De fracasso em fracasso

Vivemos o fim de mais um ciclo

Roberto Moreira
O negócio do audiovisual
6 min readNov 19, 2019

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De tempos em tempos, mergulhamos em nova crise. Já perdi as contas de quantas vivi. Mas nenhuma superou o Plano Collorz.: com uma canetada, a Embrafilme acabou. Na crise atual nada ainda foi destruído, só paralisado. Quem sabe em dois anos encontraremos um novo normal. Mas quantos vão conseguir sobreviver até lá? Estamos vivendo a mesma triste história de desperdício e aspirações frustradas.

Houve ganhos neste milênio. O mercado brasileiro de cinema como um todo cresceu seis vezes e a renda dos cinemas alcançou 2,73 bilhões de Reais (Gráfico 1). Este crescimento tem relação direta com o aumento do número de salas, que duplicou no mesmo período em ritmo acelerado (Grafico 2). Ou seja, conforme aumentou a oferta e o acesso ao cinema, aumentou o consumo.

A produção cinematográfica também viveu um momento raro de bonança. Foram anos de pleno emprego e um volume de realizações ímpar. Graças à disponibilidade de recursos via Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), o número de filmes lançados no circuito comercial aumentou ano a ano, numa trajetória vertiginosa. Em 15 anos o número de filmes produzidos quintuplicou, pulando de 30 (2001) para 167 (2018) (Gráfico 3). E o número de espectadores do filme brasileiro mais do que triplicou (Gráfico 4). É claro que estas estatísticas variam muito de ano para ano em função dos títulos. Mas a tendência positiva parece clara. Também estamos conquistando prêmios inéditos em festivais internacionais. Este ano foi um marco importante, com prêmios em Cannes, mas o cinema brasileiro tem sido bem representado também em Berlim, Veneza, Sundance, Locarno, Rotterdam e tantos outros.

E ainda há muito espaço para crescer. O número de ingressos vendidos per capita, a frequência, ainda é baixo. Basta pensar que o brasileiro assiste menos de um filme por ano; para ser exato, a frequência em 2012 era de 0,8. Comparado com outros países, ocupamos a 24ª posição (Tabela 1). Poderíamos pelo menos dobrar, ou mesmo triplicar nossa frequência para alcançar o patamar do México, país com menos habitantes que o Brasil, renda per capita semelhante, mas cujo mercado cinematográfico é o dobro do nosso. Ou seja, o nosso mercado ainda é incipiente e deve continuar a crescer por vários anos.

Se os números são tão positivos, como entramos em crise? Como essa sensação de ufanismo esvaneceu tão rápido?

Os números acima são as únicas estatísticas positivas. Na verdade o filme brasileiro capturou pouco do crescimento do mercado. O número médio de espectadores por filme tem decrescido, ou seja, aumentamos o número de filmes, mas os filmes são vistos por menos pessoas (Gráfico 4). Tivemos um ano fora da curva em 2003 com 755 mil espectadores por filme brasileiro, mas nossa média de 2001 a 2018 é 226 mil espectadores, com tendência decrescente.

Há um descasamento entre a produção e o consumo. Apesar de uma grande oferta de filmes brasileiros, o público ignora quase todos. A estatística fica ainda mais dura se examinamos a evolução do ingresso per capita nesse período. O brasileiro vai 0,8 vezes ao cinema por ano, mas para ver o filme brasileiro vai 0,09. Grosso modo podemos dizer que o brasileiro assiste um filme nacional a cada dez anos! Apesar de o mercado ter crescido, nosso market share médio de 2001 a 2018 foi de 13%. E este número hoje depende de poucos filmes, geralmente comédias com Paulo Gustavo ou produções evangélicas da Record.

É claro que a pressão do filme americano sobre o mercado é acachapante. Mas essa é uma dificuldade mundial e, na comparação com outros países, em 2015 estávamos na 27ª posição em ocupação de mercado (Tabela 2). Ou seja, há 27 países que conseguem uma performance melhor que a nossa no enfrentamento com o filme americano. Cada uma dessas cinematografias possui legislações, contextos econômicos e tradições culturais muito específicas. É preciso lembrar que somos o décimo mercado mundial em números de ingressos vendidos (EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY, 2109) e, ainda assim, 17 países alcançam marca superior a 20% de fatia do mercado. Após a retomada, só alcançamos uma vez esse resultado.

Temos uma ocupação do mercado pequena, apesar de uma brutal injeção de recursos. Nos últimos dez anos, foram investidos 6 bilhões de Reais no audiovisual, dos quais talvez 2 bilhões tenham sido destinados à televisão e 4 ao cinema. Foi muito dinheiro com pouco resultado.

Mas temos muito para crescer e é a produção brasileira que vai puxar esse crescimento. No entanto é preciso gastar melhor, criando um vínculo claro entre investimento e resultado de público. Esse caminho não é impossível e já fiz minha proposta. Mas é preciso que a classe cinematográfica reconheça que o mercado também deve ser critério para a distribuição do fomento.

A história do cinema brasileiro é composta por ciclos e mais um se encerrou. Porque nosso caminho é tão atribulado? Ana Paula Souza (2018) em sua tese de doutorado sugere que a política de produção muda conforme os governos, com o setor alinhando-se sempre ao novo modelo, seja mais desenvolvimentista, seja mais liberal. Essa relação íntima com o Estado vem dos anos 30, como bem apontou Arthur Autran (2013). Brinco que desde que Humberto Mauro começou a trabalhar no Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), somos todos funcionários públicos! Quando o Estado atravessa uma crise fiscal, os recursos secam e a produção é paralisada. Completamente dependente do financiamento público, incapaz de atender à demanda do público e assim gerar renda para o produto brasileiro, nosso cinema vive de artifícios. Temos um mercado forte, mas uma cinematografia frágil. Quando bate a tempestade, naufraga.

Tabelas e gráficos

Gráfico 1: elaboração do autor. Fonte: FILME B.
Gráfico 2: elaboração do autor. Fonte: FILME B.
Gráfico 3: elaboração do autor. Fonte: FILME B.
Gráfico 4: elaboração do autor. Fonte: FILME B.
Tabela 1: elaboração do autor. Fonte: EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY, 2012.
Gráfico 5: elaboração do autor. Fonte: FILME B.
Gráfico 6: elaboração do autor. Fonte: FILME B.
Gráfico 7: elaboração do autor. Fonte: FILME B.
Tabela 2: elaboração do autor. Fonte: EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY, 2016.
Gráfico 8: elaboração do autor. Fonte: ANCINE.

Referências

AUTRAN, A. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. Hucitec Editora, 2013.

ANCINE. Valores totais de Investimento FSA, Recursos Incentivados, Editais, Programas e Prêmios — Em Reais (R$) — 2003 a 2018. Disponível em: https://oca.ancine.gov.br/recursos-publicos. Acesso em: 22 de outubro de 2019.

EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY. Focus 2018, World Film Market Trends. Marché du Film: Paris, 2019.

EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY. Focus 2012, World Film Market Trends. Marché du Film: Paris, 2013.

EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY. Focus 2015, World Film Market Trends. Marché du Film: Paris, 2016.

FILME B. Database Brasil. Disponível em: http://www.filmeb.com.br/database-brasil-2018. Acesso em: 22 de outubro de 2019.

SOUZA, A. P. DA S. E. Dos conflitos ao pacto : as lutas no campo cinematográfico brasileiro no século XXI. Campinas: Unicamp, 2018.

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Roberto Moreira
O negócio do audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.