Abençoado por Dios

A origem de Juan Román Riquelme na série Los Ricos de La Pobreza

Paulo Castro
O Contra-Ataque
11 min readMay 14, 2020

--

Por Paulo Castro e Lucas Martins Alves de Oliveira

“Le doy un beso a la pelota porque siento que cada vez la tratamos peor”. — Juan Román Riquelme

Você pode ouvir o podcast que conta a história do craque xeneize aqui:

Riquelme prestes a cobrar um escanteio em La Bombonera.

A trajetória do lendário camisa 10 xeneize que liderou o Boca Juniors em diversas campanhas vitoriosas nos campeonatos nacionais, levou o time três vezes ao topo da América com as conquistas da Libertadores, e pintou o planeta de azul y oro ao derrotar o Real Madrid na final do mundial, já é conhecida.

À la Topo Gigio.

O intuito desse texto é mostrar a forma que Riquelme se apegou e honrou as suas origens, seguindo à risca o ditado “para saber pra onde vai, tem que saber de onde vem”, levando o nome de Don Torcuato, bairro humilde em que foi criado, para o topo do futebol mundial.

Don Torcuato

Juan Román Riquelme nasceu no dia 24 de junho de 1978, em San Fernando, cidade localizada na área metropolitana de Gran Buenos Aires. Román é o primogênito dos 11 filhos (cinco mulheres e seis homens) de Dona Riquelme, um time completo de futebol — o primeiro que o futuro craque comandaria.

Maradona erguendo a taça da Copa do Mundo de 86, a segunda da albiceleste.

Talvez aquele garoto nascido de uma família pobre tenha trazido luz para o futebol do país: Um dia após o nascimento do garoto, a seleção argentina se tornou campeã do mundo pela primeira vez após uma vitória por 3x1 em cima da Holanda.

Sua mãe sempre quis que o menino fosse coroinha e brigava com o garoto quando ele faltava na catequese para jogar bola. Já o seu pai, sempre quis que ele fosse jogador e ficava mais feliz do que o próprio filho quando Román estava jogando. O meia sempre deixou evidente todo o amor que tem por sua família, que o apoiou durante todas as suas decisões da carreira.

O pequeno Juanito foi criado no pobre distrito de Don Torcuato, situado da província de Buenos Aires. A área em que o craque cresceu não é conhecida pelo futebol, mas sim pelo rugby. Mesmo morando no lugar da bola oval, o garoto se destacou com a bola redonda, visto que com apenas sete anos, o jovem talento chamou a atenção de Jorge Rodríguez, diretor de um pequeno clube da cidade chamado La Carpita de Villa Libertad, que ofereceu a primeira oportunidade da carreira do futuro astro do futebol argentino.

O pequeno Riquelme em Don Torcuato

Com 11 anos, Riquelme já levava uma vida de adulto, tendo que conciliar os estudos e os treinos. O pequeno jogador saía da escola ao meio dia e almoçava no menor tempo possível, para correr até a estação e pegar o trem para ir direto ao treino. Até que chegou o momento em que o jovem teve que fazer sua primeira decisão da carreira: largar os estudos ou largar o futebol? Com o apoio de seu pai, seu maior crítico e incentivador, o menino escolheu seguir o sonho de ser um craque do futebol. Em entrevista à Fox Sports em 2015, o ex-jogador afirmou que mesmo com todo o sucesso de sua carreira, o seu maior arrependimento é não ter terminado os seus estudos.

“Eu gostaria de ter terminado a escola”, afirmou. “Eu saía às 12h30, tinha que ir treinar em Bajo Flores e demorava duas horas e meia, quase sempre chegava atrasado. Terminei a sétima série e falei com minha mãe. Tive que dizer que achava que me tornaria jogador e que essa era a única maneira que eu poderia comprar uma casa para ela. Ela não gostou muito, mas, no fim, aceitou. Mas eu tive que prometer que nunca faltaria aos treinos”, em entrevista à Fox Sports.

Mesmo depois da fama e do dinheiro, Riquelme nunca se esqueceu do bairro onde foi criado e sempre falou em suas entrevistas sobre como se orgulhava de ser “cria” de Don Torcuato. Em 2012, durante uma conversa no programa “Animales Soltos”, o ídolo xeneize contou que logo quando se transferiu para o Boca, comprou uma casa à uma quadra e meia do lugar em que foi criado, para que ele pudesse ter os seus amigos sempre por perto.

Foto de um mural em Don Torcuato que homenageia Riquelme e o Hindu Club.

“No meu bairro eu sou Román, não sou Riquelme. Sou o Román de sempre. Não sou o Riquelme e nem um jogador que agora está jogando aqui Europa. Tenho a sorte de que quando vou para lá nas minhas férias, eu fico muito bem. Alguns me chamam de Román, outros de Cabeção, mas é muito bom porque eu sou só mais um. Lá é um dos únicos lugares em que eu me sinto uma pessoa normal.” — Riquelme, em entrevista à TyC Sports em 2006

Sequestro do irmão

Riquelme e seu irmão Cristian. (Foto: Reprodução Cristian Riquelme)

Cristian, irmão do ídolo xeneize, foi sequestrado em 2002, aos 16 anos, quando jogava pelo Platense, curiosamente o mesmo clube que recusou Riquelme devido a sua magreza. A negociação do resgate foi feita por telefone e, na busca por dinheiro, os sequestradores se mostraram grandes fãs do craque.

A família se encontrava numa situação delicada: a decisão de não contar para polícia gerou a curiosidade dos fãs que acreditavam que o camisa 10 poderia conhecer os ladrões. No fim, Román pagou uma recompensa mas o valor correto nunca foi divulgado.

Cristian ficou 30 horas num cativeiro a 15 km de Buenos Aires. A volta do familiar ocorreu na madrugada do dia 4 e o meio-campista junto com seu representante, Mauro Franchi, foram ao encontro dos sequestradores para fazer a entrega da plata.

O sequestro de familiares não é algo raro no mundo dos boleiros. A prática virou crise nacional no começo do século, quando a Argentina enfrentou umas das piores crises econômicas de sua história. Muitos viram no sequestro uma forma rápida e segura de fazer dinheiro devido a fraca segurança dos famosos nacionais.

Gráficos detalham a onda de sequestros no início dos anos 2000. (Imagem: O Contra-Ataque/Paulo Castro).

Uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos Nueva Mayoría registrou 18 casos de sequestros no futebol argentino entre 2002 e 2003. A média de um sequestro de jogador ou parente seu, a cada um mês e meio, espantou o país. Na lista de celebridades que já sofreram problemas, estão Tevez, Diego Milito e Maurício Macri.

À la Topo Gigio

Noite especial na Argentina: clássico Boca-River. O esquadrão comandado pelo camisa 10 vinha da conquista da América no ano anterior e buscava mais um triunfo contra os gallinas. Na frente da apaixonada torcida, os xeneizes ganharam por 3 a 0. Porém algo naquele dia 8 de abril de 2001, entraria para história do futebol argentino e mundial. Autor de um dos gols, Riquelme comemorou de uma forma inédita. Após seu gol de pênalti, o maestro correu até o meio de campo e com as mãos atrás da orelha olhou diretamente para cabine de Mauricio Macri, então presidente do clube.

“A comemoração foi para minha filha, que é fanática pelo Topo Gigio”, disse o camisa 10.

“Topo Gigio” é um personagem de um desenho infantil, que possui orelhas grandes. Essas foram as palavras do camisa 10 após o jogo. Seria aquele ato uma forma de resposta para os críticos e para Macri? Até hoje os amantes do futebol desconfiam, mas o certo é que aquele domingo de futebol argentino marcou a história do craque.

A comemoração virou um dos símbolos da carreira do craque, muito ativo fora das quatro linhas. Sempre polêmico, o meio campista enfrentou cartolas, técnicos e jogadores ao longo de sua caminhada. A bonita relação que Román tinha com seus companheiros dentro de campo não era a mesma fora, e entre alguns elogios, surgiam críticas sobre sua liderança.

Declaração do meia argentino Marcelo Canete em entrevista para a ESPN. O jogador, que começou a carreira no Boca Juniors, era visto como o “novo Riquelme”:

“Ele só me chamava de ‘Tchelo’. Sempre gostou muito de mim quando eu era moleque e estava começando no Boca. Ele já me conhecia desde a base, porque saía muito na imprensa argentina que eu seria o sucessor dele no Boca. Era um cara que gostava da companhia dos mais jovens e de nos dar muitos conselhos para a carreira. São coisas que ouvi atentamente e não esqueço até hoje. Foi o melhor com quem joguei na carreira, e, pelo fato de jogarmos na mesma posição, ele tinha um carinho especial por mim.”

Canete também falou sobre a personalidade do craque:

“Ele tem uma personalidade muito forte. Se não gosta de você, esquece, nem te olha na cara e nem te cumprimenta. Mas, se gosta, faz de tudo por você. Briga até pelo seu contrato!”

Os milhares de Riquelmes

Final da Libertadores de 2000.

Dia 21 de junho de 2000, o craque argentino jogava pela primeira vez uma final de Libertadores, logo contra o Palmeiras. E quem diria que esse jogo seria o primeiro dos shows de Riquelme em solo nacional? Foram dois títulos em cima de brasileiros e algumas eliminações nas fases anteriores.

Mesmo sendo um dos maiores carrascos dos times brasileiros em Libertadores, a magia do futebol meia encantou as famílias do Brasil, tanto que durante os anos 2000 o país registrou um aumento de 6.949% no número de registros de meninos com o nome “Riquelme” em relação à década de 90 (números do censo do IBGE de 2010). O reflexo do legado do astro xeneize no futebol apareceu durante a Copa São Paulo de Futebol Júnior deste ano. No total, 14 meninos inscritos na competição apresentavam o nome do ídolo, ou uma de suas variantes, como Rikelme, Rickelme, Rikelmi, Riquelmy, Riquelmo e até Aimar Riquelme.

Riquelme segue de terno, mas agora fora dos gramados

Riquelme, no centro, comemora a eleição. (Foto: Twitter/Reprodução).

Na última eleição à presidência do Boca Juniors, a chapa composta por Jorge Ameal, Mario Pergolini e o ídolo Juan Román Riquelme como segundo vice-presidente, derrotou Christian Garibaudo, acabando com o “oficialismo” fundado por Mauricio Macri, que reinou durante 25 anos. O domínio político sobre o clube começou com a eleição do último presidente argentino à presidência do clube, em 1995, que permaneceu no cargo até 2007. Enquanto ele era presidente, o time xeneize conquistou duas libertadores e um mundial, tendo justamente Román como o principal jogador dessas conquistas. O macrismo continuou por mais 12 anos, principalmente com eleição de Daniel Angelici em 2011, que foi presidente do clube até ser derrotado pela chapa do ex-jogador, em 2019.

“Deve ser verdade isso que ficam dizendo, de que o Angelici é torcedor do Huracán e que o Gribaudo é do Independiente”, disse Riquelme depois de uma partida entre o Boca e o Argentinos Juniors, dias antes das eleições.

Riquelme com o presidente Alberto Fernandez.

O fim do macrismo no Boca Juniors não foi a única decepção do ano para Macri. O neoliberal foi derrotado em primeiro turno nas eleições à presidência, quando tentava se reeleger. Além disso, o ex-morador da Casa Rosada (residência presidencial do país), perdeu o seu cargo para Alberto Fernández, candidato do Partido Justicialista e representante do peronismo, que coincidentemente recebeu o apoio de Riquelme, carrasco do “oficialismo”.

Antes os heróis brigavam no Coliseu. Agora, brigam em la Bombonera

Quando Riquelme chegou ao profissional do Boca, o detentor da camisa 10 era o próprio Dios, Diego Armando Maradona. Os torcedores xeneizes acreditavam que Maradona fosse preparar o jovem de 18 anos para ser o futuro ídolo do clube, mas não foi bem assim.

Em seu jogo comemorativo de despedida, em 2001, Maradona vestiu a camisa número 10 do Boca com o nome “Román” estampado sob a camisa da seleção argentina, com a qual ele fez história. Naquela época, Riquelme já tinha levado o clube ao bicampeonato da libertadores e ao título mundial. No entanto, com o passar dos anos, as duas estrelas tiveram vários desentendimentos, chegando a uma relação atual marcada por brigas e ataques pessoais durante algumas entrevistas.

Via: Peleja

O começo dessa briga foi em 2008, quando Maradona assumiu o comando técnico da seleção argentina, após a demissão de Alfio Basile. Riquelme saiu em defesa do ex-técnico, afirmando que alguns colegas de Diego estavam fazendo “corpo mole” para que Basile fosse demitido. Após essas declarações, o novo treinador dispensou o meia argentino da seleção com apenas duas semanas de trabalho, o que forçou a aposentadoria do craque da albiceleste.

No ano de 2019, essa briga voltou à tona depois da eleição no Boca:

“Eles não têm um projeto de futebol e têm menos direção que o Titanic. Consegue imaginá-los na AFA ou na Conmebol? Não me faça rir. Um, que acredita que pode ir todos os domingos a campo e pode ser vice-presidente. E outro, que se vendeu para o maior licitador. Um clube tão grande quanto o Boca não pode ser cuidado como um vestiário” — Declaração de Maradona.

El buen hijo vuelve a casa

Quando se pensa em Riquelme, a primeira imagem que vem à mente é a do meia vestindo a camisa 10 azul e amarela, mas poucos sabem onde a lenda do futebol argentino realmente foi formada.

O Argentino Juniors foi a primeira casa de Román, que com apenas 10 anos foi contratado pelo clube para jogar nas categorias de base, até que em 1996, o jovem super talentoso chamou a atenção do ex-técnico do Boca, Carlos Billardo, que exigiu a contratação do garoto, e o resto é história.

Via: Argentino Juniors

Riquelme sempre carregou consigo uma enorme dívida de gratidão com o clube alvirrubro e ele não poderia acabar a sua carreira sem quitar o débito. Em 2014, o Argentino Juniors anunciou o retorno de Román, que voltava para a suas origens com a missão de levar o clube de volta à elite do futebol argentino.

Em sua última temporada da carreira, Riquelme marcou três gols em 15 jogos e garantiu, após um empate em 1 a 1 contra o Douglas Haig, o retorno do clube à primeira divisão do país.

Román x Román

A linda história do camisa 10 no Boca Juniors virou um documentário. O longa-metragem, comandado pelo diretor Leandro Ulloa, traz histórias e fotos inéditas sobre o craque. Ao longo da carreira pelo clube xeneize foram 3 Copas Libertadores, 6 Campeonatos Argentinos e 1 Mundial Interclubes.

O texto faz parte da série “Los ricos de la pobreza”, aqui n’O Contra-Ataque, que conta a origem de jogadores latino-americanos.

--

--