Jornalismo precisará redobrar as forças para defender a democracia em ano eleitoral

Sexta edição do projeto realizado pelo Farol Jornalismo e pela Abraji indica que o recrudescimento da violência, a falta de dados e a desinformação serão os principais desafios para a profissão em 2022

Moreno Osório
O jornalismo no Brasil em 2022
7 min readDec 9, 2021

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Depois de quase dois anos de pandemia, os jornalistas estão exaustos. E 2022 não vai nos deixar descansar.

A crise sanitária vem dando sinais de melhora, e embora o mundo sinta o peso de dois anos que às vezes se confundem por seu grau de extraordinariedade, há um horizonte positivo, que se cristaliza à medida em que avança a cobertura vacinal (e apesar do temor de novas variantes, como a ômicron). Não dá para dizer o mesmo para o ano que se avizinha para o jornalismo. A cobertura da pandemia, o maior desafio de uma geração de profissionais, vai prosseguir. Some-se a ela a cobertura de eleições majoritárias. Ambas acontecerão sob condições cada vez mais hostis para o exercício do trabalho jornalístico.

O ano de 2022 será difícil. O trabalho realizado pela imprensa encontrará um ecossistema de desinformação que captura os mecanismos de atenção e oferece à sociedade individualista um sistema de crenças que refuta a verdade em troca de dopamina e reconhecimento entre semelhantes. Transformada em política de governo, essa visão de mundo drena as forças do Estado democrático a partir de dentro enquanto ataca quem quer defendê-la a partir de fora. Ao jornalismo, um dos responsáveis pela defesa da democracia, não bastará somente apresentar os fatos. Será preciso ir além.

Mas como, se muitos dados, matéria-prima essencial ao exercício profissional, estão sendo negados ao jornalismo? Junto ao apagão das estatísticas oficiais, o que vem por aí é (ainda) menos transparência e a multiplicação de interpretações enviesadas da lei de proteção de informações pessoais como formas de atrapalhar o trabalho da imprensa. Sem falar que os ataques continuarão, nas redes e nas ruas, e direcionados principalmente às jornalistas mulheres, em um ano em que repórteres estarão, no Brasil inteiro, no percalço dos candidatos à presidência da República e aos governos dos Estados.

Além de expostos à violência das ruas, os jornalistas em 2022 podem não ter uma redação para voltar após a pauta. As consequências do fechamento, em 2020 e 2021, do local que marcou a identidade do jornalismo moderno ainda vão se fazer sentir por um bom tempo — e tendem a ser irreversíveis. O trabalho híbrido veio para ficar, e no momento parece apresentar muito mais ônus do que bônus para uma categoria cujo regime de trabalho se precariza ano após ano, e que durante a pandemia levou todas as tensões profissionais para dentro de um ambiente que deveria representar segurança: sua própria casa.

Ameaçados, precarizados e exaustos. É assim que os jornalistas brasileiros entrarão em 2022.

Mas nem tudo é terra arrasada. Em 2022 veremos ganhar importância um tipo de jornalismo que vem aparecendo com cada vez mais protagonismo nas edições d’O jornalismo no Brasil. Um jornalismo que vem transformando a profissão de fora para dentro, da periferia para o núcleo, e que empurra a prática jornalística ao encontro das necessidades impostas pelas transformações da sociedade. Um jornalismo estruturado na escuta e que aposta na proximidade do público como forma de distribuição. Um jornalismo mais plural, acessível e inclusivo — e por isso mais capaz de representar a complexidade brasileira.

Pela sexta vez, o Farol Jornalismo e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) convidam jornalistas e pesquisadores a refletir sobre o que espera o jornalismo no ano que se aproxima. Se chegamos ao fim de um ano com a impressão de que ele durou dois, será preciso redobrar as forças para enfrentar o próximo. Em 2022, o jornalismo será resistência. Ao resistir, reencontrará seus valores mais basilares, seja reafirmando práticas consolidadas, seja criando novas formas de cumprir seu papel social. É o que projetam os 10 autores e autoras convidados para esta edição d’O jornalismo no Brasil.

Sylvio Romero Corrêa da Costa, fundador do site Congresso em Foco, afirma que em 2022 jornalismo e democracia estarão sob teste, e que a batalha será dura. Em meio a um contexto de crescente autoritarismo, Costa sugere três frentes de atuação: apostar em parcerias com o saber científico, incorporar a tecnologia nos seus processos e buscar novas relações com o público. Além disso, ressalta que o jornalismo deve estar atento à sua tendência de desqualificar a política e os políticos. “​​Promover a ‘antipolítica’ facilita a vida dos populistas que se pretendem colocar acima das instituições e das leis”, escreveu.

Embora Sylvio Costa enumere algumas sugestões, há mais perguntas do que respostas a respeito de como cobrir política em 2022, como reflete a repórter do UOL Juliana Dal Piva. Uma delas é como dar igualdade de condições aos candidatos à presidência, sabendo-se que Bolsonaro rechaça e agride a imprensa e seus profissionais? “Empresas e jornalistas precisam avaliar alternativas para tentar […] tirar Bolsonaro de sua zona de conforto e trazê-lo para o confronto de ideias sobre o Brasil e sua gestão.” Não será fácil, pois Bolsonaro chegará na corrida eleitoral sem dados positivos para mostrar.

Quem alerta para o recrudescimento da violência contra os jornalistas é a pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Verônica Toste. “Com a aproximação das eleições no Brasil em 2022, a violência tende a crescer. Isso porque as pautas de cobertura jornalística mais associadas aos ataques costumam ser ligadas justamente à política e a eleições, seguidas por checagem de notícias e questões relacionadas a gênero, direitos humanos e políticas sociais”, escreveu.

Outro desafio para os jornalistas brasileiros em 2022 tende a ser o acesso a dados, segundo a jornalista Maria Vitória Ramos. A diretora do Fiquem Sabendo prevê que o jornalismo terá dificuldades para entregar as informações necessárias para que as pessoas comparem as candidaturas. Não só porque vem crescendo o uso indevido da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para censurar o acesso a dados e documentos públicos obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). Mas também porque bases de dados inteiras vêm sumindo ou estão deixando de ser atualizadas pelo poder público.

A falta de dados pode frear a curva ascendente do jornalismo científico, área que cresceu e amadureceu no Brasil e no mundo nos últimos anos. Para 2022, além da cobertura da pandemia, o jornalismo precisará estar ainda mais atento às mudanças climáticas. “De 2022 em diante, precisaremos cada vez mais contar essas histórias a partir da perspectiva local, de como cada fenômeno acontece e como isso modifica a vida de cada um de nós”, escreveu André Biernath, repórter de ciência da BBC Brasil.

E quanto menos dados, mais o terreno estará propício às notícias falsas. E o horizonte para 2022 não é dos melhores, aponta o editor do Aos Fatos Luís Felipe dos Santos. Em seu texto, ele nos mostra como a desinformação capturou os mecanismos de competição pela atenção. Em troca de reconhecimento e empatia de seus semelhantes, as pessoas se entregam a um “sistema de crenças” que muitas vezes está muito distante da verdade factual. O desafio para 2022 está além da checagem de fatos: será reencontrar as pessoas, de maneira a (re)construir redes de afetos que passem por fora da lógica das redes.

Nesse sentido, o jornalismo que costuma ser feito nas periferias brasileiras abre um horizonte de esperança. Laércio Portela, do Marco Zero Conteúdo, lista uma série de iniciativas espalhadas especialmente pelas regiões Norte e Nordeste e que surgem ancoradas no processo de escuta e usam a proximidade com o seu público como uma forma de distribuição. “A proximidade com a pauta, compromisso de escuta e entrega de um conteúdo capaz de relacionar o cotidiano das pessoas aos processos e projetos políticos deve fazer a diferença da cobertura jornalística no próximo ano”, escreveu.

Lenne Ferreira, do Alma Preta, tem uma visão parecida. Ela lembra que o jornalismo tradicional muitas vezes negligencia pautas e trata determinados segmentos sociais de maneira estereotipada. Mas isso vem mudando, especialmente a partir das reações das redes sociais, processo que vem se consolidando em anos recentes e que deve continuar com força em 2022. Afinal, diz ela, “é papel do jornalismo jogar luz sobre narrativas plurais, ir de encontro ao senso comum forjado em conceitos ultrapassados para o tempo presente e que não representam a realidade e diversidade que caracteriza o povo brasileiro”.

Se o jornalismo avança na diversidade, ainda deixa a desejar na acessibilidade, revela o jornalista Gustavo Torniero. A partir da própria experiência como cego e de dados disponíveis, ele mostra que são pouquíssimos os veículos da imprensa preocupados que seus conteúdos sejam acessados por pessoas com deficiência. Ele diz que acessibilidade e inclusão desse grupo deve ser uma prioridade para o jornalismo em 2022. “Só assim vamos fazer o que realmente é a nossa missão: fornecer informação de credibilidade, de qualidade e acessível para todas as pessoas”, escreveu.

Em 2022, a todos esses desafios os jornalistas devem somar as já conhecidas transformações na profissão. A mais recente, e cujo processo a pandemia acelerou, é o desaparecimento das redações e a consolidação de formas virtuais de organização do trabalho. Segundo as pesquisadoras da Universidade de São Paulo, Ana Flávia Marques e Janaina Visibeli, em 2022, a transição e as mudanças neste espaço continuarão. “Seja com o aperfeiçoamento da estrutura física, com a adoção do modelo híbrido ou do chamado ‘cloud based’, a tendência é que a redação seja cada vez mais enxuta, com jornalistas cumprindo funções relacionadas à ciência de dados e ao marketing”, projetam.

Dizer que 2022 será difícil é uma projeção fácil, senão óbvia. Que consigamos, apesar da exaustão, dos ataques e da precarização, fazer a profissão evoluir no ano que se avizinha — e assim reforçar ainda mais as barricadas de defesa da democracia.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022.

Imagem mostra a palavra “Realização” seguida dos logos do Farol Jornalismo e da Abraji.

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Moreno Osório
O jornalismo no Brasil em 2022

Jornalista, doutor em Comunicação, professor na PUCRS, cofundador do Farol Jornalismo e editor do projeto Jornalismo no Brasil