Religião, saúde e questões ambientais explicam diminuição da prática

Covid-19, proibição de culto a santos católicos e desmatamento desestimulam famílias a acender fogueiras

Reportagens Especiais
OVA UFPE
4 min readJun 26, 2024

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Por Rawanderson França

Quem cresceu na região Nordeste sabe que, em junho, centenas de cidades ficam sob a fumaça das fogueiras em homenagem aos santos juninos: em várias ruas, a cada porta de casa, tem uma acesa. No entanto, principalmente na última década, essa prática tão arraigada na cultura brasileira começou a rarear. Dados estatísticos e especialistas indicam que três fenômenos explicam essa mudança: o pós-pandemia de Covid-19, quando as questões respiratórias, já visibilizadas nas festas juninas, ganharam ainda mais protagonismo; a também maior exposição de questões ambientais e, não menos importante, o crescimento de comunidades evangélicas no Brasil. Nelas, muitas vezes, celebrar santos católicos não é permitido.

Um levantamento do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou um aumento, entre os anos de 2000 e 2010, de aproximadamente 59,6% da religião evangélica de origem pentecostal somente no Nordeste. Outra pesquisa, realizada pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cepid) da Universidade de São Paulo (USP), demonstrou que, em 2019, existiam 48.781 templos pentecostais no Brasil. As neopentecostais ocupam a terceira posição, com 12.825 templos religiosos. A metodologia da pesquisa é baseada por meio do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) que, segundo a legislação do país, é obrigatório para registrar qualquer empresa, inclusive as igrejas.

Esse fenômeno tem impacto direto, é claro, na sociedade brasileira: uma matéria do G1 mostrou, por exemplo, como escolas brasileiras estão deixando de celebrar o São João para fazer a “festa da colheita” ou “festa da tradição” — em alguns colégios, clássicos como dançar quadrilha ou brincar de pescaria foram deixados de lado.

Nordeste tem maioria católica quando comparado com outras regiões do Brasil — Fonte: Datafolha (2020)

CAATINGA AMEAÇADA

Além do impacto evangélico, as fogueiras juninas também sofreram outro revés nos últimos anos, quando foram proibidas na pandemia do Coronavírus em 2020. O motivo era, na verdade, um velho conhecido para quem já sofria com doenças respiratórias como a asma: a fumaça impede o melhor funcionamento do sistema respiratório.

A liberação só aconteceu quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 5 de maio de 2023, que a doença não configurava mais uma Emergência de Saúde Pública. Apesar da legalização, a Paraíba só revogou a lei este mês, na terça-feira (4), após votação na Assembleia Legislativa (AL) do estado. Por outro lado, o Ministério Público da Paraíba (MPPB) foi contra a decisão dos deputados estaduais, e propôs um levantamento sobre os impactos causados pelas fogueiras ao meio ambiente.

O coordenador do Laboratório de Engenharia da Sustentabilidade do Centro Acadêmico do Agreste (UFPE/CAA), Gilson Lima, aponta que a tradição da queima da fogueira compromete um bioma único do Agreste Pernambucano, a Caatinga. “Do ponto de vista biótico, a pessoa que corta as madeiras pode não saber a diferença entre as árvores, então de certa forma ela está incentivando o desmatamento do bioma, que já é alto”, diz.

Especialista em Ciências Biológicas, Jullyany Santana. Foto: Arquivo pessoal

Outro fator decorrente da prática da fogueira é a liberação de gases poluentes que, retidos na atmosfera, são responsáveis pelo aumento da temperatura no planeta e intensificam o fenômeno do aquecimento global. “A liberação do dióxido de carbono na queima pode ficar retido na atmosfera por até mil anos, e tem como um dos resultados a promoção das mudanças climáticas do aquecimento global”, esclarece a professora de biologia do Colégio Inovar (Toritama), Jullyanny Santana.

Dona Creuza Alves faz fogueira desde a infância, hábito adquirido com seus pais — Foto: Arquivo pessoal

Apesar de todas as mudanças, necessárias ou impostas, há quem permaneça fiel à tradição e não abre mão de homenagear os santos juninos com fogo. Dona Creuza Alves, de 73 anos, moradora da cidade de Frei Miguelinho (PE), é uma delas. Para ela, o São João de hoje é diferente. “As pessoas não soltam fogos, nem balão ou fazem fogueiras”, comenta (a prática de soltar balões, de fato, levou a muitos acidentes e queimadas, fazendo com que a tradição ficasse para trás). Creuza fala do seu amor pela construção das fogueiras, hábito herdado ainda menina: “eu quero fazer a minha até morrer, mesmo que tenha só dois pauzinhos de lenha, só pra dizer que fiz, mas o dia de São João eu não deixo passar em branco”.

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projeto de extensão do Observatório da Vida Agreste (OVA), Curso de Comunicação Social da UFPE/Centro Acadêmico do Agreste (CAA)