2016 não matou ninguém

Num ano tão difícil como este, como encontrar o caminho do meio entre as razões para lamentar as coisas ruins e os motivos para a celebrar o que vivemos de bom?

Gabriel Camões
ORNITORRINCO site
5 min readDec 31, 2016

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Fim de festa de Réveillon no Diamond Horseshoe, em Nova York, na chegada de 1940
FOTO: KEYSTONE-FRANCE

Estar perto do fim do ano é nada mais que estar perto do início do próximo. O que separa um ano do outro? Um milésimo de segundo? Um piscar de olhos? Fogos de artifício? Estourar champanhe? Roupa branca? Nada. O ano vira, a vida revira e volta. E continua. Ao despertarmos da farra no 1º dia do ano, os nossos vícios, desejos, sonhos e cicatrizes também persistem. Podemos mudar (ou não) de roupa, de namorado(a), de bairro, de carro, de casa, enfim… Mudar, trocar, ganhar, perder, tudo isso é a vida acontecendo.

Tenho escutado e lido, principalmente no Facebook, muita gente dizer que não aguenta mais o ano de 2016, repetindo expressões como “acaba logo” ou “ninguém merece”. Eu mesmo cheguei a fazer isto num dado momento do ano. Engrossei o coro das lamentações. A cada morte inesperada de alguém famoso, começando pela partida de David Bowie, a quem dediquei um texto no início do ano, comprei a ideia de que 2016 se tornaria o mais indesejável dos anos que vivi desde que cheguei neste plano.

Cheguei mesmo a acreditar que este era um ano verdadeiramente maldito, mais sofrido e tenebroso que todos os anteriores. Pelo golpe que a democracia brasileira sofreu com o impeachment de Dilma. Por termos atualmente um vampiro ilegítimo governando o país. Pela vitória inesperada de Trump nos EUA. Os ataques motivados por ódio, preconceito e intolerância que deixaram vítimas em Orlando, Nice e Berlim. As crianças inocentes que nos deixaram precocemente nos conflitos em Aleppo, na Síria. A queda do avião da Chapecoense. E, mais recentemente, pelo assassinato covarde e absurdo do trabalhador Luiz Carlos Ruas, no metrô de SP, em plena noite de Natal.

O momento pessoal mais difícil do ano foi lidar com a morte de minha vó Marcinha, em julho, apenas oito meses depois de ter perdido minha vó Zezé, em novembro de 2015. Ainda estou tentando compreender o desafio que é viver num mundo sem minhas avós. Imagino que, assim como eu, muitas pessoas tenham seus motivos particulares para lamentar 2016. Não tenho pretensão de medir o tamanho da dor de cada um. Mas, por mais doloroso que tenha sido viver neste ano, eu fui percebendo a bobagem do bordão “acaba logo, 2016”.

O povo na Times Square, em Nova York, aguardando a chegada de 1956
FOTO: WALTER SANDERS, para a revista LIFE.

Ao refletir sobre o muro de lamentações que o Facebook se tornou em 2016 com mortes de ícones mundiais da música como Bowie, Prince e George Michael… Resolvi fazer aqui um exercício. O objetivo era me convencer de que 2016 não é esse monstro que o inconsciente coletivo criou. Fui buscar nos dois últimos anos, 2014 e 2015, as mortes de “celebridades” ou “famosos” que causaram mais comoção na minha timeline.

Em 2015, entre outras perdas, nos despedimos do incrível escritor Eduardo Galeano, da atriz Marília Pêra, do ator e diretor Antônio Abujamra, do vocalista Scott Weiland e da lenda B.B. King. Mas, ao voltar em 2014, percebi o quanto o ano do 7x1 foi tão ingrato conosco. Só para ficar em alguns nomes da área musical, partiram figuras como Jair Rodrigues, Joe Cocker e Paco de Lucía; os diretores de cinema Eduardo Coutinho e Alain Resnais; os atores Robin Willians, Philip Seymour Hoffman, Lauren Bacall, Shirley Temple. E a pancada maior no peito foi na literatura, com as mortes do mestre colombiano Gabriel Garcia Márquez (de quem ganhei esse nome), além dos brasileiros Rubem Alves, Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro e, por fim, minha inspiração maior, na vida e na poesia, Manoel de Barros, a quem também dediquei um texto de despedida.

O fato é que 2016 não matou ninguém. 2015 ou 2014 tampouco merecem sentar no banco dos réus. A questão, no fim das contas, é como escolhemos olhar o mundo em cada momento, ano, mês, semana, dia das nossas vidas. Eu sou um pessimista por natureza. Sempre acreditei na distopia progressiva do mundo. Não preciso estar em 2016 para achar o mundo um lugar cada vez mais difícil de viver e complicado de conviver. Mas não acho que a culpa é do ano em si. Esse sentimento fatalmente irá existir em 2017, 2018, 2019…

Mais um ano acaba hoje e quem ainda acredita que isso trará algum alívio ou sentimento de redenção imediato, está muito enganado. Em 2017, pessoas que admiramos na vida e na arte irão continuar nos deixando. Tragédias inesperadas continuarão acontecendo. Injustiças e crimes bárbaros também. Cabe a nós continuar remando na tempestade e encarar esse mundo como ele é. Fazer o possível, dentro dos nossos limites, para melhorá-lo.

Virada do ano de 1969 na Grand Central Station, em Nova York.
FOTO: LEONARD FREED

O segredo talvez seja encontrar o caminho do meio entre as razões para o lamento e os motivos para a celebração da vida, estando você em 2016 ou em 2021, numa sexta-feira ou numa segunda, de férias ou trabalhando. Só lamentar não nos faz avançar. E só celebrar tampouco. Há um perigo latente e uma armadilha perigosa em cada um destes extremos. E parece que a maior parte de nós tem pulado de um para outro direto, sem escalas e sem compreender que eles coexistem, que o equilíbrio da vida está justamente em perceber que perdemos e ganhamos o tempo todo.

Li o último artigo do ano na coluna de Vladimir Safatle e ele me abriu os olhos para entender que estamos mergulhados num novo e sofisticado modelo de autoritarismo, que supera aquela visão clássica pautada pela “lei e ordem”. Ao invés de doses cavalares de repressão e censura, temos hoje uma atmosfera permanente de celebração e folia. Uma espécie de carnaval sem fim. Ele diz que “não importa a violência que aconteça, as injustiças que se acumulam, as demandas que brutalmente serão silenciadas, a festa nunca pode parar, as brincadeiras deverão continuar, as atividades deverão ser celebradas, mesmo que elas já tenham perdido o sentido”.

Em meio aos fogos de artificio, aos brindes, roupas novas e música dançante, eu desejo a todos uma boa entrada de ano. Que em 2017 lamentemos e celebremos a vida com os olhos bem abertos. É preciso estar atento e forte. É preciso reagir, mesmo que de vez em quando. Rejeitar o “Não pense, trabalhe” ou repilar o “Não pense, divirta-se”. Vamos comemorar a nossa capacidade de pensar. Vamos celebrar nosso poder de indignação.

Mente quieta, espinha ereta e coração tranquilo.

Vamos em frente. Ano novo é todo dia.

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