Nos últimos anos, apenas Corinthians, Bahia e Vasco relembraram o golpe de 1964. E em 2021?

O Contra-Ataque levantou quantos clubes se manifestaram contra a ditadura em comparação aos argentinos

O Contra-Ataque
O Contra-Ataque
7 min readApr 2, 2021

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O infográfico mostra quais clubes se manifestaram sobre o golpe militar brasileiro desde 2016. (Arte: João Abel)

Por Dora Scobar, Gabriel Paes, João Abel, Henrique Sales Barros, Paulo Castro, Rafaela Dionello, Tadeu Chainça. Imagens por Arthur Pessoa

A Ditadura Militar foi um momento sombrio da história do Brasil e, por isso mesmo, não pode ser esquecido. Os horrores daquele período estão relatados: pessoas presas arbitrariamente, desaparecimentos políticos, além da tortura e morte — como a de Vladimir Herzog, até hoje uma das maiores referências para nós, jornalistas, e para todos nós d’O Contra-Ataque — de muitos dos que viram o pior lado dos militares. O saldo desses tempos sombrios é encontrado em todas as áreas: social, econômica, de segurança, sem contar a corrupção. A memória é uma das maiores armas para impedir um retrocesso e, em tempos onde nunca estivemos tão próximos de um regime autoritário, é importante lembrar: Ditadura nunca mais.

O golpe teve início em 31 de março de 1964, em um contexto de Guerra Fria, quando militares instalados em Juiz de Fora se rebelaram contra o governo de João Goulart, o Jango, considerado então uma “ameaça comunista”, para transformar a política do país e colocar o Brasil em uma ditadura militar por 21 anos.

Assim como outros exemplos ditatoriais na história, os militares tentaram ao máximo utilizar o esporte mais popular do país como trunfo para angariar mais simpatia da população. Ao invés de utilizar um clube como seu símbolo, porém, a seleção brasileira, que se consagrou em 1970, foi escolhida para o projeto de propaganda do governo.

O tri ajudou a aumentar a popularidade do governo Médici, que tentava ludibriar a população de todo jeito, como fez com o tal ‘milagre econômico’. Com o título em mãos, pouco importava o que vinha acontecendo desde o AI 5. No cenário esportivo, houve a troca no comando da equipe que iria ao México para o mundial, saindo João Saldanha, jornalista de esquerda e então treinador, para entrar Zagallo, que venceu a copa com a seleção já montada. Na volta do time ao país, dois dias depois da vitória contra a Itália, o ditador recebia os jogadores em Brasília e tornava o “Pra Frente Brasil” um hino nacionalista de vitória.

O ditador Emilio Médici ergue a taça do tri ao lado do capitão Carlos Alberto Torres. Brasília, 1970.
Homenagem do Sport para Médici, que esteve no poder entre 1969 e 1974.

A conquista de 70 mexeu com o futebol nacional: houve uma pressão enorme na CBD (atual CBF) pela criação do ‘Campeonato Brasileiro’. O governo militar tinha motivação política para auxiliar a Confederação, já que o contexto da época era o de vender o espetáculo do Milagre Econômico, do Plano de Integração Nacional e das obras gigantescas. Daí, a usar o futebol como propaganda, foi um pulo.

O Segundo golpe argentino

O dia 24 de março é marcado para os nossos hermanos como o “Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça”. É nesta data que os argentinos marcham pelas calles de sua terra e ecoam seus gritos de protesto em memória dos mais de 30 mil desaparecidos e vítimas de seu segundo golpe militar, que teve início no mesmo dia, em 1976, e durou sete anos.

Madre de Plaza de Mayo e filha reivindicando a aparição com vida de um dos mais de 30 mil desaparecidos da ditadura argentina. (Foto: Adriana Lestido)

Os militares tomaram o poder no período em que a Argentina enfrentava uma inflação entre 500% e 800% na alta dos preços; um déficit público que correspondia a 12% do PIB; e um assassinato político a cada cinco horas. Essa crise acontecia após a morte de Juan Domingo Perón em 1974, eleito presidente após sete anos fracassados do primeiro golpe do país na época. Sendo assim, os milicos apontaram um inimigo subjetivo, principal obstáculo para se atingir o bem estar social: a subversão.

Mas afinal de contas, o que é ser subversivo? Aqui no Brasil, basicamente era qualquer um que falasse ou tomasse alguma atitude contra o governo. No caso de nossos vizinhos, a ameaça era representada nos grupos de guerrilha peronistas. A fim de evitar uma sempre assustadora, mas sempre tão distante, revolução marxista, o regime protagonizou “ações encobertas de terrorismo, sequestros, assassinatos e práticas sistemáticas de torturas”, como aponta o projeto da USP, “Memória e Resistência”. Ao menos 3 mil oficiais argentinos receberam treinamento estadunidense sob a doutrina do ódio ao comunismo.

Segundo o livro “Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe”, existiram na Argentina

“pelo menos 364 campos de concentração e centros clandestinos de detenção e extermínio, os quais funcionavam em instalações públicas ou privadas, quartéis, unidades penitenciárias e até escolas, onde as pessoas eram mantidas sequestradas por razões políticas, em sua grande maioria sem qualquer relação com a luta armada.”

E você, contra-atacante, deve estar se perguntando mais uma vez:

“O que o futebol tem a ver com isso?”

Arquibancada do Estádio Nacional de Chile, em Santiago, que serviu como prisão nos primeiros meses da ditadura chilena (1973–1990).

Um dos locais destinados às seções de tortura na Argentina era a ESMA (Escola Superior de Mecânica da Marinha), a 800 metros do Monumental de Nuñez. A proximidade com o estádio em si não aparenta ser motivo de crueldade, porém, assim, como ocorrido no Brasil, os militares argentinos se utilizaram da maior paixão esportiva do país para ganhar a simpatia da população e mais um motivo para permanecer no controle. Ao se fazer sede da Copa do Mundo, taça tão sonhada pelos hermanos e, na época, sendo vencida três vezes pelo Brasil e duas pelo Uruguai, a ditadura se sentiu contemplada, podendo propiciar ao povo sua primeira conquista mundial e vendo a taça ser levantada no estádio do River, enquanto pessoas eram torturadas a cinco minutos de carro de lá.

Você pode acessar o site clicando aqui.

Os maiores rivais do país, Boca e River, disponibilizaram um site onde você pode buscar o nome de filiados ao clube que foram sequestrados ou assassinados pela ditadura argentina e conhecer um pouco sobre a história deles que foi brutalmente apagada.

Os clubes argentinos se manifestaram no Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça, nomeando a ditadura como golpe e compartilhando vídeos e mais ações explicando as atrocidades do período militar. (Montagem por Gonzalo Rodriguez)

E por que no Brasil somente 12 clubes entre as séries A e B se manifestaram contra o golpe militar de 1964?

“O estado argentino declara que houve ditadura militar. Isso pode parecer pouco, mas quando o estado declara que ocorreu, a sociedade civil, como um todo, trabalha a partir desses termos”, conta o historiador Micael Zaramella em entrevista ao Contra-Ataque.

“Os clubes de futebol vão assumir essa perspectiva. Irão construir seus discursos a partir dessa ideia. No Brasil, acontece o oposto! Não temos essa memória construída desde a perspectiva do estado. E o que os clubes brasileiros fazem diante disso? Eles escolhem não tocar no assunto, não mexer nesse vespeiro. Pois a sociedade está dividida, não temos um estado que afirmou: ‘houve, existiu’.”

Alguns clubes, como fez o Flamengo, fazem um post simples, vazio e sem conteúdo, só para fingir que se importam. Mas de que adianta um manifesto que não explica o que está sendo reivindicado?

A semana que marca os 57 anos do início da ditadura no Brasil foi marcada por “flertes constantes com o autoritarismo”, nas palavras do Micael Zaramella, que completa:

“O presidente da República reivindica o direito de celebrar o aniversário do golpe. Com isso acontecendo, as instituições não se implicam na construção de uma memória institucional sobre o período. Como por exemplo os clubes de futebol, que evitam falar sobre suas eventuais relações com o regime. Isso abre brecha para que os clubes possam optar ou não por se posicionar diante dessa situação.”

Mães e avós gritavam para encontrar os sequestrados pela ditadura argentina.

A questão discutida aqui não gira em torno da gravidade de cada regime e de qual foi mais brutal, mas sim, de como foi o processo de criação da memória desses eventos na construção política de cada país. Encabeçada pelas Mães da Praça de Maio, o futebol argentino abraçou as manifestações sociais e, portanto, o povo tem uma parcela importantíssima na manutenção da democracia. Não havia acordo de anistia para os responsáveis pelo regime, ao contrário do que ocorreu no Brasil durante a redemocratização.

A primeira faixa pela anistia aberta publicamente foi num jogo do Corinthians e Santos, em 1989 no Morumbi. (Foto: Arquivo O Globo)

“O Estado constrói uma memória oficial sobre esse período. O desdobramento disso é a judicialização que se deu com o final do regime, com ditadores e torturadores processados e condenados. No nosso país, houve a ‘anistia ampla, geral e irrestrita’. Isso significa que as forças políticas isentaram tanto quem batalhou contra a ditatura nas guerrilhas, os exilados, mas pelo outro lado, torturadores e todos aqueles que estavam vinculados ao terrorismo de Estado que ocorria na época” explica Zaramella.

A jovem Dilma Rousseff no tribunal militar, de cabeça erguida. No fundo, os milicos com as mãos sujas com o sangue do povo, cobriando os rostos.

Durante o governo Dilma Rousseff, surgiu a Comissão da Verdade, cujo objetivo não era a judicialização, como houve na Argentina. O processo brasileiro recente visou expor os crimes que haviam sido acobertados pelos políticos durante a redemocratização, 26 anos depois do fim do regime. Isso demonstra a ausência de uma memória sobre nosso passado, que reflete na isenção de muitos no presente.

Entre os 40 clubes analisados, apenas 12 se manifestaram no dia 31 de março.

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