Série SIM | Masculinidade tóxica

Paulo Henrique da Silva
O Veterano
Published in
6 min readMay 5, 2021

A discussão sobre gêneros perpassou o campo fisiológico e chegou aos ditames das regras e papéis sócio e culturalmente estabelecidos pela sociedade burguesa do século XIX. […] A preocupação com uma possível feminilização por parte de alguns homens, fizeram com que investissem e construíssem para si uma série de papéis e traços representativos da sua condição “masculina”, de forma que descrevesse melhor o atual homem vitoriano, em contraste com o seu oposto, a mulher, e mais inadvertidamente, a seu inverso, o homossexual. (SILVA, 2000).

“Homem não chora”. “Rosa é cor de menina”. “ É o homem que manda dentro de casa”. “Homem de verdade não expressa sentimento”. “Homem nenhum leva desaforo para casa”. “Cruzar as pernas é coisa de mulherzinha”. “Homem que fala fino é viado”. “Homem com frescura demais está com viadagem”. “O homem é quem deve ter o maior salário dentro de casa”. “Serviços domésticos não são coisa de homem”.

Tenho plena convicção de que você já ouviu uma ou várias (e até mesmo outras) das expressões expostas no parágrafo anterior. As frases apresentadas estruturam o que conhecemos por masculinidade tóxica (ou frágil), que tem consequências também já conhecidas, como o machismo, a homofobia e o sexismo.

A imposição de um protagonismo masculino universal é facilmente identificada na maior parte das sociedades, desde as antigas até as contemporâneas. Em Atenas, no período clássico, por exemplo, somente homens livres com mais de 21 anos e naturalidade ateniense eram considerados cidadãos. Do mesmo modo, nos dias de hoje, a sobreposição da figura masculina sobre a feminina ainda é intrínseca à sociedade: em 2012, por exemplo, Malala Yousafzai, uma jovem paquistanesa e militante dos direitos humanos, sofreu um atentado por parte do Talibã em razão de defender o direito das meninas de ir à escola.

A sobreposição do mundo masculino sobre o universo feminino, que remonta aos primórdios, propicia a perpetuação de uma cultura social que classifica homens como inabaláveis e sublimes perante a sociedade. Isso se observa, por exemplo, na composição das caçadas em sociedades nomádicas primitivas. A noção sempre foi de que a fêmea era mais frágil, e que deveria ser preservada longe dos perigos do mundo, em um universo fechado e autocontido.

A masculinidade tóxica como normatização social

Desde muito cedo, os meninos são orientados a brincarem com bolas e carrinhos e a não vestirem rosa. Nesse mundo de construção da virilidade, bonecas são impróprias aos garotos, e a cor rosa, censurável. No entanto, a bravura é uma atitude admirável no mundo azul dos meninos. O ser homem é indiscutivelmente associado ao ser valente, colocado aí como “não ter frescura”.

Quando um garoto apanha de um colega valentão e chora, imediatamente vira motivo de chacota perante os demais colegas, e o comportamento do valentão dificilmente é questionado ou repelido pelo grupo que, não raro, incentiva e enaltece sua atitude de homem forte e corajoso. (NIGRO; BARACAT, 2018, p. 7)

Nesse sentido, vê-se que a masculinidade tóxica não faz mal somente às mulheres, mas também aos próprios homens. A necessidade de ser forte, valente e destemido o tempo todo impede que a sensibilidade e os sentimentos dos homens sejam demonstrados, pois ser sensível é ser fraco, e ser fraco não é uma opção frente à heteronormatividade. Não é que a valentia não seja uma virtude, mas que ela não seja única. Em termos da ética aristotélica: o extremo não é ético, a moderação o é.

A construção social do ideal de masculinidade é tão prejudicial para os homens quanto para as mulheres. Para estas, porque as oprime em absolutamente todos os aspectos de suas vidas, desde o nascimento e por toda a vida, pois ”para manter a ordem natural da sociedade” é diminuída e classificada como inferior. Para os homens, porque os coloca em posição irracional, como se não fossem capazes de dominar suas pulsões e estivessem à mercê de seus instintos tal qual animais selvagens. (NIGRO; BARACAT, 2018, p. 16)

Outrossim, constata-se que o machismo, assim como a homofobia, ganha espaço na medida em que tudo que é másculo é superior ao que é feminino. Assim, o alto grau de “masculinidade” classifica um homem como tal, e a falta dessa masculinidade o conceitua como afeminado e, consequentemente, inferior. Eis a lógica interna da homofobia.

Machismo, masculinidade tóxica e a política brasileira

Recentemente, o machismo e a masculinidade tóxica são constatados com frequência no cenário político nacional: anteriormente às eleições presidenciais de 2018, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), atual presidente da República, declarou que teve quatro filhos homens e, fruto de uma “fraquejada”, teve uma filha mulher; em 12 de novembro de 2020, Manuela D’ávila (PCdoB), então candidata à prefeitura de Porto Alegre/RS, foi vítima de violência política de gênero durante um debate — ocasião em que o também candidato ao Executivo Municipal porto-alegrense Rodrigo Paroni (PROS) buscou desmerecer as habilidades políticas de Manuela pautando-se em alegações machistas esdrúxulas; já em 2021, o então presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Alexandre Lopes, foi exonerado do cargo após Bolsonaro criticar publicamente a inserção de uma questão sobre desigualdade de gênero em âmbito esportivo na edição de 2020 do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Claramente, o jogo político brasileiro ainda se embasa em premissas machistas, principalmente ao considerar que, de 513, apenas 77 dos assentos parlamentares da Câmara dos Deputados são ocupados por mulheres, enquanto no Senado a participação feminina restringe-se a míseros 14%. Ademais, as mulheres brasileiras são as que mais sofrem com insultos e ameaças no campo político.

Violência doméstica e a inferiorização da mulher

Pautada num contexto em que a mulher exerce um papel de submissa na relação, atendendo às determinações do parceiro e violentada física, psicológica, sexual, patrimonial e/ou moralmente quando este não se vê em uma posição expressa de superioridade, a violência doméstica é a exemplificação prática das consequências do machismo e da masculinidade tóxica. É incompreensível e imensamente revoltante até que ponto a garantia de uma masculinidade suprema pode alcançar em um relacionamento — considerando ainda que a posição de inferioridade do sexo feminino também se evidencia em um contexto social amplo.

[…] infelizmente, ainda temos uma sociedade que rotula preconceituosamente a mulher como um ser inferior ao homem. Assim sendo, é preciso destacar, também, que a violência contra a mulher e o feminicídio são sustentados ainda pelo machismo em si […]. A origem da violência contra a mulher é cultural. (SILVA; VALENTIM; SILVA, 2021, p. 156)

Assim, cumpre destacar, paralelamente a Simone de Beauvoir (1980), que a posição de inferioridade da mulher e, consequentemente, sua conceituação enquanto sexo frágil remonta às estruturas patriarcais da sociedade, em que sexo e gênero se expressam como categorias sociais. Dessa forma, a masculinidade tóxica é embasada e perpetuada por valores sociais.

Referências bibliográficas:

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980.

NIGRO, Isabella Silva; BARACAT, Juliana. Masculinidade: preciosa como diamante, frágil como cristal. Revista Científica Eletrônica de Psicologia. Faculdade de Ensino Superior e Formação Integral. Versão digital. Edição 30, v. 30, nº 1. Garça/SP: 2018, p. 4–19. ISSN 1806–0625. Disponível em: http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/nNirdcsu8KL0cs0_2019-3-8-17-21-47.pdf#page=7. Acesso em: 21 abr. 2021.

SILVA, Paulo Henrique da; VALENTIM, Jacqueline de Carvalho; SILVA, Maria Sirene da. Análise situacional da violência contra a mulher e feminicídio em Sonora — MS. In: VASCONCELOS, Adaylson Wagner Sousa de; VASCONCELOS, Thamires Nayara Sousa de. Direito: justiça, políticas públicas e as relações entre Estado e sociedade. Ponta Grossa: Atena, 2021. p. 150–158. Disponível em: https://www.atenaeditora.com.br/post-artigo/44092. Acesso em: 11 fev. 2021.

SILVA, Sergio Gomes da. Masculinidade na história: a construção cultural da diferença entre os sexos. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 20, n. 3, p. 8–15, set. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932000000300003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 24 abr. 2021. 2021. https://doi.org/10.1590/S1414-98932000000300003.

--

--

Paulo Henrique da Silva
O Veterano

Graduando em Ciências Sociais na FGV. Fascinado por educação, cultura e direitos humanos.