Plataforma para o audiovisual brasileiro
Como organizar o fomento à produção independente
Não é exagero dizer que nunca tivemos um mercado para a produção audiovisual brasileira. No cinema, a penetração do produto estrangeiro a baixo custo sempre impediu a oferta de produtos brasileiros. Na televisão, a Rede Globo carreava todos os recursos, graças à sua competência, é certo, mas também contava com a intervenção estatal a seu favor. O fato é que um estúdio integrado verticalmente conseguiu concentrar praticamente todas as receitas da televisão brasileira. Estamos falando num faturamento de 10 bilhões de reais por ano. O único setor que viabilizou uma rede de produtores foi a publicidade, e graças a ela organizaram-se agentes econômicos de inegável competência. A esse quadro somam-se circunstâncias macroeconômicas muito adversas para uma atividade de alto risco, ou seja, juros muito altos, câmbio e inflação imprevisíveis.
Incapaz de regular efetivamente um mercado, o Estado interviu financiando a produção independente cinematográfica e televisiva com 100% de recursos públicos.
Esta é uma situação específica brasileira, pois, em países como França, Coréia e Argentina — onde o estado tem um papel fundamental na garantia de uma indústria nacional — , o recurso público soma-se ao privado. A experiência internacional demonstra que, para fazer frente à imprevisibilidade da performance do produto cultural, só há duas opções: montar grandes conglomerados integrados vertical e horizontalmente, como a Disney ou a Globo, ou intervir com regulação e subsídios para mitigar o risco e garantir diversidade de agentes econômicos.
Os EUA utilizaram os dois mecanismos para organizar sua indústria. Em 1948, o Paramount Act quebrou a verticalização dos estúdios americanos e os impediu de entrar na televisão; depois, em 1970, as regras conhecidas como fin-syn impediram que emissoras produzissem seu próprio conteúdo. O governo federal, por meio da Section 181 de sua lei fiscal, aportou incentivos, assim como vários programas estaduais. Mas esta ação estatal está combinada a um mercado privado muito dinâmico e de grande escala, no qual coexistem grandes conglomerados e pequenos produtores.
No Brasil, a dependência integral do recurso público e um mercado desorganizado impedem o setor de crescer. Umbilicalmente atado aos governos de plantão, a cada mudança de orientação econômica muda também a política do setor. Se o audiovisual não se reinventar e conquistar autonomia, continuará preso às crises cíclicas que marcaram a história do cinema brasileiro.
Em meio ao atual colapso do modelo estatal, surgiu a oportunidade do streaming. Pela primeira vez os produtores independentes brasileiros têm clientes que pagam pelo seu produto. Hoje são HBO, Netflix e a Globo. Amanhã, teremos todos os canais que hoje estão no cabo, além de Amazon, Vivo, Claro, Tim e Disney. Será um mercado de produtos audiovisuais com recursos para efetivamente financiar a produção independente.
É preciso garantir a sobrevivência dos agentes econômicos nacionais e permitir que tenham condições de adquirir produtos de qualidade, ou seja, criar mecanismos que equilibrem a disputa entre os vários compradores de produtos audiovisuais. Essa deve ser a função primeira do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
O coração dessa proposta é utilizar o que no mercado internacional é conhecido como matching fund, ou seja, fundos de contrapartida. De um lado, temos o FSA provendo parte dos recursos e, do outro, um ente público ou privado completando o financiamento. Assim, o investimento do FSA favorece o desenvolvimento de um mercado para a produção independente e, mais importante, atrai novos recursos para a atividade.
Como aproveitar as oportunidades criadas pelo digital sem colocar a perder as inúmeras conquistas dos últimos anos? É preciso realizar uma transição suave, que vá aos poucos oferecendo vantagens a quem aportar capitais privados para o negócio. Também é necessário simplificar e racionalizar o cabedal de leis e normas vigentes. Mantidas as coisas como estão, esse mercado se desenvolverá de modo predatório, sem diversidade e dependente do financiamento externo ou, se houver, estatal.
Qual pode ser o desenho desse novo quadro institucional?
Incentivo a serviços de produção
O mecanismo mais utilizado para atrair produções estrangeiras é o reembolso de impostos (tax rebate), ou seja, o produtor recebe reembolso de uma porcentagem dos impostos que sua produção pagaria no país, de modo a diminuir os seus custos. Chile e Uruguai, nossos vizinhos e concorrentes, oferecem 25% de retorno, e a Colombia é ainda mais agressiva, com 40%. Hoje já são mais de 95 países, regiões ou cidades oferecendo esse tipo de incentivo.
São inúmeras as vantagens: divulgação da imagem do país no exterior, transferência de know-how, oportunidade de negócio para as produtoras nacionais e atração de capitais para o país, pois a experiência internacional demonstra que o saldo compensa o prêmio oferecido.
Hoje já há uma disputa internacional pelos recursos dos grandes conglomerados internacionais, sejam eles espanhóis, americanos ou chineses. Por isso, temos que entrar nesse jogo para ganhar.
Incentivo à produção industrial
No mundo, a política pública que apresenta melhores resultados são os fundos de investimento coreanos. O mecanismo é simples: o Estado tem um investimento minoritário e o resto é coberto por distribuidores e fundos de capital de risco. Conforme os resultados são aferidos, a iniciativa privada é a primeira a se remunerar, de modo que, caso haja prejuízo, o estado o absorve. Trata-se de mitigar o alto risco do investimento em audiovisual. Mecanismos de matching fund são de uso corrente em vários países; aqui poderíamos desenhar um mecanismo com as seguintes características:
- O estado entraria com até 49% e os gestores do fundo teriam que garantir 51% dos recursos privados. Não temos ainda tradição de investimento de risco através do mercado de capitais e é importante sinalizar que o audiovisual é um investimento muito atraente. Mas, mais importante, é garantir que o agente privado seja majoritário.
- Dos 49% investidos pelo FSA, 25% das equities seriam destinadas ao produtor do filme, garantindo receitas de longo prazo para a produção, elo mais frágil da cadeia produtiva.
- A linha editorial do Fundo seria controlada pelo investidor privado.
- Os vários títulos teriam colaterização cruzada, ou seja, o prejuízo de um título é coberto pelo resultado de outro.
- O objeto do financiamento será exclusivamente a produção audiovisual, incluindo-se aí as despesas de comercialização. Por que excluir atividades como exibição, financiamento de plataformas ou infraestrutura? Porque estão bem menos expostas ao risco.
- Também seria interessante permitir que empresas de diferentes segmentos montassem consórcios de financiamento, a exemplo dos Production Committes japoneses. Neles, distribuidores, exibidores, televisões, TV a cabo, empresas de streaming, internet, publicidade etc. aportam recursos fazendo jus a diferentes remunerações. Assim, cada fundo coordenaria os esforços de vários agentes econômicos para maximizar o retorno.
- No meu entender, sendo o FSA minoritário, o exame das contas deve seguir as práticas de mercado, ou seja, a Ancine teria direito de acompanhar os investimentos de um fundo do mesmo modo que qualquer outro sócio. O mercado internacional tem práticas consagradas, e empresas como PWC, Deloitte, KPMG e Ernest & Young, tem experiência no ramo. Também poderíamos adotar procedimentos de controle no mercado internacional como os completion bonds.
Empréstimo
O FSA conta com 200 milhões destinados a empréstimo. Já foram desenhadas, e serão lançadas brevemente, várias linhas de financiamento a juros subsidiados para pesquisa e desenvolvimento, renovação do parque de equipamentos, capital de giro para as empresas e adiantamento de recebíveis. Esta é a modalidade de investimento natural para a infraestrutura, um setor que consegue se remunerar de modo previsível e contínuo.
Incentivo à produção regional e às televisões públicas
O apoio à regionalização e às televisões públicas aconteceria por meio de fundos financiados até 49% por cento pelo FSA e em ao menos 51% pelo outro ente público. A escolha dos mecanismos de investimento, prioridades e organização do processo de escolha seriam de responsabilidade da televisão, do estado ou município. O ideal é que também assumissem a responsabilidade pela fiscalização.
Apoio ao filme médio
A produção industrial tende a se concentrar em títulos com valores de produção altos para que se diferenciem num mercado altamente competitivo. Para o produto brasileiro conquistar market share este perfil de produto é necessário. No entanto, é importante garantir um contexto diversificado, capaz de gerar talentos e inovação. E, nesse sentido, o filme médio é fundamental.
É importante ser generoso no financiamento porque a vida comercial desses filmes é difícil. Aqui o incentivo seria de 100% até um teto definido pelo FSA; o que excedesse este teto teria que ser captado junto a investidores privados.
Os recursos públicos poderiam ser aportados por editais — sejam das regiões, sejam da Secretaria do Audiovisual — e pelo Sistema de Suporte Financeiro Automático (SUAT), no qual cada filme recebe recursos em função do seu número de espectadores ou do número de prêmios em festivais, e a produção televisiva a partir do valor de seus lincenciamentos. É importante que, na definição do perfil do SUAT, sejam privilegiados o cinema e a televisão que não alcançam expressivo resultado financeiro.
Apoio à Renovação
A Secretaria do Audiovisual (SAV) do Ministério da Cidadania organizaria editais para primeiro e segundo filme, piloto de série, game e curta metragen. Os recursos seriam o FSA e a gestão da SAV, como já ocorre hoje.
Conclusão
Este ainda é um esboço pouco detalhado. Teríamos que fazer simulações e acertar muitos detalhes. Mas o importante agora é definir as linhas gerais de um modelo capaz de viabilizar a consolidação de uma indústria do audiovisual diversa e competitiva.
É importante ressaltar que, nesse modelo, à Ancine cabe apenas regular e acompanhar o mercado. A atividade de fomento, a escolha de projetos e a fiscalização estariam a cargo de outros entes estatais ou privados.
A transição dos mecanismos atuais para esta proposta deve ser realizada lentamente. Qualquer mudança na política de financiamentos do FSA demora pelo menos 3 anos para surtir efeitos. E a cada mudança é precisao avaliar e corrigir distorções. O processo é lento mesmo.
Há mais um agravante, esse cultural. Pensar o audiovisual independente como negócio pressupõe um novo modo de agir. E mudar hábitos e comportamentos sempre é lento e difícil. Mas qual a opção hoje? Quem subestimar a importância das mudanças tecnológicas em curso vai quebrar, ou se condenar à irrelevância. É simples assim.
Nos textos anteriores dessa série examinei a especificidade econômica da indústria do audiovisual, com ênfase no cinema, e apresentei como EUA, Japão, Coréia e França organizaram suas indústrias. A descrição dos EUA é a mais detalhada, pela sua complexidade, dinamismo e hegemonia no mercado cinematográfico global.
A proposta acima surgiu da minha experiência na formulação de políticas públicas e da pesquisa que está substanciada nos textos abaixo. Basta clicar no título para acessar.
EUA I: Ascensão e queda dos estúdios