Opinião | Existe vida após Ernesto Araújo?

Os (nem tão) novos rumos da política externa brasileira

Caio Romio Augusto
O Veterano
5 min readMay 5, 2021

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O Palácio do Itamaraty — Diego Baravelli — CC BY-SA 4.0

Há pouco mais de um mês, uma crise ministerial culminou na derrubada do ex-Ministro das Relações Exteriores do Governo Bolsonaro: Ernesto Araújo. Este, por sua vez, teve sua gestão à frente do Itamaraty marcada por polêmicas desnecessárias, obscurantismo e atitudes contrárias à tradição moderada e conciliadora do Brasil no cenário internacional. Agora, após a sua substituição por Carlos Alberto França, diplomata de carreira muito menos polêmico , levantam-se questões a respeito de como as tensões criadas por Ernesto serão resolvidas, e o quão problemático é, de fato, o cenário enfrentado pelo atual chanceler.

Ernesto Araújo assumiu o Itamaraty em um cenário que já denotava mudanças nas relações internacionais do país. Os chanceleres do Governo Temer — José Serra, Marcos Galvão e Aloysio Nunes — focaram menos no eixo Sul-Sul dos governos anteriores (FHC, Lula e Dilma), enfraquecendo as relações do Brasil com países da América Latina, África e outros emergentes (como os BRICS, exceto a China) e fortalecendo os laços com Estados Unidos e Europa.

Logo em seu discurso de posse, Araújo falou em “libertar (o Brasil e) também a política externa brasileira, vamos libertar o Itamaraty”. Libertar de quê? Da ausência de memória histórica, da dependência da “ordem global”, da falta de patriotismo. “O Itamaraty existe para o Brasil, não existe para a ordem global”. Acho o seguinte trecho particularmente interessante: “O problema do mundo não é a xenofobia, mas a oikofobia — de oikos, oikía, o lar. Oikofobia é odiar o próprio lar, o próprio povo, repudiar o próprio passado”. Neste artigo, o ex-chanceler expressa essa mesma perspectiva, dizendo que o globalismo, o neoliberalismo e o marxismo cultural corroem o sentimento de nação dos países ocidentais, e que é cabida a atores como Jair Bolsonaro, Donald Trump e ele próprio a salvação da essência do ocidente.

Na prática, o mandato de Ernesto Araújo foi marcado por polêmicas vazias e prejudiciais ao país. Sua luta ideológica contra o “globalismo”, por mais que possa ser defendida por alguns em teoria, fez o Brasil correr sérios riscos de perder alianças importantes no cenário global. Chegou a chamar o coronavírus de “comunavírus”, fora diversos posicionamentos afrontosos sobre importantes parceiros estratégicos do Brasil, como a China e a Índia.

Sua saída, no início de abril, deveu-se grandemente a pressões políticas de partidos de centro-direita — o chamado “Centrão” — sobre o Governo Bolsonaro. Foi acompanhada de uma série de mudanças ministeriais, que visaram a aumentar a influência do Congresso sobre o Planalto e reduzir drasticamente a força da chamada “ala ideológica”, cujo guru intelectual é o filósofo Olavo de Carvalho, sobre os ministérios bolsonaristas. Deu certo. Se fosse uma luta de boxe, Bolsonaro estaria “nas cordas”, sendo controlado pelo Centrão, que prefere segurar a luta até o final a nocauteá-lo com um impeachment. Não sem golpeá-lo duramente, como por meio da CPI da Covid, mostrando quem realmente manda neste grande ringue chamado Brasil.

Volto ao tema do texto. O sucessor de Ernesto, Carlos Alberto França, assumiu a chefia do Itamaraty com mais cautela e discrição. Por exemplo: seu discurso de posse, no dia 06 de abril, durou 9 minutos e 40 segundos, contra os 32 minutos do de seu antecessor. Assumiu o compromisso do Ministério com a busca por vacinas para a Covid-19, e ressaltou sua missão de “abrir novos caminhos de atuação diplomática, sem preferências desta ou daquela natureza” — em claro contraste com o posicionamento adotado nos tempos de Ernesto Araújo. Ademais, enfatizou a importância de organizações internacionais como a OCDE, e enfatizou a “urgência climática” e a importância de um desenvolvimento “sustentável e limpo”. Seria a volta do tão temido “globalismo”, o terror de Ernesto Araújo?

Não é bem assim. Desconsiderando os ímpetos esquizofrênicos de Ernesto Araújo, sua saída não foi de tanta relevância. Primeiro porque mudou-se o chanceler, mas não o Presidente. Bolsonaro pode estar de mãos atadas pelo Congresso, mas ainda possui formalmente todos os poderes de um Presidente da República, com profunda influência sobre todos os setores de alto-escalão do Poder Executivo. Ademais, diplomatas não são funcionários do Presidente, nem do Ministro das Relações Exteriores: são funcionários do Brasil. Seguem, sim, orientações de seus superiores, mas possuem bastante autonomia para se posicionarem como acharem melhor no cenário externo. Além disso, outros ministros, distantes da ala ideológica, como a excelente Ministra Tereza Cristina (Agricultura, Pecuária e Abastecimento), muitas vezes se encarregam de negociar diretamente com representantes de outros países — fato que ajudou a salvar as relações do Brasil com a China, durante o período de Ernesto Araújo. Representantes do Legislativo, além de empresários e outras figuras relevantes para o cenário político-econômico nacional, também contribuem para corrigir a imagem manicomial transmitida por Bolsonaro à comunidade internacional.

Ernesto Araújo e Tereza Cristina. Foto: ABr

Um episódio recente, de 22 de abril, pode retratar com fidelidade os rumos da política externa brasileira após a saída de Ernesto Araújo. Na Cúpula dos Líderes sobre o Clima, realizada durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), Bolsonaro destacou os avanços do Brasil no combate às mudanças climáticas, além de estabelecer compromissos como a eliminação, até o ano de 2030, do desmatamento ilegal no país, “com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal”. Foi uma clara mudança de tom a respeito de políticas ambientais nos últimos dois anos, quando o Presidente travou embates claros com líderes globais a respeito do desmatamento na Amazônia brasileira — bastante exagerado, com certa má-fé, por Emmanuel Macron e outros líderes com intenções de cunho intervencionista.

De todo modo, não há grandes motivos para temer pelo futuro do Itamaraty após a saída de Ernesto Araújo. Evidência disso foi o elogio de Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, à postura dos líderes brasileiros durante a conferência do clima. Com certeza, não devemos ser subservientes aos interesses externos. Contudo, ir na contramão de tudo o que prega a comunidade internacional tampouco é positivo para o Brasil — afinal, investidores internacionais também costumam ser favoráveis a questões como Estado Democrático de Direito, livre-comércio e conservação do meio-ambiente, e não me parece sensato abrir mão desses investimentos. Ademais, os episódios recentes mostram como os atores políticos do Brasil e do exterior, quando exercem pressão uns sobre os outros, produzem medidas cuja sensatez seria impossível de ser alcançada mediante as vontades exclusivas do governante.

São nos momentos de crise que o Brasil mostra a sua cara, a sua disposição para resistir aos piores tormentos pelos quais poderia passar. Que o nosso novo chanceler possua forças para reconduzir o Itamaraty ao lugar de destaque que sempre ocupou, no Brasil e no mundo.

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Caio Romio Augusto
O Veterano

Estudante de Direito da FGV Direito Rio, cuiabano e quase carioca. Apaixonado por política, História, cultura e artes num geral. Cat person e fã do Al Pacino.