O sol raiou na cordilheira: a escalada das chilenas

Considerada inativa pela FIFA em 2015, as chilenas garantiram sua 1ª vaga na Copa do Mundo depois de golearem a Argentina na Copa América de 2018 — da qual foram anfitriãs e vice-campeãs. Falamos desta trajetória e das pedras no caminho

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O Contra-Ataque
7 min readMay 9, 2019

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O Chile integra o grupo F junto com Estados Unidos, Suécia e Tailândia.

Al mundial

22 de abril de 2018: na penúltima partida da Copa América Feminina, a seleção chilena goleou a argentina por 4 a 0 e conquistou o segundo lugar na competição, garantindo vaga direta para a Copa do Mundo da modalidade, que acontece na França de junho a julho de 2019.

No Estádio La Portada, na comuna praiana de La Serena, o gol que selou o vice-campeonato e a classificação para o Mundial foi este balazo de Francisca Lira de fora da área, já nos acréscimos da segunda etapa.

Na primeira fase da competição continental, empatou contra Paraguai e Colômbia e venceu Uruguai e Peru, classificando-se para a fase final, onde logo na primeira partida foram derrotadas pelas brazucas por 3 a 1. Na sequência empatou com Colômbia e venceu as hermanas.

Três empates, três vitórias e uma derrota jogando em casa alimentaram as esperanças da torcida chilena, que vai vivenciar a estreia da seleção de seu país em um Mundial. A participação inédita, além do significado histórico para estas e outras gerações de jogadoras e hinchas, dá espaço para uma ilusão perigosa.

“De repente a expectativa é alta porque Chile se classificou para o Mundial e se espera que brigue pelas primeira posições, mas se desconhece a realidade. Mais além da posição no Mundial, o mais importante é que em quatro anos possamos voltar a ter um processo assim para se classificar para a Copa”, esclareceu o treinador da seleção, José Letelier, em entrevista para El Mercúrio.

Ainda em 2018, las chicas de Rojo enfrentaram Estados Unidos, Austrália, Costa Rica e África do Sul — cada equipe duas vezes. Venceram uma partida contra todas, menos a seleção estadunidense.

Em 2019, no entanto, o rendimento piorou. As derrotas contra Itália e Catalunha em janeiro, contra Jamaica em fevereiro, um duro empate contra a Escócia e uma goleada de 7 a 0 sofrida contra a Holanda em abril reduziram as expectativas sobre a equipe.

“O futebol feminino na América do Sul está, sendo cauteloso, em desenvolvimento, para não dizer subdesenvolvido. […] O que aconteceu contra a Holanda não agrada a ninguém, mas quando se entra nesse contexto isso pode acontecer”, comentou Letelier.

Dia 20 de maio foram anunciadas as 23 convocadas para a Copa do Mundo da França. As novidades são as meio-campistas Elisa Duran (Cárceres/ESP), Ana Gutiérrez (Colo-Colo), a zagueira Carla Guerrero (Rayo Vallecano/ESP) e a atacante Maria José Rojas (Slavia Praga/CZE), que não estiveram entre as relacionadas para os amistosos de abril.

Entre as relacionadas, 14 atuam no exterior — dez delas na Espanha, duas no Brasil, uma na França e outra na República Checa.

El cenário de un fútbol centenario

O futebol feminino existe no Chile desde o início do século XX. Em um artigo publicado na revista The Clinic (leia) a historiadora estadunidense Brenda Elsey aponta para a necessidade de resgatar a memória da modalidade para compreender sua situação atual e discorre de maneira precisa — e surpreendentemente breve — sobre as experiências da modalidade nos últimos dois séculos.

Pesquisadora, é autora de “Citizens and Sportsmen: Fútbol and Politics in twentieth-century Chile” e do recém lançado “Futbolera: A History of Women and Sports in Latin America”.

Team Santiago de la Escuela Normal de Talca (1900). É o primeiro registro do futebol feminino no Chile encontrado por Brenda. Foto: arquivo pessoal da autora.

Para Elsey, a classificação histórica, de uma seleção que em 2015 foi classificada pela FIFA como ‘inativa’ por falta de investimento, tem sua resposta na “ação coletiva, na organização independente e no árduo trabalho” das jogadoras, torcedoras e de todas as profissionais de organizações como a Asociación Nacional Jugadoras de Fútbol Femenino en Chile (ANJUFF — criada em 2016) e da Corporación de Fomento de Fútbol Femenino (COFFUF), aliadas ao Sindicato de Futbolistas Profesionales de Chile (Sifup).

“Seja organizando a primeira associação de jogadoras do continente ou reescrevendo os estatutos dos clubes para incluir mulheres em seus diretórios, as feministas e seus aliados têm desafiado as estruturas patriarcais. Parte deste processo de fazer um futebol feminista é recuperar a história do futebol feminino”, escreveu a autora.

A ANJUFF foi a principal responsável na articulação dentro da Asociación Nacional de Fútbol Profesional de Chile (ANFP) pela candidatura do país para ser sede da Copa América Feminina.

Também foi protagonista na realização e recepção do I Fórum Sul-americano de Futebol Feminino em 2018 (O Contra-Ataque esteve presente), junto com a ONU Mulheres e a FIFPro — World Players Union, organização sindical em que também foram integradas e na qual Camila García, diretora da associação, passou a integrar o comitê executivo.

No início de 2019, o Santiago Morning — atual campeão nacional feminino — foi o primeiro clube a assinar contratos profissionais com suas jogadoras. A treinadora Paula Navarro, que quase chegou a treinar a equipe masculina do ‘Chago’, falou com O Contra-Ataque sobre a classificação de seu país para o Mundial, os contratos e o processo formativo das jogadoras e da modalidade.

“Nos últimos anos aconteceram muitas coisas ruins para o futebol feminino e a classificação foi como ‘depois da tempestade vem o sol’. E elas são o sol, do qual saem raios de coisas positivas. É produto de um trabalho largo, esta seleção leva onze anos trabalhando junta. Impactou não somente na vida de nós profissionais do futebol mas também da gente comum, por fim o futebol feminino assume certo protagonismo”.

Campeã nacional em 2018 depois de vencer o Palestino, por 3 a 2, no Estádio Nacional, sua equipe conta com nove jogadoras contratadas profissionalmente, das quais cinco são estrangeiras e quatro são de nacionalidade chilena.

Questionada sobre a possibilidade de realizar mais contratos, explicou o processo pelo qual foram realizados e como se poderiam realizar com mais jogadoras.

“A ANFP não tinha ideia de como fazer o contrato. Tivemos que investigar e exigir que fossem feitos sob os mesmos termos dos homens, tanto que contratamos um advogado especialista para poder formalizar estes contratos. A ideia é que todo semestre possamos avançar e que mais jogadoras sejam contratadas. Mas não depende só de nós, depende da federação, que tenhamos mais difusão nos meios de comunicação e que mais empresas nos apoiem”

Com duas jogadoras representadas na seleção, a zagueira Javiera Toro e a meio campista Daniela Pardo, as ‘Chaguitas’ foram vice-campeãs quatro vezes antes de conquistar a Primera Femenina. Para Navarro, a formação da modalidade e das jogadoras deve ser gradual, respeitando o ciclo do alto rendimento.

“Temos uma identidade de jogo faz muitos anos. Ganhar o último campeonato foi produto de uma estrutura ideológica. É como o processo de uma árvore: se planta a semente, tem que regar, cuidar e os frutos vem gradualmente. Um processo de alto rendimento dura três ciclos olímpicos (doze anos), então tem que ter paciência. Isto te leva ao êxito”

Paula Navarro e sua prancheta tática. Foto: La Segunda.

Os freios impostos à modalidade pela imprensa, políticos e pela própria ANFP são refletidos — entre outras coisas — pelo fato de que apenas em 2014 a opção de realizar contratos formais com as jogadoras foi incluída no regulamento do torneio feminino, mas segue não sendo obrigatório, assim como plano de saúde (!!!).

La portera

A capitã e goleira Christiane Endler assume o papel de liderança no elenco. Foto: AFP

O destaque da equipe fica com a melhor goleira da temporada 18/19 da Division 1 Féminine (D1F) da França. Por sua visão, técnica e liderança, escolhi a capitã e goleira Christiane Endler. Ela que, em 2017, já antecipava a viagem para a França e lá atua desde então no Paris Saint Germain.

De La Calera, na região litorânea de Valparaíso, onde estreou no Unión La Calera em 2008, passou pelo Everton e foi jogar em Santiago pelo Colo-Colo. Depois ainda passou por South Florida Bulls (EUA), Chelsea (ING) e Valência (ESP), de onde partiu para o PSG.

Com certo protagonismo e responsabilidade como a jogadora de maior exposição do país, representa a expectativa dos quase 20 milhões de chilenas e chilenos. Apesar deste papel como porta-voz ‘oficial’, não se abstém de fazer duras críticas a dirigentes, organizações e poderosos que seguem retrasando a modalidade.

Recentemente cutucou a inauguração do camarim exclusivo para a seleção feminina no histórico Estádio Nacional.

“[…] não sei quando vamos usá-lo. Nunca jogamos no Estádio Nacional. Deveriam arrumar primeiro os camarins onde se treina dia a dia no Chile, que são um desastre, mais do que adaptar um que, ao melhor, se vai usar uma vez, mas é o que mais vende”, disse em entrevista a Revista Ya.

A seleção chilena treina no Complejo Deportivo Qilin, na comuna de Peñalolén, em Santiago.

Cronograma no Mundial

11.06 — 13h (Brasília)— Chile x Suécia
16.06 — 13h (Brasília)— Estados Unidos x Chile
20.06 — 16h (Brasília) — Tailândia x Chile

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