Imagem com o fundo marrom claro. Atravessando da esquerda para direita há fios que simulam ondas. À esquerda há um mulher negro mostrando um celular. Acima dela aparece parte do mapa do Brasil, em vermelho. Ao centro o título da seção: “LGPD e acesso à informação”. À direita aparecem os logos da Abraji, do Farol Jornalismo e a frase “Projeções para o jornalismo no Brasil em 2022”.

2022 será decisivo para a sobrevivência da Lei de Acesso à Informação

Caso o entendimento sobre informações pessoais se sobreponha ao direito de acessar informações públicas, jornalismo investigativo estará comprometido durante o ano eleitoral

Maria Vitória Ramos
O jornalismo no Brasil em 2022

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* Colaboração Léo Arcoverde, cofundador da Fiquem Sabendo

A cobertura das eleições de 2022 no Brasil será atípica. Além do caos já esperado, o jornalismo profissional terá de lidar com um novo desafio: cobrir os atos administrativos de diferentes instâncias em um contexto de regressão democrática em que o próprio governo promove abertamente ataques sistemáticos à transparência pública. A maior ameaça à Lei de Acesso à Informação (LAI) hoje é o uso indevido da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para censurar o aceso a dados e documentos públicos. Os jornalistas terão de lidar com negativas absurdas em meio a um turbulento processo eleitoral.

Dado o nosso quadro de profundas desigualdades, cobrir uma eleição no Brasil requer — entre várias outras frentes — traçar um panorama com dados atualizados sobre políticas públicas executadas nas mais diversas áreas. Em 2022, nossos colegas que cobrirão a eleição terão também que expor, de maneira crítica e equilibrada, eventuais realizações, legados de mandatos já encerrados ou em andamento, de cada concorrente aos cargos em disputa.

Imagem com fundo marrom claro e letras brancas, onde se lê a frase: "Com ataques sistemáticos à LAI, não temos a certeza se as informações necessárias para avaliar as candidaturas poderão ser entregues pelo jornalismo".

Em um cenário de ataques sistemáticos à Lei de Acesso à Informação (LAI), não temos hoje a certeza se as informações necessárias para avaliar as candidaturas poderão ser entregues pelo jornalismo profissional. Um exemplo prático: um Ministério da Saúde campeão de desrespeito ao cumprimento da LAI, conforme mostrou um levantamento da agência Fiquem Sabendo, vai disponibilizar as bases de dados atualizadas, com as informações necessárias ao adequado controle social sobre tudo o que o Serviço Único de Saúde (SUS) é obrigado por lei a disponibilizar à população? Outra questão que deve instigar a nossa reflexão: as informações da área de Assistência Social, como a base do Cadastro Único (CadÚnico), e os pagamentos de programas de transferência de renda à população mais pobre, hoje em estágio de reformulação, serão disponibilizados conforme vem sendo desde que a LAI entrou em vigor, em maio de 2012?

As respostas a essas perguntas é que definirão o tamanho do desafio da cobertura das eleições do ano que vem. E será a oportunidade de sabermos, na prática e em um momento decisivo para a nossa democracia, quão nefasta a inadequada aplicação de uma lei importante — no caso, a LGPD — pode minar a transparência pública.

Infelizmente, muitas das previsões feitas por Fernanda Campagnucci neste mesmo especial, no artigo “Jornalismo enfrentará encruzilhada entre transparência e proteção de dados”, concretizaram-se em 2021. No ano passado, a diretora da Open Knowledge Brasil projetou: “Brasil afora, das gestões municipais ao Executivo federal e em outros poderes, o baixo preparo para a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) deve se juntar à conhecida má-vontade de alguns setores da política em abrir informações”. Ela lembrou ainda que o jornalismo precisa de CPF e CNPJs, fato mais que provado pela jornalista Juliana dal Piva Amanda Rossi e Gabriela Sá Pessoa com a cobertura das rachadinhas que dominaram o debate público nos últimos 12 meses.

O Orçamento Secreto, um dos principais escândalos do cenário político nacional em 2021, seguirá na pauta no ano que vem, provavelmente como tema recorrente nas reportagens e/ou nos debates acerca das necessárias e sempre urgentes políticas de combate à corrupção. Revelado pelo jornalista Breno Pires, do jornal “O Estado de S. Paulo, a completa falta de transparência sobre a execução das chamadas emendas de relator é o melhor exemplo de como a LAI pode, na prática, fomentar a cultura de transparência e ser um dos pilares do controle social da administração pública. Foi a partir da combinação entre informações advindas de fontes internas do Congresso Nacional e dados obtidos via LAI que nasceu esta série de reportagens (assista à entrevista do repórter contando os bastidores da apuração).

Não possuímos até agora números consolidados que exponham o impacto negativo já causado pelo uso indevido da LGPD no atendimento da LAI. Todavia, um levantamento feito pelo jornalista Eduardo Goulart para a Fiquem Sabendo, considerando apenas as negativas do Executivo Federal que chegaram até as últimas duas instâncias recursais (Controladoria-Geral da União e Comissão Mista de Reavaliação de Informações), 79 pedidos foram negados pelo poder público com base na LGPD em 2021. Em parceria com o Insper, a Fiquem Sabendo está analisando todas essas negativas e gerará um relatório, o que deve ajudar a jogar luz, de forma quantificada, sobre tal retrocesso.

Em tese, não haveria nenhuma incompatibilidade entre a LAI e a LGPD: uma garante a publicidade de informações públicas e a outra a privacidade do cidadão. A ideia principal da LGPD é proteger o cidadão do uso abusivo dos seus dados pessoais por terceiros. Isto não se aplica, no entanto, sobre dados de cidadãos diretamente relacionados aos cargos que ocupam na esfera pública, como políticos eleitos e servidores, ou às relações de cidadãos comuns com órgãos públicos, como o gasto de um indivíduo com uma passagem aérea paga com dinheiro público, o registro de acesso a prédios públicos ou o licenciamento ambiental de um empreendimento. Em todos esses casos, as informações são referentes à relação com a coisa pública, não com a intimidade ou vida pessoal dos envolvidos.

Imagem com fundo marrom e letras brancas, onde se lê a frase: "Em 2022 veremos empresas serem consideradas pessoas passíveis de proteção da privacidade concedida a indivíduos".

Apesar desta distinção ser bastante clara no texto de ambas as leis, o governo tem usado de forma indevida a LGPD para retroceder na transparência pública. Como revelamos na newsletter Don´t LAI to me, os relatórios de trabalho escravo e o nome das empresas autuadas, até então sempre acessíveis, passaram a ser negados pelo Ministério da Economia. Sim, em 2022 veremos empresas serem consideradas pessoas passíveis de proteção da privacidade concedida a indivíduos. Essa base era a fonte para qualquer reportagem que fale sobre trabalho escravo. Ao longo do ano vimos ainda os casos da remoção da base de dados de filiados de partidos políticos, o atraso nos microdados do Enem, as negativas de acesso aos registros de entrada dos filhos do presidente no Palácio do Planalto (outros órgãos negam acesso a esses registros), da censura ao processo administrativo que perdoou o ex-ministro Pazuello, e muitos outros.

Os casos não se limitam ao governo federal. A Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso, por exemplo, negou acesso a comprovantes apresentados por procuradores para recebimento de verbas indenizatórias, alegando que continham informações pessoais. O controle social dos gastos públicos é um dos pilares de uma sociedade democrática e é lamentável prever que sim, vamos ter dificuldades até para acessar contas públicas em 2022. A GloboNews já notíciou um caso absurdo: “PM alega sigilo de 100 anos para não informar sobre salários de policial acusado de matar Marielle Franco”.

Nesses casos estamos falando de pedidos de acesso à informação, mas e todas as bases de dados já públicas que estão sendo ou serão retiradas do ar sem que a sociedade saiba, Em decisão interna pautada pela LGPD, o Ibama retirou do Portal Nacional de Licenciamento Ambiental os arquivos dos empreendimentos licenciados. Na esfera municipal, a Prefeitura da Cidade de São Paulo parou de disponibilizar a base de dados do IPTU, publicada anualmente até então.

Um dos pioneiros no uso da LAI para apurações, o jornalista Arthur Rodrigues, sente os efeitos do uso equivocado da LGPD. “A Prefeitura de São Paulo tirou do ar um módulo inteiro de busca no sistema de informações da prefeitura, onde era possível fazer buscas por palavra-chave, podia encontrar emails, prestação de contas de entidades terceirizadas, etc. Agora é um sistema bem mais limitado onde você pode fazer apenas encontrando o número do documento pelo Diário Oficial”. O sistema antigo rendeu diversas reportagens, fiscalizando o poder público como dita o bom jornalismo. A série sobre a máfia das creches, publicada na Folha de S. Paulo, partiu das informações sobre entidades terceirizadas que constavam no sistema transparente.

Ambas as leis fazem parte do ordenamento jurídico brasileiro e devem ser aplicadas pelos agentes públicos de forma harmônica. A observância da publicidade como princípio da administração pública, previsto no Artigo 37º da Constituição Federal, exige isso. Assim como o Artigo 5º, que assegura a todos os brasileiros o direito fundamental de acessar informações públicas. Entretanto, essa não será uma batalha fácil. Nenhum governo gosta de ser fiscalizado e a brecha foi aberta. Em 2022 precisamos de jornalistas alertas e engajados na luta para manter a Lei de Acesso à Informação a salvo e o controle social possível. Abaixo elenco algumas ideias, mas estamos abertos a novas sugestões. Entre em contato por meio do endereço: mariavitoria@fiquemsabendo.com.br.

O que os jornalistas podem fazer

  1. Traduzir a complexidade da legislação para o cidadão. Felizmente, durante o mês de novembro, aniversário da primeira década da publicação da LAI, diversas reportagens foram publicadas nos principais veículos de imprensa. O especial “Em 10 anos, Lei de Acesso à Informação muda patamar da transparência no País”, produzido pela jornalista Kátia Brembatti para o Estadão, leva o cidadão passo a passo, traduzindo cada um dos principais pontos de avanço e retrocessos. Também são interessantes publicações que evidenciam a importância da LAI na produção de reportagens, como fez o Brasil de Fato: “10 anos da Lei de Acesso à Informação: relembre 10 reportagens do Brasil de Fato com uso da LAI”. A reportagem de Lucas Mendes e Mariana Haubert no Poder 360 relembra o esforço da sociedade civil por anos para conquistar a legislação que regulamenta um direito prometido na Constituição de 1988.
  2. Expor como os retrocessos na transparência afetam os leitores diretamente. Um ótimo exemplo é a reportagem da jornalista Ana Carolina Moreno “Inep segura há pelo menos dois meses divulgação pública dos microdados do Enem 2020”, publicada no G1. Outra é do Guilherme Amado “Presidência usa Lei de Proteção de Dados para negar informações de visitas de lobistas de armas e advogados ao Planalto”, publicada na Época.
  3. Fazer mais pedidos e não desistir dos recursos. Segundo publicou o jornal O Tempo, no âmbito federal, os números da Controladoria Geral da União (CGU) apontam para uma queda no número de pedidos de informação em relação ao ano passado. “Até 31 de outubro, foram contabilizados 104.447, o que corresponde a 68% do total de 2020, faltando apenas dois meses para o fim do ano”, contabilizou o jornal. Não podemos deixar a peteca cair! Está na hora de acelerar nos pedidos e levar todas as negativas até a última instância. Não sabe como começar ou tropeçou numa negativa difícil? A Fiquem Sabendo lançou o WikiLAI, um portal com tudo o que você precisa para acessar informações públicas no Brasil.
  4. Atuar junto às organizações da área. A deputada federal Adriana Ventura (NOVO-SP) apresentou, no dia 9 de setembro, o Projeto de Lei 3101/2021 na Câmara dos Deputados. A ideia do PL foi sugerida à deputada pela Fiquem Sabendo (FS) e tem por objetivo alterar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para assegurar a transparência de informações sobre agentes públicos e agentes privados que recebam ou gerenciem recursos públicos.
  5. Angariar apoio de outras disciplinas. “Todos os setores da sociedade devem ser estimulados a se apoderar desse direito, o que já fazem muito bem os jornalistas, os pesquisadores e as polícias em suas investigações, que têm na LAI um instrumento fundamental para exercer suas atividades”, pontuou Reginaldo Lopes, economista, deputado federal (PT-MG) e autor do projeto que deu origem à Lei de Acesso à Informação, em artigo publicado no O Globo. Os jornalistas, por meio de figuras como Fernando Rodrigues e Marcelo Beraba, fundadores da Abraji, e organizações como Fórum de Direito de Acesso à Informações Públicas e a própria Abraji, desempenharam papel estrutural na aprovação da LAI. Agora precisamos de outros setores da sociedade na luta para salvá-la dos retrocessos eminentes!

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

Imagem mostra a palavra “Realização” seguida dos logos do Farol Jornalismo e da Abraji.

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