Pela liberdade de imprensa, jornalismo deve acelerar processo de afirmação como ator fundamental à democracia

Moreno Osório
O jornalismo no Brasil em 2020
6 min readDec 19, 2019

Quarta edição do projeto realizado pelo Farol Jornalismo e pela Abraji indica que diálogo entre o resgate de valores caros à profissão e a adaptação às imposições do contexto atual se tornará mais agudo em 2020

O recrudescimento da violência contra o exercício do jornalismo profissional registrado nos últimos anos ganhou contornos de política de Estado quando Jair Bolsonaro se elegeu presidente da República. O chefe do executivo nacional ataca a imprensa semanalmente e se torna o principal vetor para uma fragilização ainda maior do jornalismo em um contexto de polarização. A resposta do jornalismo à violência imposta pelo governo Bolsonaro acelerou o seu processo de afirmação, e deve acelerá-lo ainda mais em 2020.

Em alguns casos, isso significará investir em tendências já identificadas. Se, para 2019, as projeções passaram pelo aumento da transparência em relação a métodos e financiamento, pelo estreitamento da relação com o público e pelo investimento em diversidade e colaboração, em 2020, devemos dobrar a aposta. Em outros casos, a reação da prática jornalística será desenhar diálogos com movimentos emergentes da sociedade e externos ao jornalismo — da educação midiática à inteligência artificial, passando pelas transformações no mundo do trabalho.

A escalada da desintermediação, do descrédito e das ameaças impõe ao jornalismo um movimento duplo. Por um lado, a atividade busca fortalecer a sua imagem como ator fundamental à democracia salientando valores historicamente caros à profissão. Por outro, força um olhar para dentro a fim de entender que novas práticas profissionais possibilitam, no complexo ecossistema informacional do século XXI, garantir ao jornalismo o seu lugar de mediador.

Pela quarta vez, o Farol Jornalismo e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) convidam jornalistas e pesquisadores a refletir sobre o que espera o jornalismo no ano que se aproxima. O panorama para 2020 é dos mais complexos. A hostilidade do atual contexto político, econômico e social eleva o grau de imprevisibilidade de um horizonte que traz, para o jornalismo, dificuldades de anos recentes. As eleições municipais adicionam uma camada ao desafio enfrentado pelos 10 autores desta edição do especial O jornalismo no Brasil.

Para Renata Neder, do Committee to Protect Journalists (CPJ), “o ano de 2020 será de enormes desafios para a proteção e segurança de jornalistas, ainda mais considerando as eleições”. A pesquisadora ressalta que o país está na 9ª posição no Índice Global de Impunidade e que, se autoridades seguirem a tendência de 2019, deve haver um aumento de casos de assédio processual, perseguição online e violência física contra jornalistas. O resultado será uma maior restrição à liberdade de imprensa.

O aprofundamento da tendência apontada por Neder aparece no texto de Guilherme Amado. O repórter e colunista da revista Época lembra como a mudança no eixo de poder se refletiu em truculência e no dia a dia de quem cobre política em Brasília. Tal modus operandi, no entanto, não é mais surpresa. Espera-se, portanto, que a imprensa acumule aprendizados, encarando 2020 de maneira mais madura, após um ano de desafios que, escreveu Amado, “viraram de cabeça para baixo a cobertura do poder”. Especialmente no que se refere à defesa da democracia e do jornalismo.

Uma das tendências recentes do jornalismo foi apostar em colaboração. Inicialmente, por uma questão financeira. Hoje, também por uma questão de força. Descentralizar grandes investigações não só viabiliza as pautas do ponto de vista financeiro, como tende a aumentar o seu alcance. A lógica do jornalismo transnacional desembarcou com força em um país de dimensões continentais em 2018, com o Comprova. Se em 2019 a tendência se cristalizou, em 2020 deve se capilarizar devido às eleições. Para o editor do Comprova José Antonio Lima, parcerias entre órgãos de mídia profissionais serão fundamentais “para que o jornalismo continue atuando para preservar o interesse público e para fortalecer as coberturas locais”.

Motivo de preocupação no mundo inteiro, a cobertura local será um dos temas mais relevantes para o jornalismo brasileiro em 2020. O cenário não é promissor, já que seis em cada dez municípios do país não dispõem de informação jornalística municipal, segundo a versão mais recente do Atlas da Notícia, pesquisa que vem mapeando o jornalismo local no país há três anos. Mas Nina Weingrill chama a atenção para uma questão cuja importância transcende a cobertura de cidades e bairros, e questiona a própria definição do jornalismo.

Ao demonstrar como iniciativas de cobertura hiperlocal periférica atuam no vácuo deixado pela mídia tradicional, a cofundadora da agência de conteúdo e escola de jornalismo ÉNois pergunta se o jornalismo local está mesmo minguando ou se não estamos procurando no lugar errado. Para ela, a emergência de “uma nova cultura entre informação e comunidades” acaba por tensionar o “próprio entendimento sobre o que é ou não jornalismo”.

Tais iniciativas trazem à tona uma discussão sobre as condições de trabalho dos jornalistas. O pesquisador da Unisinos Rafael Grohmann chama a atenção para os possíveis desdobramentos da intensificação da “racionalidade empreendedora” no campo jornalístico. Para ele, o empreendedorismo que caracteriza desde as pequenas iniciativas citadas por Weingrill até os contratos de trabalho em redações tradicionais pode levar a novas formas de organização dos trabalhadores. Afinal, escreve, “não existe trabalhador inorganizável”, e “os jornalistas têm se reconhecido como trabalhadores e buscado novas formas de organização do trabalho que confrontem lógicas individualistas”.

Independentemente desses tensionamentos, Paula Miraglia, cofundadora do Nexo Jornal, é taxativa: em 2020, o que “chamamos de engajamento da audiência ganhará ainda mais centralidade” a partir de três eixos: levar a sério a ideia de comunidade, olhar para novas métricas e cultivar a relação com o público. Para tanto, é necessário identificar e compreender os lugares e as formas usadas pelas pessoas para se informar.

Portanto, “estudar novos canais de distribuição tem sido tarefa necessária para quem produz narrativas”, escreveu Ana Naddaf. A diretora-executiva do jornal O Povo projeta que, em 2020, os podcasts chegarão com força às hard news, as newsletters apostarão em contextualização e os stories vão se consolidar como a porta de entrada de um novo público. Presente em 98% dos telefones móveis brasileiros, o WhatsApp segue sendo um desafio para a distribuição e também quando se pensa no compartilhamento de informações de origem duvidosa.

Adriano Belisário desenha um horizonte distópico não só para 2020, mas para a próxima década. O coordenador da Escola de Dados Brasil aponta que as deep fakes devem aparecer com força nas eleições municipais. “Vídeos manipulados por algoritmos vão se tornar cada vez mais comuns e sofisticados, impondo desafios maiores no combate às ações de desinformação ou manipulação da opinião pública”, escreveu.

A resposta à desinformação vem de duas frentes principais: fact-checking e educação midiática. Sobre este segundo tópico, Patricia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta, defende que a abertura do jornalismo é fundamental para que as pessoas entendam o seu funcionamento e a sua importância para a sociedade. “Está na hora de ‘abrir a cozinha’ do jornalismo e ‘quebrar os tabus’ da profissão. Mostrar o passo a passo, os critérios adotados, os manuais criados pelos veículos, quem são os autores das matérias, quem são os proprietários das empresas, quem financia os veículos”, escreveu.

A transparência sugerida por Blanco vem ganhando espaço junto a quem trabalha com jornalismo de dados. Fábio Takahashi, editor de jornalismo de dados da Folha de S.Paulo, aposta que, em 2020, ganhará força “a cultura de ampliação da divulgação das metodologias (e até dos códigos), que dão mais transparência e segurança aos resultados encontrados”. Tais práticas ampliam também a possibilidade de colaboração, já que outros jornalistas podem se beneficiar do trabalho realizado por um colega.

Diante de um jornalismo atacado e desacreditado, transparência e colaboração podem, em 2020, transcender a área de dados, afirmando-se como valores caros à profissão e abrindo caminho para um aperfeiçoamento da relação com a sociedade. O jornalismo (e a democracia) tem pressa.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2020.

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Moreno Osório
O jornalismo no Brasil em 2020

Jornalista, doutor em Comunicação, professor na PUCRS, cofundador do Farol Jornalismo e editor do projeto Jornalismo no Brasil