SOBRE O ROLAR DOS DADOS

Mandé Malé
Nulitania
Published in
7 min readSep 3, 2019

Existe uma tendência na cena OSR de buscar negar os testes de atributos, tentar arrancá-los do jogo de alguma forma. Recuar para o ponto do desenvolvimento dos nossos jogos onde eles não existiam. É um direito? Sim. Funcional? Sim. Divertido? Sim. Mas esta é uma ideia que talvez não serviria a nossa proposta, infelizmente.

Queremos buscar o terror. E terror baseado na arbitragem de um mestre imparcial que define quem erra ou acerta em juízo, por comparação das capacidades do personagem, pode não ter tanto valor em um mundo dominado pelo absurdo social e arbitrariedade. Nos é bem mais assustador o caos repentino e o absurdo do que qualquer forma de racionalidade. Nulitânia, como temos dito não é um jogo sobre a justiça, equilíbrio, parcimônia, e sim sobre sua ausência.

Em um mundo como este , o caos e o desastre que o 1 no dado traz tem um lugar reservado. Como são os testes de atributo em Nulitânia? Iremos explicar abaixo.

O FATOR DE RISCO E TESTES DE ATRIBUTO

Em Nulitânia o Jogador é quem pede o Teste. Sempre ele. Cada Teste é uma aposta entre o Jogador e o Mestre. Caso o Jogador vença, um obstáculo é superado por ele. Caso o Jogador perca, o ele sofre um revés que impulsiona a estória.

  1. O Jogador quando propõe o teste de atributo ao mestre cria os dois cenários possíveis: Como a estória avança em seu sucesso e como avança em seu fracasso. O Mestre aceita ou não a aposta, podendo simplesmente negar o teste. Caso aceite, ele define uma dificuldade, um número-alvo a ser batido em na rolagem de um D20: 10 (Fácil, 55% de chance ) 15(Moderada, 30%) ou 20 (Difícil, 5%).
  2. Em Nuliânia usamos atributos onde a média é 0. Personagens iniciais geralmente tem atributos de -3 a +3. O Teste é vencido com uma rolagem de Dado+atributo, tirando igual ou maior à dificuldade.
  3. Os Atributos são os seis do padrão conhecido da OSR. Não há um sistema de perícias, a não ser para uma única classe específica: O Especialista. O jogador do Especialista inventa sua própria coleção de habilidades, e não as escolhe em uma lista. Isto é apresentado no artigo sobre a classe.
  4. Saving Throws /Salvaguardas existem como o normal, mas baseadas na competência dos atributos ao invés de classes e níveis (vide abaixo). São o único tipo de teste de atributo que o mestre costuma pedir.
  5. Risco: O Maior problema do jogador pedir pra fazer Testes é o Risco. A cada sessão de Nulitânia o Mestre coloca em cima da mesa um Dado Vermelho que começa em 1. Com o passar da sessão, ele vai subindo seu valor: 2 quando os jogadores entram em uma masmorra. 3 quando eles são perseguidos pela polícia. 4 quando eles estão cercados por canibais dos esgotos… O Risco é uma medida caótica e abstrata do perigo. Quando em qualquer teste o D20 do jogador cai abaixo do fator de risco, chamamos isso de Risco Engatilhado, e algo desastrosamente perigoso acontecerá no decorrer da cena.
  6. O Risco engatilhado é sempre algo possível e plausível, mas sempre de certa forma um absurdo: Durante a barganha, dois homens chegam numa moto, armados, para assaltar o mercador. Quando se escondendo do exército inimigo, alguém da sua tropa espirra. Distraído folheando o livro-ata da fábrica, um vigia chega e tenta rendê-lo... e por aí vai.
  7. O Risco engatilhado não está preso a afetar apenas ao jogador que o desencadeou nem ao momento exato onde esse jogador falha. Quando o jogador tira um valor 1, ou 2, ou qualquer valor que o desate, o evento risco pode cair sobre outro personagem-protagonista, um NPC aliado, todo o grupo, ou mesmo todo o cenário. Um incêndio? Um tiro danificando um equipamento importante? A Alça da arca do tesouro arrebentando e derrubando todo o ouro no chão? Um encontro Aleatório? O Mestre pode libertar toda sua criatividade diabólica a cada evento de risco. Ele pode desencadear esse risco até dez minutos depois da rolagem que o engatilhar, o que pode ser usado para construir um suspense.
  8. Os jogadores podem Pedir pelos testes. Mas o Risco estará sempre à espreita para puní-los por isso. Um teste é não só uma aposta, mas um recurso caótico. Quanto mais testes pedirem, maiores são as chances do risco ser engatilhado.
  9. As regras permitirão, doravante, que jogadores alimentem o arsenal de eventos de risco do mestre. Playtests em breve receberão tabelas onde personagens receberão temores, vícios, sinas, perseguições algozes, insanidades, traumas, elementos que tornarão o fator Risco ainda mais implacável violento.

Um exemplo de teste: George corre para alcançar Lydia, a Bruxa. Ele propõe um teste de Destreza para alcançar a fugitiva antes da partida de seu trem. Se ele ter sucesso, pode encurralá-la e entrar em combate. Em caso de fracasso, a megera canibal escapará definitivamente. O Mestre diz que será um teste Difícil. Ele soma seu atributo de Destreza 2 ao resultado dos dados: 17. Obtendo 19, George quase alcança a bruxa, mas o trem parte no exato momento que ela chega ao vagão. George vê o trem partir, atônito, sem poder detê-lo, enquanto escapa a demoníaca assassina.

Notem que comparando com 0D&D/AD&D, BlackHack, as probabilidades do teste fácil são as mesmas de um teste de atributo roll under. Um score de atributo de D&D vanilla seria convertido para Atributo-10 em Nulitânia, e vice versa: um score de atributo de Nulitania seria usado como Atributo+10 em D&D.

O HÁBITUS E O CAMPO

Ok, tocando em Miúdos: A idéia e o sistema acima nasceu de um suave incômodo: O grupo de onde Nulitânia nasceu e foi testado jogou Storyteller e D&D3.5 por décadas. Ao mesmo tempo em que o retorno às regras e modos antigos de jogo (OSR) eram interessantes para todos no Playtest, elas criaram uma certa contradição. Os jogadores, acostumados a outros sistemas, abraçavam os dados ao invés de fugir deles. Em um grupo onde às vezes 60% a 70% dos jogadores também já foram mestres, muitas vezes a agência do jogador era um pedido de arbitragem mecânica específica. E isso era natural, aceito em nosso contrato social: “Mestre, deixa eu fazer um teste de destreza para agarrar o cara antes que ele fuja”. “Eu posso fazer um teste de Sabedoria pra conseguir sacar esse cara?” “Eu tenho essa perícia de venenos, posso tentar engrossar essa química pra dar um dano mais forte com o veneno da adaga?”.

Pra que (e como?) forçar um jogo sair daí sem testes de Atributo? Será que essa prática do jogador nos pedir testes era tão nociva assim? Bem, Optamos por um caminho do meio, ao invés de um movimento de negação total dos testes, os incorporá-los. A Agência do Jogador é reafirmada na construção do teste. Ele ativamente os solicita. Lidar com o Risco e seus revezes é em si uma gestão de recursos. Propor sua resolução é um fator de narrativismo incidindo sobre a estória. E a Player Skill? Primeiro ela entra em tentar criar um posicionamento ficcional que dispense o teste, o torne desnecessário. Todo o teste tem potencial para desencadear desastre, carnificina, bestialidade, catástrofe, imediata ou não. Jogadores querem evitar isso. Depois, caso se chegue a um impasse onde teste seja a solução, usar o posicionamento ficcional do personagem para obter vantagem, bônus, uma dificuldade baixa, etc.

TESTES DE SALVAGUARDA

A maioria dos testes está ligado a ações ativas do personagem. Porém, as vezes, os testes serão feitos não pela agência do jogador, mas por imposição do mestre, para saber se o protagonista rege a alguma coisa,venceu ou não um perigo que pode afligi-lo. Cada um dos seis atributos resiste a perigos diferentes em testes de salvaguarda (que substituem os Saving Throws tradicionais):

  • Um teste de Salvaguarda em Força pode decidir se o personagem fica preso em uma amarra feita para segurá-lo ou não.
  • Um teste de Salvaguarda em Destreza pode dizer se o protagonista se desvia ou não das rochas que desabam sobre ele na mina.
  • Um teste de Salvaguarda em Constituição decide se uma doença do pântano ataca ou não sua saúde
  • Um teste de Salvaguarda em Sabedoria pode impedir o personagem de sofrer um ataque de pânico ou insanidade mediante a uma situação insólita.
  • Um teste de salvaguarda em Inteligência pode impedir o protagonista de sofrer uma emboscada, ardil, ou assinar um contrato com letras miúdas e traiçoeiras.
  • Um teste de salvaguarda em carisma pode impedir o personagem de sofrer um ataque bioquímico com feromônios ou um encantamento místico que controle seus sentimentos.

Testes de Salvaguarda também desencadeiam risco

ALGUNS FATORES PARA MODULAR O RISCO

O Risco é um fator que afeta toda a mesa, e é medido para toda a mesa. Ele não é uma reserva de um único personagem. Ele é uma medida abstrata de violência, terror, desgraça latente da cena. Entendido esse conceito, vamos pensar em situações onde o fator de risco pode aumentar ou diminuir.

  • Caso falhe em um teste, um jogador pode tentar re-rolá-lo em um fail foward. Ele sobe o Risco da mesa em 1, e tenta de novo o teste. (Isto estatisticamente mais que duplica as chances de se desencadear um evento de risco)
  • A Cautela, atenção, cuidado e precaução dos jogadores em caminhar por determinado local ou realizar uma certa ação diminui o risco em 1, excepcionalmente 2 pontos.
  • Em suas próprias casas, esconderijos, castelos e bases de operação, o risco é sempre 0.
  • Cada vez que o grupo vence um combate sem grande esforço ou com grande sorte/competência, diminua o risco em 1.
  • Cada vez que os jogadores fugirem e serem perseguidos, aumente o risco em 1.
  • A Morte de um personagem jogador aumenta o risco em 1.
  • Por último, não menos importante: o mestre não deve aumentar o risco mais de uma vez por cena. Mas se quiser pode.

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Mandé Malé
Nulitania

Eu escrevo fantasia por que a realidade é ainda mais estranha do que a Ficção.