de preferência no ponto fraco deles, aí atirar. Tudo isso naqueles controles estranhos. É impossível terminar k7 sem dominar esses comandos alienantes. É impossível também passar pelo menos 2 horas nele sem aprender alguma coisa. Bizarro, não faz sentido nenhum fora de si, difícil de aprender e extremamente bom de dominar. Aprender a jogar k7 é realmente como entrar em contato com uma linguagem nova, uma estética fora de tudo e mesmo que essa gramática não faça sentido com videogames, dane-se, faz sentido em k7.

(Enquanto eu tava fazendo o texto parei pra pensar na seguinte ideia: imagine se um conceito igual k7 se estendesse para todos os videogames até chegar num ponto onde cada jogo viria com um controle diferente e teríamos que nos adaptar a todos os jogos novos. Depois que eu parei para pensar que seria muito legal esse mundo eu também pensei que alguns jogos, como o desse texto, não seriam TÃO especiais.)

O mais estranho é que a estética e os botões parecem seguir um padrão, lá na primeira missão, que dá pra passar umas boas horas brincando até se adaptar: só que aí você passa da primeira área, entende um dos bichos mais fortes de lá e porque você recebeu uma “dica” e, quem sabe, até compreende como a morte funciona no jogo. Aí quando você chega no final da fase, passa pela primeira escadaria-baladeira e tá todo pimposo entendido dos inimigos do jogo e das mudanças e o chefe da fase aparece e antes disso apareceu mais uma personalidade e… hã? Não era assim até dez minutos atrás. Dizer que ele surpreende desse modo o tempo todo é difícil, mas a sensação de se acostumar às coisas talvez seja melhor ainda que ficar surpreso; o jogo vai se construindo, só é importante que se confie nele, as mudanças ainda ocorrem, mas fazem tanta parte da natureza interna daquele universo que nem dá pra notar que é uma mudança.

Aliás, o jogo não tem interface não, na verdade só tem o jogo e uma bússola na tela (não é só uma bússola [eu não vou falar o que é]), nenhum medidor de vida para você, para os inimigos, nenhum número indicando munição. Quando você morre e volta para a sala onde salva o jogo, tem uma tv nela e essa tv serve para escolher outra das personalidades, já que uma morreu — na tv tem o canal representando qual das personalidades tá selecionada, o nome e o medidor de vida que é igual volume de tv antiga. Tem um jeito de revivê-las e é tão bom que não vou nem comentar aqui. Tudo isso é diegético, incrível e talvez nem faça tanta diferença assim, mas, puta merda, como é bom ver um jogo que se preocupa em fazer tudo o que é pra ser visual ser puramente visual, você não tem uma interface no jogo mas tem uma interface dentro da tv jogo, afinal, faz sentido uma tv ter menu e interface dentro dela. E os inimigos morrendo? Vai partindo eles em pedaços, tentando acertar o ponto fraco que mata direto (por sinal, eles se desintegram quando você os mata) ou, no pior dos casos, conta quantos tiros são necessários para matar um Heaven Smile.

(Numa parte do FSR você tem que fazer umas tarefas que envolvem conversar com personagem numa área x, ir fazer alguma coisa relacionada ao puzzle y, e depois retornar para uma das primeiras pessoas que você encontra no episódio. Toda vez que você fala com ele, a próxima parte do episódio continua. O que ele diz para você é que uma das flags* foi sinalizada e você prossegue. O jogo já nem liga mais se você percebeu que ele só um monte de códigos de programação, tamanho o nível da proximidade. Legal é que no killer7 tem uma coisa parecida, porém, bom, não dá pra dizer que é menos na cara que em FSR mas não tem ninguém gritando pra você “olha, isso aqui é um código!”. Enquanto o jogo está pausado, ele fica mostrando um código no cantinho da tela, bem discreto. Mas não tem nada falando pra você o que aquilo ali é, nem uma tentativa de demonstrar auto-consciência a partir disso. Para se acostumar é rápido, dá até para pensar que faz parte da estética do menu isso — vai saber, alguém pode ter desintegrado ele, hein?)

Tem esse vídeo sobre Final Fantasy XV em que se fala sobre concessões que fazemos quando estamos jogando, como a todo momento aquele mundo está criando regras e limites para ter certeza de que vamos experienciar a obra dentro das intenções de seus criadores. Bom, e quando a gente quebra algum desses limites? No vídeo, ela entrou em áreas que estavam bloqueadas pelo jogo e dentro delas encontrou uma caverna, avançando ela encontrou o Titan segurando toda a estrutura daquele lugar — e aí teve toda a metáfora sobre como aquilo é o jogo e ele está tentando segurar o mundo para nada cair no lugar errado. Ver um jogo sem as barreiras que ele cria talvez seja conhecê-lo “de verdade”, sem esconder nada de você, um contato extremamente honesto de obra-pessoa. Era mais ou menos isso que aquele outro jogo do Suda, Flower Sun & Rain, fazia. Todos os episódios que estão relacionados ao piá que gosta de mostrar que o jogo é idiota e mais algumas cenas que gritam para você que aquilo ali é só um jogo estão quebrando os limites e concessões que foram criados para o primeiro contato com ele — e nem é sobre isso o jogo, ele não está tentando fazer um comentário direcionado a alguma obra ou estrutura, só é isso mesmo. A proeza de FSR é não entrar neste caminho, não tentar ser irônico e quando o jogo vê que você já aceitou suas peculiaridades, ele acaba voltando ao normal (normal?).

Isso tudo do FSR é muito interessante e junto com o vídeo me fez pensar muito sobre jogos num geral. Mas, para falar a verdade, eu gosto do esforço de uma obra pra me enganar, não que eu seja desses que vive falando de Suspensão De Descrença ou Imersão, é só que putz, é tão bonito quando um jogo faz uma coisa estilo a tv do killer7 ou o save no sofá do ICO, é linguagem, não só da mídia, mas da obra. E é maravilhoso quando é assim, quando a relação não é do jogo se adaptar ao jogador e sim do jogador ao jogo. Regras são boas e limitações podem ser também, ainda mais quando são graças a elas um conjunto tão conciso quanto killer7 foi concebido. FSR tem seu foco em quebrar nossas concessões antes de reconstruí-las para contar uma história. Killer7 desintegra todas as concessões existentes em partículas vermelhas só para construir novas concessões.

*flag representa, bem, um semáforo para ajudar com partes de códigos em programação que necessitam de uma condição para acontecerem. Exemplo: se você quer deixar o jogo parado até ele atingir o estado “conversou com NPC y”, você pode fazer uma flag para impedir ele de avançar até que isso aconteça, aí quando finalmente ocorrer o “conversou com NPC y” a flag vai ter o valor alterado e, se o jogo for FSR, capaz que tenha alguém para te avisar disso.

-Lucas Rafael Andrade

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