casa da matriz #2 (veneno)

Felipe Drummond
O Ser Nostálgico
Published in
8 min readJul 4, 2020

(esse é a segunda de quatro partes desse textão de quatro blocos que faço de homenagem à Casa da Matriz, à noite alternativa carioca e a tudo o que isso me significa. A primeira parte você pode ler aqui )

Quinta-feira, 13 de dezembro de 2007.

Quando me pergunto que categoria do jogo “Perfil”eu mais gosto de jogar, sequer tenho dúvida de que é ANO. Possivelmente, trata-se de um sintoma da obsessão nostálgica com o passar do tempo. Conseguir associar eventos memoriais a sequências de quatro dígitos (ex: “guerra” me lembrar 1945, “câncer” me lembrar 2002, “carro” me lembrar 2007, “fossa” ser 2009, e por aí vai) é um truque nostálgico violento, quase um mnemônico da alma. Mas, na real, o meu lance não é exatamente com os anos, mas com as datas.

Dito isso, não é estranho que eu me lembre da primeira vez em que fui à Matriz e, finalmente, a achei maravilhosa: na época não havia a expressão, mas foi o dia em que finalmente eu e ela “demos match” (risadas do tipo “rsrsrsrsrsrs”). Era uma quinta-feira, antevéspera da minha festa de formatura do Ensino Médio.

Estávamos alguns colegas e uma querida professora, nossa amiga Fefa, apenas quase uma década mais velha, no Academia da Cachaça bebemorando o fim do ano letivo com a tal da inesquecível caipivodka de fruta do conde. Eu teria dificuldade de lembrar quem estava junto e por isso me penitencio. Toda falha de memória será cobrada. Ninguém tinha bebido muito, mas acho que o clima era festivo e, por oportuna sugestão dela, fomos parar na Casa da Matriz, onde aconteceria a festa Veneno. Alguns dos que estavam no bar foram, outros não.

Os mais desavisados que ora lêem talvez não saibam, mas, nessa época, acho que nenhuma festa servia comida, nenhuma festa tinha evento descolado no Facebook com instruções e disclaimers sobre diretivas de comportamento respeitoso e, principalmente, quase não havia essas festas itinerantes, isto é, não havia um calendário de festas com produtores independentes que alugam as casas noturnas e outros espaços de eventos de forma variável. Os calendários de festas eram, em regra, simplesmente semanais e vinculados à casa. Todo dia da semana em dada casa noturna tinha uma determinada festa, com um determinado DJ, de determinado estilo. E algumas pessoas eram, simplesmente, habitués dessas festas.

Tá, é brega, você já sabe, mas me deixa definir. Ser habitué de algo (define o Google como “substantivo masculino frequentador assíduo; habituado.”) é o termo de melhor precisão vocabular para descrever o que eu iria me tornar da Veneno, ou melhor, das quintas-feiras na Casa da Matriz.

Antes que eu fale de quinta-feiras, e dessa quinta-feira 13/12/2007, vamos falar dos outros dias da semana.

Nessa época, como disse, a coisa fervia. Não havia Tinder, não havia Spotify, não havia Netflix, o rock era um gênero pulsante e havia uma cena alternativa com cara de coisa do momento, que contemplava diversos estilos. Talvez faltassem motivos para ficar em casa. O Rio de Janeiro não era uma cidade mais segura, mas as pessoas, mesmo assim, saíam muito à noite. Certamente, mais do que hoje. Acredite se quiser, mas a noite alternativa só parava na terça-feira. E a Casa da Matriz parecia capitanear essa pujança.

Acho que vale explicar como funcionava esse esquema das festas residentes e, para isso, vou pegar o que rolava nesse início da minha vivência na Casa da Matriz, quando, aliás, “evento de Facebook” não havia. O Orkut é que dava as caras como presença virtual de algo.

Na segunda-feira, a Matriz fervia com “A Maldita”, de que falei acima. Mais uma vez: é real, dou fé e certifico que havia gente dançando rock até tarde da madrugada de segunda para terça-feira. Que fauna frequentava essa festa? Quem podia se dar ao luxo de começar a semana assim? Queria até hoje saber, mas garanto que quando fui a frequência era um pouco mais velha. Parece doido, mas, não à toa, o lema da festa era “COMECE A SEMANA SE ACABANDO”. Quem me dera poder.

As terças-feiras eram o domingo do pessoal. Dia do descanso. Matriz fechada. Fique em casa e peça a horrível pizza Domino’s (2 por 1).

Quarta, por muito tempo, rolou na Matriz uma festa chamada Digital Dubs, que, pesquisei agora no Google, tocava reggae. Eu nunca fui.

Quinta, era a Veneno (com a Febre). Calma que eu já chego nela.

Sexta era Brazooka, de música brasileira. Também nunca frequentei, porque eu preferia dançar rock em outras casas nesse dia. O Grupo Matriz tinha outras casas além da Casa da Matriz e dominava cena: sempre havia um lugar para dançar rock alternativo.

Sábado era a Paradiso, festa de rock muito respeitada, mas frequentada por um pessoal uns 10 anos mais velho, que tinha uma vibe uns dez anos mais velho, que gostava de uns rocks uns 10 anos mais velhos. Tinha a impressão que era um lance de gente que faria carão se eu pedisse meus Franz Ferdinand, Arctic Monkeys, etc, mas, como só fui uma única vez, talvez seja puro preconceito. Nunca vou saber.

Domingo, em vez do Fantástico, era a vez da Sundae Tracks, que trazia um rock mais miscelânea, sempre muito animado, capitaneada pelo famoso DJ Melvin, a “lenda do rock carioca”, um sujeito simpático que estudou no mesmo colégio que eu e que, até hoje, bem aceita meus pedidos musicais possivelmente inoportunos.

Voltemos à quinta.

do twitter

Quinta-feira sempre foi, é e (mentalmente) sempre será o dia da Veneno.

Veneno, ou Veneno Disco Clube, é, simplesmente, a festa que mais frequentei na vida, a festa de que mais gostei na vida. Eu ousaria dizer que é uma entidade na minha formação pessoal e musical.

A Veneno era simplesmente uma festa consideravelmente eclética em estilos, em tempos, sem deixar de ser alternativa. Tocava um pouco do que é clássico, um pouco do que foi clássico, um pouco do que está na moda e de vez em quando uma coisas meio desconhecidas. Se um dia tocar alguma música na rádio e alguém de quase 30 anos falar “nossa, que música de Matriz!”, fique tranquilo: possivelmente é Never There do Cake ou, se não for, provavelmente é algo que tocava na Veneno (e não em outra festa).

A alma da festa foi ao longo dos anos o DJ Tulio Araujo, a quem nunca tive a oportunidade de agradecer por ter semeado tão boas memórias nas vezes em que tocou, mas ainda o farei — talvez ao lhe enviar esse texto. Perdoem-me os amigos DJs, mas o Tulio era imbatível, pois, além de ter repertório excelente e boas sacadas, ainda fazia mixagens louváveis in loco. Não era um shuffle humano, como tantos outros passaram a conduzir ao atacarem de DJs a ponto de o Spotify conseguir fazer transições melhores, mas era, autenticamente, um gerenciador da capacidade de levar plenitude que Deus conferiu a essa invenção doida chamada festa noturna: colocar música gravada em alto volume, em ambiente escuro, com luzes piscantes, para pessoas aglomeradas. Tulio percebia bem o clima da pista, marcava bem as fases da evolução de uma festa e, sem dificuldade, conseguia eletrizar. Nunca o vi presepar e, não à toa, o sucesso da festa sempre teve nome e sobrenome.

Foto: I Hate Flash / Divulgação (disponível em www.oglobo.com.br)

Outros DJs passaram pela festa, entre eles o querido amigo DJ Flavio Canetti, que estava naquele início de que fui frequentador, a quem credito ter me feito conhecer diversas músicas na Veneno e em outras festas nas quais tocou (DRAF, Hey Ya, etc). Também foi numa Veneno em que eu descobri Billy Jean do Michael Jackson (sim, pasme), quando a amada DJ Tati da Vila, que fazia uma participação especial, colocou a famosa música de MJ para tocar e eu, numa época em que não havia Shazam, Soundhound ou aplicativos de identificação musical, precisei perguntar qual era o nome da música para anotar no celular e baixar depois, fato de que até hoje ela ri, com razão, em incrível reminiscência do meu eu novato na noite alternativa carioca. Caraca, eu não conhecia Billy Jean. Eu não tenho vergonha de admitir.

Cheguei à Matriz naquela quinta-feira, 13/12/2017, talvez dando uma das primeiras carteiradas dos dezoito anos em lugares de dezoito anos: passara os últimos meses igual um louco estudando para vestibular e estava naquele momento de alívio. Dali a dois dias, seria a formatura. Dali a três dias, eu deixava a grande referência que foi pra mim o Colégio (o mesmo do Rubel) para me lançar no mundo estranho chamado UERJ, para onde tive a tremenda alegria de entrar e de onde tive o tremendo alívio de sair (felizmente, formado). Foi uma experiência controversa, mas, a esse momento, eu nutria esperanças sobre como seria minha vida universitária e minha vida adulta. Terminar colégio e cair na vida jovem adulta é uma experiência sensacional que dura o tempo necessário para se ver a dureza de ser adulto o que, para mim, envolveu necessariamente o fim da faculdade e o peso de ter que ser alguma coisa, ganhar dinheiro, buscar meu caminho fora do ninho familiar.

Posso dizer que a entrada na minha vida jovem adulta envolveu entrar na Matriz e nela permanecer por bons anos. E entrar na Matriz não era uma experiência qualquer. Não era casual.

A entrada na Matriz era algo que se fazia num toldo, na rua, do lado de fora. Envolvia ser revistado, entregar seu documento, seu telefone e receber uma cartela, onde era anotado seu consumo. Ali, todos os itens do cardápio de bebidas (e umas comidinhas que poucos devem ter experimentado) apareciam, com uns quadradinhos ao lado. Conforme o consumo, o quadradinho era marcado. Ao pagar, eles carimbavam “pago”. E assim você podia sair. Os preços eram variados conforme você se inscrevesse numa “lista amiga” que rolava nas comunidades de Orkut ou portasse alguma filipeta (flyer) promocional do evento. Era sempre caro entrar tarde e sem filipeta.

Mas entrar propriamente na Matriz, na pista 1 defronte à escadaria nem sempre aberta, envolvia abrir uma porta dupla, um verdadeiro portal para aquele mundo escuro onde a magia acontecia no piso xadrez. O piso xadrez que um dia eu terei igual na minha cozinha.

A Matriz não era grande, não era bem ventilada, não tinha a melhor iluminação da noite. Havia boates melhores em outros aspectos, mas a Matriz sempre foi a melhor em alguma coisa que eu tenho dificuldade de dizer. Naquela época, aliás, — pasme a geração Z e suas questiúnculas atuais — era permitido fumar em ambientes fechados, o que só foi proibido em maio de 2008. E muita, muita gente fumava naquele que meu amigo chamou de “ovo esfumaçado”. Era impossível sair de lá sem estar completamente fedido a cigarro. Foi assim nas primeiras Venenos e, especialmente, na primeira Veneno.

Qualquer boa experiência na vida nos diz algo sobre nós mesmos. Depois de 13 de dezembro de 2007, toda quinta-feira tornou-se uma Veneno ida — ou perdida. Aquela minha primeira Veneno, em prenúncio do que virariam as tantas outras Venenos e noites parecidas a que fui na vida (quase 50 Venenos?), permitiu-me descobrir uma coisa sensacional a meu respeito: eu amava dançar — e não sabia.

(CONTINUA NA TERCEIRA PARTE — clique aqui.)

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