casa da matriz #3 (dancing animal)

Felipe Drummond
O Ser Nostálgico
Published in
10 min readJul 12, 2020

(esse texto é a terceira parte de uma série que começou aqui (clique para ler a primeira parte).

https://kekanto.com.br/biz/casa-da-matriz/fotos/194334

Normalmente, no dia seguinte a uma noitada, as pessoas acordam podres por terem dormido pouco, por estarem de ressaca ou por um pouco das duas coisas juntas. Contudo, meu típico “dia seguinte a uma noitada”, quando também não envolvia um pouco de ressaca ou insônia, já que nunca fui muito de beber, normalmente envolvia um cara rouco ou até completamente sem voz. Em 14 de dezembro de 2007 (se você chegou agora e não entendeu porque eu mencionei essa data, vai logo ler a segunda parte do texto), acordei mudo. Era justamente a véspera da formatura do ensino médio , na qual eu faria um longo discurso. Enfim, passei um dia poupando a voz ao limite e, por sorte, acabou dando tudo certo no dia 15 e eu fiz meu discurso.

Acordei mudo naquela sexta-feira, porque naquela Veneno tocou muita coisa boa. E é difícil não cantar a plenos pulmões: fui descobrir o quão maravilhoso era naquele dia. Tocaram muitas músicas que conversavam com a minha alma, com coisas adolescentes que ainda estavam em mim, com novas músicas que eu começava a gostar, com clássicos que até então não tinham entrado no meu radar. Muita música que eu já gostava, muita música que eu não conhecia e passei a gostar, muita música que eu nunca gostei de verdade até recentemente, quando comecei a gostar por mero gatilho nostálgico de um todo maior maravilhoso que foi aquela época.

Explicar o que eu vejo de tão maravilhoso em boate é algo que eu tenho que fazer com periodicidade superior à que eu gostaria. Sinto-me incompreendido, especialmente por minha esposa, que acredita que eu tenho algo mal resolvido com o assunto. Espero que ela leia isso aqui e entenda melhor a questão. As pessoas, e não apenas ela, têm dificuldade de entender por que, mesmo com o passar dos anos e do tempo em que isso era “moda”, eu vou tendo muitos e variados motivos para simplesmente dizer que “ir à discoteca” ainda está no meu top 5 atividades favoritas. Motivos, aliás, que também vão mudando com o tempo e com a evolução de meu parco autoconhecimento, mas que giram em torno sempre de um mesmo eixo. Lá vai em negrito: EU, simplesmente, GOSTO DEMAIS de dançar música, em ALTO volume, no ESCURO, com alguma LUZ caótica. E isso não é sobre ninguém, nenhum lugar, nenhuma época mas apenas sobre eu, a música, o escuro e essa tal luz.

De vez em quando, tento entender o fenômeno mundial do declínio da atividade de boate, leio vários artigos falando sobre os hábitos de diversão dos millenials mais novos, da geração Z e sobre como isso afetou o clubbing em Berlim, Londres e outras cidades que sempre ferveram na noite. Em um desses, que agora não consigo achar para aqui recomendar (relendo, achei), parei numa referência aos frequentadores a se escassear como os sobreviventes de uma subespécie humana, que seriam os tais dancing animals.

Quando li esse termo assim desenhado, levantei a mão mentalmente como quem diz “a essa tribo eu pertenço!”. Sou da fauna dos dancing animals perdidos por aí, que resistem ao tempo interno, às tendências novas que nos fazem parecer velhos porque ficamos sempre tendendo às coisas antigas, às modas que nos deslocam ao espelho do corpo ou da alma e que, sobretudo, resistem às vezes de forma meramente psicológica — ou nostálgica- ao sofrimento do declínio de toda uma cena e de uma forma de entretenimento que ainda não encontrou substituto.

O dancing animal é um alguém de “pista”. E eu sou daqueles dancing animals que foram morar em cidade de interior, onde o que manda são os sofríveis “bar com música ao vivo” e, em tentativa vã de compensação, precisam fazer playlists de músicas boate no Spotify para ouvir na academia ou, melhor, para tremerem ao volante, com som alto, dirigindo na estrada, o que penso ser a coisa mais próxima da energia de uma boate que se pode encontrar fora do ambiente de uma boate. Experimente, mas com cuidado (olha o art. 228 do Código de Trânsito).

Faltam aos que não são dancing animals a compreensão básica sobre o fato de que algumas coisas que podem parecer essenciais são, na verdade, meramente contingentes à experiência de boate. Existe boate sem álcool. Existe boate sem pegação. Mas não existe boate à luz do dia. Não existe boate sem música. Não existe boate sem dança.

Varia conforme a festa, mas posso arriscar que quase metade das pessoas que estão na discoteca estão para qualquer outra coisa que não curtir a música em plenitude, como uma “função em si”. Elas podem estar ali em busca de encontros, em busca de bebedeira, em busca de apenas relaxar no bar com os amigos. Talvez estejam pela música, mas nada que uma rádio FM não pudesse suprir.

Descobrir-me o tal dancing animal de que fala o texto revelou o poder do conceito para clarificar uma realidade: a realidade de que a boate é uma forma de agregação de intensidade física à minha existência anímica. É a mistura de exercício, arte e autocontemplação.

Fechar-me num lugar escuro, com música alta e outras pessoas em vibe certa é — e naquela época era ainda mais — uma atividade emocionalmente intensa e revigorante. Não sabia que poderia me acontecer ter essa paixão doida e, quando percebi que gostava, fiquei um pouco viciado. Qualquer programa era mais chato do que ir para a boate.

Quem sofre do mesmo mal também sente a doença que era conviver com pessoas que iam para a boate “tergiversar”, como “ir pegar mulher”, ir “ficar no bar”.. Sempre que tive esse outro foco, diverti-me menos. Uns amigos me achavam meio estranho, mas assim fui mais feliz. Sempre detestei o carão das frequentadoras dos lugares em que eu ia. Não conseguia conversar com a música tão alta. Não conseguia aproveitar a noite tendo outro foco que não a própria noite. E, claro, eu também ficava mais suado do que o aceitável.

Desenvolvi a capacidade estranha de ficar alto não pelo álcool, mas alto de bons sentimentos e conexão com o ambiente. Acreditem: é quase igual.

“dancing with myself” ou “encontrar alguém”… ?

“Ah, mas e sua namorada vai?” “Ah, mas você já está casado.” “Ah, mas hoje tem Tinder para achar alguém.” Frases que se ouvem por aí.

Boate para mim nunca foi sobre flertar. Um amigo meu, grande companheiro de Matriz, ao ler que agora falo em público o que sempre falei discretamente, estaria pronto para me chamar — em seus áureos tempos de fraternal bullying — de“liso” ou “lóide”, apenas por ter cara de vir aqui escrever isso aqui. Aliás, sempre considerei isso de “ir pra boate para pegar mulher” (é estranho escrever essas palavras) um dado desvio de função. Não é e nunca foi meu lugar para isso: sou desengonçado, dançar me faz suar e preferia dançar-pular alguma música do que ficar tentando, como uma enzima a quebrar uma estrutura molecular qualquer, quebrar alguma rodinha feminina para tentar a sorte, que sempre me revelava o azar. Aliás, sempre que fui para a noitada com esse intuito, fracassei no intuito principal: curtir a noite à minha maneira. E, mesmo para quem achava que boate era um lugar bom para isso (e para muitos, realmente, parecia mais fácil “se dar bem”), fico pensando se aproveitaram da melhor forma. Mas falo por mim.

Deve ser coisa minha, mas esse canceriano com ascendente em câncer não ficou imune às pressões sociais. E é claro que a pressão social de a boate ser um ambiente de encontros bateu errado e, como só poderia ser, até me fez elucubrar conhecer alguém especial na boate, o que nunca aconteceu — ou não da forma que eu esperava. Aliás, o que vi de amigos frustrados porque saíram da noitada de modo “num peguei ninguém” (sic) não foi pouco. Não me permitiria dar a qualquer menina a cujo toco pudesse vir a me expor (especialmente considerando as tantas que iam para a balada para fazer o tal do carão e elevar alguma forma de autoestima por meio de abordagens masculinas) a possibilidade de estragar e frustrar a minha noitada, quando eu disso não precisava para ser feliz. Nas vezes em que me permiti tal tentativa (conto nos dedos as que tentei, conto em talvez dois dedos as que consegui), arrependi-me amargamente de não ter respeitado a sensação de suficiência que o pouco envolvendo festa e música boa já me proporcionavam. O pouco que é muito, ainda mais diante do quão fugaz (ou Fullgás, certamente no campo nostálgico dos boateiros dos anos 80) era essa “função pegação”.

Não que eu gostasse de ficar sozinho, mas o mais importante era estar com foco total na pista e com as pessoas na mesma sintonia. Dispensava companhia de gente que não curtia pista, gente que precisava beber muito para dançar, gente que ficava na pista fazendo ondulação corpórea-robótica analisando em quem iria chegar. Dispensava a companhia de namorada/ficante/etc que não tivesse o mesmo pique de pista, o que acontecia, via de regra. Aliás, nesse sentido, eu preferia ir à boate desacompanhado e jáavisava isso à menina do momento (disclaimer que sempre pareceu chocante ao olhar de terceiros — e hoje até assim soa ao meu próprio), como se aquele ambiente de boate fosse um safe space da minha alma, algo que eu não quisesse dividir dentro de um relacionamento para não me sujeitar a que a pessoa desgostasse, cansasse, quisesse ir embora mais cedo, dançasse de má vontade ou qualquer coisa feita em sintonia aquém da minha.

ATENÇÃO PLENA, prática de. (dancing with myself)

Houve um tempo em que era só jogar “matriz hoje?” no subnick do MSN, no Facebook ou, mais tardiamente, em grupo de WhatsApp, que sempre ou quase sempre brotava um desocupado ou alguém querendo desopilar na noite. De vez em quando, porém, isso falhava. E, aí, era necessário me bastar.

Você já foi sozinho(a) à noitada? Se não foi e ainda está em tempo de fazê-lo nessa vida, experimente. Posso dizer que ir à boate sozinho é mais emancipatório que muito discurso que você pode achar por aí. Já fui à boate sozinho algumas poucas vezes. Já fui à Matriz sozinho. É estranho? É um pouco, mas nem tanto. É estranho para quem quer “pegar alguém”, claro: você pode parecer um estranho na fila, alguém que não conseguiu ter amigos, pode parecer um caçador solitário no meio da pista, um weirdo, um eremita qualquer tentando desencalhar… se for menina, comentários ainda mais ácidos são destilados.

Ir à boate pode ser uma experiência sobre si mesmo. Não faço yoga, não faço meditação, pouco me exercito, enfim, não tenho muitas práticas focadas em mim mesmo além dos ganhos colaterais psíquicos que tenho com direção, música, consertos, animais. Minhas práticas de saúde estão aquém do desejado. A natureza costuma me cansar e fazer doer a coluna. Hoje, mais ainda, piro de faniquito, às vezes como refém, dessa sede que é performar plenitude e práticas de bem viver em redes sociais.

Verdade é que, às vezes, eu preciso ir a uma boate. No tempo em que estudei pesado para concurso logo após o fim da faculdade (entre 2013 e 2015), e em tantos outros momentos da vida, sentia-me como se só uma boa noitada fosse (como foi) capaz de me regenerar de tamanha exaustão mental, de me curar dos focos excessivos e seus adoecimentos, dos investimentos sem retorno, da ansiedade das transições.

Era como se eu precisasse lavar a alma, como uma experiência catártica, intensa, profundamente aeróbica, que misturasse relaxamento e exercício físico de uma vez só, feita com alta atenção, alta sintonia com o ambiente, em alta percepção pelos sentidos.

Demorei uns bons dez anos e uma boa conversa de saúde mental para entender que, simplesmente, ir à boate (e, em menor grau, dirigir em estrada contemplando música em alto volume) é o que eu tinha tido até então de mais perto do que se chama de prática de atenção plena, que hoje o pessoal diz que é o tal do gerador desse estado de espírito chamado de mindfulness. Isso é o que me fazia poder prescindir de qualquer companhia e de bebida alcoólica. Não à toa é que, já quando ia mais assiduamente, comecei a preferir ir e voltar da boate de carro e evitar, além do custo com bebida e transporte, a ressaca que começou a ficar pior com o passar dos anos.

Não é brincadeira. Mais uma vez, convido: experimente ir à boate sozinho. Talvez a parte da fila seja chata. Mas, tão logo esteja numa pista, pense-se subindo a altar. Comece esquecendo que há outras pessoas no mundo. Permita-se não sentir a solidão do mero fato de se estar desacompanhado no evento: a pista com sorte terá outras pessoas em sintonia com a música. Se você não estiver numa rodinha qualquer de alguém que acolha esse caminhante noturno, o que às vezes acontece por espírito generoso de congregação de outros dancing animals com desgarrados, resolva você mesmo: esteja no meio da pista. As rodinhas alheias é que o rodearão. Seja você mesmo seu centro. Você pode fechar os olhos ou olhar pra cima, está tudo escuro mesmo. Dance um pouco de olhos fechados. Dance do jeito que vier à mente. Sinta apenas à música de seus ouvidos a seus pés, eles se mexendo como der. Se você se sentir torto, imite Thom Yorke no clipe Lotus Flower. Abra os olhos apenas um pouco, pouco o suficiente para ver as luzes piscantes, dançantes como você rasgando a escuridão. Cante um pouco. Se a música estiver muito alta, grite junto. Cante o refrão da música como se você fosse um expatriado a cantar o hino de sua pátria-mãe. Deixe os graves acariciarem sua pele, talvez coçar seu nariz. Se não estiver alto o suficiente, aproxime-se da caixa de som. Olhe para ela como quem tenha uma conversa. Ela inevitavelmente o tocará ou arderá seus ouvidos. Respeite a autoridade de quem fala mais alto no ambiente. Sinta-se mais leve como se estivesse bêbado, mesmo que não tenha bebido. Não tema o ridículo de parecer bêbado sem estar. Mexa-se como se estivesse bêbado. Emule um pouco, para si mesmo, se precisar. Sorria para si mesmo como um bêbado que se percebe mais leve. E, nessa hora, garanto, você estará alto, terá feito com sucesso sua subida ao altar do encanto da desinibição completa que é, simplesmente, se permitir estar ali pleno e por motivos que se bastam no estar ali. Estará mais altinho que muito bêbado. Mais do que ébrio, certamente inebriado da magia cuja falta ora me faz passar o ridículo de tentar escrever um tutorial, um passo-a-passo, em vão esforço de compartilhar como forma de reviver.

Passo-a-passo do fracasso, do ridículo ou do nirvana, experimente. Vai que funciona com você também: pode ser que você também seja um dancing animal

(CONTINUA NA PARTE 4, clique aqui para abrir)

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