O Homem Tradicional
Defina para si mesmo no que consiste a essência daquele que vive pela tradição.
“É o destino de quase todos as religiões tornarem-se desnaturalizadas, deturpadas. Conforme espalham-se e se desenvolvem afastam-se de seu espírito originário e seus elementos mais populares e espúrios vem à tona, os traços menos severos e menos essenciais, mais distantes do plano metafísico. Praticamente nenhuma das grandes religiões históricas escapou a esse destino (...)” — Julius Evola, A Virilidade Espiritual no Budismo
Há termos que foram poluídos ou desviados de seu sentido original devido aos inúmeros discursos ruídos e repetições irresponsáveis nos debates públicos atuais, e a definição de “tradição” é uma delas; desejo então esclarecer que esta palavra nada tem a ver com uma forma reacionária e anacrônica de enxergar os costumes do passado, mas o cultivo de uma vida espiritual ligada à religiosidade. Pensadores da corrente filosófica perenialista (ou tradicionalista), a despeito de suas divergências sobre a finalidade do ser humano e seus processos, possuem um ponto em comum: a visão do que é o homem em essência; para estes o homem é um ser indissociável de sua aptidão para a fé. Sendo o homem tradicional, então, num termo reduzido, o homem religioso, que vive a espiritualidade mesmo nos aspectos mais íntimos de sua vida.
Quando maturar, quando casar, quando criar uma família, por qual propósito trabalhar, como envelhecer… Tudo é regido pelo aspecto da fé e na busca do transcendente, e aqui faço um exercício de separar em temas chaves como a visão tradicionalista, de maneira sucinta, encara os diferentes aspectos da vida ou, se preferir, o que é viver como um homem tradicional.
O SAGRADO MASCULINO: ASPECTO SOLAR
Nas religiões, cultos e antigas tradições sempre temos a referência do arquétipo masculino e feminino: Adão e Eva, Pachacamac e Pachamama, Osíris e Ísis, Apolo e Ártemis, Lissá e Mawu, Shiva e Parvati. A energia solar sempre esteve associada com o lado masculino (contrapondo ao aspecto lunar feminino), divindades ligadas a este astro sempre realizam na sua jornada, grandes feitos e conquistas, a exemplo temos Apolo, Osíris, Zeus, Krishna, Shiva, Ogum, Brahma, Dionísio, Eros, Hórus, Anúbis, Thot, Hermes e tantos outros. Na essência, dividindo este arquétipo (ou mesmo energia de ação), o corpo do homem é regido pelo Sol e pelas estações do ano segmentando em 4 fases de maturidade:
A Criança (possibilidade latente, semente, assexual, protegido, de natureza inconsciente), O Herói (virilidade, coragem, proteção, ação), O Pai (líder, julgador, cuidador, autossacrifício, organizador, influenciador) e O Sábio (contemplador, apaziguador, sabedor, orientador). E é através deste olhar solar que o homem tradicional enxerga a si mesmo diante do tempo.
O TRADICIONAL SOBRE O TEMPO.
A temporalidade para aqueles que vivem a espiritualidade é diferente do modo secular e contemporâneo. Os minutos, horas, dias, semanas, meses e anos são regidos pela prática religiosa, sendo indissociáveis, portanto.
O Calendário.
Mesmo a divisão dos meses e anos é outra, geralmente ancorado em ciclos e metamorfoses naturais do planeta ou da própria fisiologia do homem. Esse tempo não é universal, e varia de dogma para dogma, de cultura para cultura, a artificialidade cartesiana do calendário moderno não contempla as varias formas de se interpretar o tempo pelas mais diversas crenças, e o homem tradicional não só sabe disso como também vive isso. Qual o tempo de colher? De plantar? De jejuar? De agradecer? Qual período do dia orar ou meditar? Quando casar? Quando ter filhos? Quando sacrificar? Quando receber? O calendário da vida do homem tradicional não está submetido a vida secular ou contemporânea; cada momento do dia, ciclo lunar ou estação do ano regem as práticas cotidianas do homem.
Maturidade.
A visão tradicional de amadurecimento é ligada a ritos de passagem ritualísticos e ligada a função que aquele indivíduo exercerá em sua comunidade, e não associada apenas aos anos de vida (idade); os números não determinam seu estágio na vida, sua meninice ou adultice. Em muitas culturas, para tornar-se um homem maduro é necessário superar provações físicas, psicológicas, emocionais ou estar apto a participar de ritos de iniciação, tudo dentro de uma visão ancestral e espiritual de mundo. Tal maturidade também respeita o desenvolvimento físico do corpo, pois é esse corpo que será testado e provado nos ritos que demandam consciência corporal, força ou resistência.
Morte.
Em muitas tradições a morte do corpo não é o fim da vida, por esse motivo, mesmo o falecimento, quando submetido a visão de tempo do pensamento tradicional, possui outros significados. Descanso, continuidade, reavivamento, sofrimento, alívio, isso irá variar de acordo com o dogma; no entanto, sendo a morte um processo e não um fim, este homem a enxerga de maneira distinta, e isso muda também a forma como ele vive e encara a vida. Sendo assim, suas ações e cada respiro ganham significado e função, não entendendo como vã a sua existência.
O TRADICIONAL SOBRE O ALIMENTO.
Em muitas crenças a forma como nos alimentamos está associada a vida religiosa. Quando consumir determinado animal, quando e como jejuar, do que devemos nos abster, quais animais não devemos consumir, e mesmo o método de como prepara-los. Algumas espiritualidades são mais restritas do que outras quanto a dieta e tipos de carne e grãos a serem ingeridos, seja por um costume ancestral ligado a uma dieta mais adequada a determinada etnoculturalidade ou uma interpretação mística sobre determinado alimento, inclusive tal restrição pode estar ligada a preservação de determinada fauna ou ecossistema, buscando uma forma sustentável de consumo daquela comida. Seja como for, a forma como o homem tradicional se alimenta também é ligada a sua vida religiosa. Como exemplo, os muçulmanos no Ramadã fazem jejum do nascer ao pôr do sol, sem comida ou bebida, nem sequer água, sem fumar ou mesmo ter relações íntimas; na tradição judaica não se come carne de porco, cavalo, camelo, coelho, caranguejo, lagosta e camarão; No calendário católico há restrições de jejum na quaresma e limitação do consume de carne vermelha; e assim por diante.
O TRADICIONAL SOBRE A SEXUALIDADE.
A religiosidade possui um caráter separador quanto a interpretação das funções de cada sexo, isso porque a vida espiritual não está sujeita a pautas políticas ou agendas de costumes temporais, mas de uma sabedoria que transcende o tempo. Portanto, há funções na própria comunidade religiosa restrita para homens, assim como outras funções só podem ser atribuídas a mulheres. A igualdade não é um objetivo na vida espiritual, mas o reconhecimento das diferentes potencialidades. Homem e mulher possuem emanações distintas na realidade prática. E essas diferentes funções entre os sexos vão desde a vida laboral, familiar e sexual, pois na vida tradicional, como dito, é totalmente regida pela espiritualidade, em cada aspecto.
Nas palavras do tradicionalista Julius Evola:
“A modernidade não soube conceber para a mulher uma personalidade que não fosse uma imitação da masculina, de maneira que as suas reivindicações ocultam uma desconfiança fundamental da mulher nova em relação a si mesma, a impotência desta para ser o que é e a contar pelo que ela é: como mulher e não como homem. Devido a esta fatal incompreensão, a mulher moderna experimentou o sentimento de uma inferioridade absolutamente imaginária por ser apenas mulher e sente quase como ofensa o ser tratada ‘só como mulher’.” — Revolta contra o mundo moderno, 1934.
Ela (a tradição) dita inclusive quando (época e idade) e como (o ritual) um homem e uma mulher devem contrair matrimônio, e como será o seu ordenamento, isso também interfere na forma como o casal realiza o ato sexual e com qual propósito, incluindo a geração de filhos. A sociedade secular e cosmopolita entende a geração de uma família pela balança da despesa material ou fardo financeiro, mas a corrente tradicional encara o legado familiar como uma missão espiritual.
Para tanto, homem e mulher devem estar unidos pelo mesmo caminho de fé, e visando assim o mesmo objetivo, as leis do mundo prático são secundárias diante de seu compromisso com o transcendente, entendendo sua união como uma vontade acima do caráter individualista ou mesmo egoísta que sempre espreita a vida moderna. Relação não é só, mas também, sacrifício.
O TRADICIONAL SOBRE O ESPAÇO
A geografia para o homem tradicional também possui um caráter sagrado, o solo, uma região ou a sua própria casa estão sujeitas a essa interpretação da realidade. Em muitas crenças é comum determinados lugares serem sagrados, e a própria posição a qual é voltada a sua oração é originada disso, inclusive determinados ritos só podem ser realizados em certas localidades entendidas como sacras; o próprio ato de peregrinar por determinadas rotas é também pode ser entendido como um ato religioso. Espaço também significa geometria, que nos leva à arquitetura, ou seja, mesmo a forma como determinados templos, casas e até cidades são construídas são para o homem tradicional um alvo de sua fé, de sua identidade espiritual e ancestralidade. Na cultura original yoruba, por exemplo, cada divindade é associada a uma parte da geografia da terra onde o povo vive, pedreiras (Xangô), rios (Oxúm), o relevo, e etc, a espiritualidade é indissociável do espaço, da região do continente africano onde vivem.
O TRADICIONAL SOBRE TRABALHO E VOCAÇÃO
Sua função na comunidade é de importância, mas, ao contrário da lógica de trabalho da sociedade moderna, a riqueza não é o foco, e sim o exercício de sua vocação e necessidade de deixar um legado fruto deste trabalho ou função. Sua espiritualidade está vinculada ao trabalho pois a vida vivida pela fé demanda função e propósito, visto que, como mencionado, o tempo da morte é entendido de outra maneira, o trabalho é uma necessidade da alma para que no tempo em vida exerça com maestria aquilo que veio para fazer, que o divino lhe conferiu para fazer.
(…) quando alguém busca um tesouro que por qualquer motivo não está destinado a ele, o ouro e as pedras preciosas se convertem diante de seus olhos em carvão e pedras vulgares. (René Guenón)
O exercício de sua vocação, é isso que lhe confere o trabalho sob a ótica da filosofia tradicional, um meio pelo qual se busca atingir a elevação, possuindo satisfação simplesmente ao fazê-lo, servindo não só a si mesmo e a riqueza (este último uma consequência, nunca a causa), mas também à sua comunidade e espiritualidade.
O homem tradicional não se define como tal (pois o cristão é o cristão, o budista é o budista, o xintoísta é o xintoísta, o muçulmano é o muçulmano), ele simplesmente o é na medida em que vive sua religiosidade; já o tradicionalista, o homem moderno que estuda as tradições, enxerga estes ritos de fora, e pode vir a se inserir sim numa tradição, mas para isso será necessário — além do estudo e da leitura — despir-se de todas as camadas seculares que o impedem de praticar (e conhecer) inteiramente aquela espiritualidade escolhida, visto que o ceticismo já está inserido profundamente em sua rotina e modo de ver o mundo.
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