Plataforma para o audiovisual brasileiro

Como organizar o fomento à produção independente

Roberto Moreira
O negócio do audiovisual
7 min readSep 30, 2019

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Central do Brasil (1998)

Não é exagero dizer que nunca tivemos um mercado para a produção audiovisual brasileira. No cinema, a penetração do produto estrangeiro a baixo custo sempre impediu a oferta de produtos brasileiros. Na televisão, a Rede Globo carreava todos os recursos, graças à sua competência, é certo, mas também contava com a intervenção estatal a seu favor. O fato é que um estúdio integrado verticalmente conseguiu concentrar praticamente todas as receitas da televisão brasileira. Estamos falando num faturamento de 10 bilhões de reais por ano. O único setor que viabilizou uma rede de produtores foi a publicidade, e graças a ela organizaram-se agentes econômicos de inegável competência. A esse quadro somam-se circunstâncias macroeconômicas muito adversas para uma atividade de alto risco, ou seja, juros muito altos, câmbio e inflação imprevisíveis.

Incapaz de regular efetivamente um mercado, o Estado interviu financiando a produção independente cinematográfica e televisiva com 100% de recursos públicos.

Esta é uma situação específica brasileira, pois, em países como França, Coréia e Argentina — onde o estado tem um papel fundamental na garantia de uma indústria nacional — , o recurso público soma-se ao privado. A experiência internacional demonstra que, para fazer frente à imprevisibilidade da performance do produto cultural, só há duas opções: montar grandes conglomerados integrados vertical e horizontalmente, como a Disney ou a Globo, ou intervir com regulação e subsídios para mitigar o risco e garantir diversidade de agentes econômicos.

Os EUA utilizaram os dois mecanismos para organizar sua indústria. Em 1948, o Paramount Act quebrou a verticalização dos estúdios americanos e os impediu de entrar na televisão; depois, em 1970, as regras conhecidas como fin-syn impediram que emissoras produzissem seu próprio conteúdo. O governo federal, por meio da Section 181 de sua lei fiscal, aportou incentivos, assim como vários programas estaduais. Mas esta ação estatal está combinada a um mercado privado muito dinâmico e de grande escala, no qual coexistem grandes conglomerados e pequenos produtores.

No Brasil, a dependência integral do recurso público e um mercado desorganizado impedem o setor de crescer. Umbilicalmente atado aos governos de plantão, a cada mudança de orientação econômica muda também a política do setor. Se o audiovisual não se reinventar e conquistar autonomia, continuará preso às crises cíclicas que marcaram a história do cinema brasileiro.

Em meio ao atual colapso do modelo estatal, surgiu a oportunidade do streaming. Pela primeira vez os produtores independentes brasileiros têm clientes que pagam pelo seu produto. Hoje são HBO, Netflix e a Globo. Amanhã, teremos todos os canais que hoje estão no cabo, além de Amazon, Vivo, Claro, Tim e Disney. Será um mercado de produtos audiovisuais com recursos para efetivamente financiar a produção independente.

É preciso garantir a sobrevivência dos agentes econômicos nacionais e permitir que tenham condições de adquirir produtos de qualidade, ou seja, criar mecanismos que equilibrem a disputa entre os vários compradores de produtos audiovisuais. Essa deve ser a função primeira do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

O coração dessa proposta é utilizar o que no mercado internacional é conhecido como matching fund, ou seja, fundos de contrapartida. De um lado, temos o FSA provendo parte dos recursos e, do outro, um ente público ou privado completando o financiamento. Assim, o investimento do FSA favorece o desenvolvimento de um mercado para a produção independente e, mais importante, atrai novos recursos para a atividade.

Como aproveitar as oportunidades criadas pelo digital sem colocar a perder as inúmeras conquistas dos últimos anos? É preciso realizar uma transição suave, que vá aos poucos oferecendo vantagens a quem aportar capitais privados para o negócio. Também é necessário simplificar e racionalizar o cabedal de leis e normas vigentes. Mantidas as coisas como estão, esse mercado se desenvolverá de modo predatório, sem diversidade e dependente do financiamento externo ou, se houver, estatal.

Qual pode ser o desenho desse novo quadro institucional?

Incentivo a serviços de produção

O mecanismo mais utilizado para atrair produções estrangeiras é o reembolso de impostos (tax rebate), ou seja, o produtor recebe reembolso de uma porcentagem dos impostos que sua produção pagaria no país, de modo a diminuir os seus custos. Chile e Uruguai, nossos vizinhos e concorrentes, oferecem 25% de retorno, e a Colombia é ainda mais agressiva, com 40%. Hoje já são mais de 95 países, regiões ou cidades oferecendo esse tipo de incentivo.

São inúmeras as vantagens: divulgação da imagem do país no exterior, transferência de know-how, oportunidade de negócio para as produtoras nacionais e atração de capitais para o país, pois a experiência internacional demonstra que o saldo compensa o prêmio oferecido.

Hoje já há uma disputa internacional pelos recursos dos grandes conglomerados internacionais, sejam eles espanhóis, americanos ou chineses. Por isso, temos que entrar nesse jogo para ganhar.

Incentivo à produção industrial

No mundo, a política pública que apresenta melhores resultados são os fundos de investimento coreanos. O mecanismo é simples: o Estado tem um investimento minoritário e o resto é coberto por distribuidores e fundos de capital de risco. Conforme os resultados são aferidos, a iniciativa privada é a primeira a se remunerar, de modo que, caso haja prejuízo, o estado o absorve. Trata-se de mitigar o alto risco do investimento em audiovisual. Mecanismos de matching fund são de uso corrente em vários países; aqui poderíamos desenhar um mecanismo com as seguintes características:

  1. O estado entraria com até 49% e os gestores do fundo teriam que garantir 51% dos recursos privados. Não temos ainda tradição de investimento de risco através do mercado de capitais e é importante sinalizar que o audiovisual é um investimento muito atraente. Mas, mais importante, é garantir que o agente privado seja majoritário.
  2. Dos 49% investidos pelo FSA, 25% das equities seriam destinadas ao produtor do filme, garantindo receitas de longo prazo para a produção, elo mais frágil da cadeia produtiva.
  3. A linha editorial do Fundo seria controlada pelo investidor privado.
  4. Os vários títulos teriam colaterização cruzada, ou seja, o prejuízo de um título é coberto pelo resultado de outro.
  5. O objeto do financiamento será exclusivamente a produção audiovisual, incluindo-se aí as despesas de comercialização. Por que excluir atividades como exibição, financiamento de plataformas ou infraestrutura? Porque estão bem menos expostas ao risco.
  6. Também seria interessante permitir que empresas de diferentes segmentos montassem consórcios de financiamento, a exemplo dos Production Committes japoneses. Neles, distribuidores, exibidores, televisões, TV a cabo, empresas de streaming, internet, publicidade etc. aportam recursos fazendo jus a diferentes remunerações. Assim, cada fundo coordenaria os esforços de vários agentes econômicos para maximizar o retorno.
  7. No meu entender, sendo o FSA minoritário, o exame das contas deve seguir as práticas de mercado, ou seja, a Ancine teria direito de acompanhar os investimentos de um fundo do mesmo modo que qualquer outro sócio. O mercado internacional tem práticas consagradas, e empresas como PWC, Deloitte, KPMG e Ernest & Young, tem experiência no ramo. Também poderíamos adotar procedimentos de controle no mercado internacional como os completion bonds.

Empréstimo

O FSA conta com 200 milhões destinados a empréstimo. Já foram desenhadas, e serão lançadas brevemente, várias linhas de financiamento a juros subsidiados para pesquisa e desenvolvimento, renovação do parque de equipamentos, capital de giro para as empresas e adiantamento de recebíveis. Esta é a modalidade de investimento natural para a infraestrutura, um setor que consegue se remunerar de modo previsível e contínuo.

Incentivo à produção regional e às televisões públicas

O apoio à regionalização e às televisões públicas aconteceria por meio de fundos financiados até 49% por cento pelo FSA e em ao menos 51% pelo outro ente público. A escolha dos mecanismos de investimento, prioridades e organização do processo de escolha seriam de responsabilidade da televisão, do estado ou município. O ideal é que também assumissem a responsabilidade pela fiscalização.

Apoio ao filme médio

A produção industrial tende a se concentrar em títulos com valores de produção altos para que se diferenciem num mercado altamente competitivo. Para o produto brasileiro conquistar market share este perfil de produto é necessário. No entanto, é importante garantir um contexto diversificado, capaz de gerar talentos e inovação. E, nesse sentido, o filme médio é fundamental.

É importante ser generoso no financiamento porque a vida comercial desses filmes é difícil. Aqui o incentivo seria de 100% até um teto definido pelo FSA; o que excedesse este teto teria que ser captado junto a investidores privados.

Os recursos públicos poderiam ser aportados por editais — sejam das regiões, sejam da Secretaria do Audiovisual — e pelo Sistema de Suporte Financeiro Automático (SUAT), no qual cada filme recebe recursos em função do seu número de espectadores ou do número de prêmios em festivais, e a produção televisiva a partir do valor de seus lincenciamentos. É importante que, na definição do perfil do SUAT, sejam privilegiados o cinema e a televisão que não alcançam expressivo resultado financeiro.

Apoio à Renovação

A Secretaria do Audiovisual (SAV) do Ministério da Cidadania organizaria editais para primeiro e segundo filme, piloto de série, game e curta metragen. Os recursos seriam o FSA e a gestão da SAV, como já ocorre hoje.

Conclusão

Este ainda é um esboço pouco detalhado. Teríamos que fazer simulações e acertar muitos detalhes. Mas o importante agora é definir as linhas gerais de um modelo capaz de viabilizar a consolidação de uma indústria do audiovisual diversa e competitiva.

É importante ressaltar que, nesse modelo, à Ancine cabe apenas regular e acompanhar o mercado. A atividade de fomento, a escolha de projetos e a fiscalização estariam a cargo de outros entes estatais ou privados.

A transição dos mecanismos atuais para esta proposta deve ser realizada lentamente. Qualquer mudança na política de financiamentos do FSA demora pelo menos 3 anos para surtir efeitos. E a cada mudança é precisao avaliar e corrigir distorções. O processo é lento mesmo.

Há mais um agravante, esse cultural. Pensar o audiovisual independente como negócio pressupõe um novo modo de agir. E mudar hábitos e comportamentos sempre é lento e difícil. Mas qual a opção hoje? Quem subestimar a importância das mudanças tecnológicas em curso vai quebrar, ou se condenar à irrelevância. É simples assim.

Nos textos anteriores dessa série examinei a especificidade econômica da indústria do audiovisual, com ênfase no cinema, e apresentei como EUA, Japão, Coréia e França organizaram suas indústrias. A descrição dos EUA é a mais detalhada, pela sua complexidade, dinamismo e hegemonia no mercado cinematográfico global.

A proposta acima surgiu da minha experiência na formulação de políticas públicas e da pesquisa que está substanciada nos textos abaixo. Basta clicar no título para acessar.

O celular e nós

Um negócio extraordinário

EUA I: Ascensão e queda dos estúdios

EUA II: produzindo filme a filme

EUA III: Blockbuster or die

Japão, França e Coréia

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Roberto Moreira
O negócio do audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.