Religião, saúde e questões ambientais explicam diminuição da prática
Covid-19, proibição de culto a santos católicos e desmatamento desestimulam famílias a acender fogueiras
Por Rawanderson França
Quem cresceu na região Nordeste sabe que, em junho, centenas de cidades ficam sob a fumaça das fogueiras em homenagem aos santos juninos: em várias ruas, a cada porta de casa, tem uma acesa. No entanto, principalmente na última década, essa prática tão arraigada na cultura brasileira começou a rarear. Dados estatísticos e especialistas indicam que três fenômenos explicam essa mudança: o pós-pandemia de Covid-19, quando as questões respiratórias, já visibilizadas nas festas juninas, ganharam ainda mais protagonismo; a também maior exposição de questões ambientais e, não menos importante, o crescimento de comunidades evangélicas no Brasil. Nelas, muitas vezes, celebrar santos católicos não é permitido.
Um levantamento do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou um aumento, entre os anos de 2000 e 2010, de aproximadamente 59,6% da religião evangélica de origem pentecostal somente no Nordeste. Outra pesquisa, realizada pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cepid) da Universidade de São Paulo (USP), demonstrou que, em 2019, existiam 48.781 templos pentecostais no Brasil. As neopentecostais ocupam a terceira posição, com 12.825 templos religiosos. A metodologia da pesquisa é baseada por meio do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) que, segundo a legislação do país, é obrigatório para registrar qualquer empresa, inclusive as igrejas.
Esse fenômeno tem impacto direto, é claro, na sociedade brasileira: uma matéria do G1 mostrou, por exemplo, como escolas brasileiras estão deixando de celebrar o São João para fazer a “festa da colheita” ou “festa da tradição” — em alguns colégios, clássicos como dançar quadrilha ou brincar de pescaria foram deixados de lado.
CAATINGA AMEAÇADA
Além do impacto evangélico, as fogueiras juninas também sofreram outro revés nos últimos anos, quando foram proibidas na pandemia do Coronavírus em 2020. O motivo era, na verdade, um velho conhecido para quem já sofria com doenças respiratórias como a asma: a fumaça impede o melhor funcionamento do sistema respiratório.
A liberação só aconteceu quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 5 de maio de 2023, que a doença não configurava mais uma Emergência de Saúde Pública. Apesar da legalização, a Paraíba só revogou a lei este mês, na terça-feira (4), após votação na Assembleia Legislativa (AL) do estado. Por outro lado, o Ministério Público da Paraíba (MPPB) foi contra a decisão dos deputados estaduais, e propôs um levantamento sobre os impactos causados pelas fogueiras ao meio ambiente.
O coordenador do Laboratório de Engenharia da Sustentabilidade do Centro Acadêmico do Agreste (UFPE/CAA), Gilson Lima, aponta que a tradição da queima da fogueira compromete um bioma único do Agreste Pernambucano, a Caatinga. “Do ponto de vista biótico, a pessoa que corta as madeiras pode não saber a diferença entre as árvores, então de certa forma ela está incentivando o desmatamento do bioma, que já é alto”, diz.
Outro fator decorrente da prática da fogueira é a liberação de gases poluentes que, retidos na atmosfera, são responsáveis pelo aumento da temperatura no planeta e intensificam o fenômeno do aquecimento global. “A liberação do dióxido de carbono na queima pode ficar retido na atmosfera por até mil anos, e tem como um dos resultados a promoção das mudanças climáticas do aquecimento global”, esclarece a professora de biologia do Colégio Inovar (Toritama), Jullyanny Santana.
Apesar de todas as mudanças, necessárias ou impostas, há quem permaneça fiel à tradição e não abre mão de homenagear os santos juninos com fogo. Dona Creuza Alves, de 73 anos, moradora da cidade de Frei Miguelinho (PE), é uma delas. Para ela, o São João de hoje é diferente. “As pessoas não soltam fogos, nem balão ou fazem fogueiras”, comenta (a prática de soltar balões, de fato, levou a muitos acidentes e queimadas, fazendo com que a tradição ficasse para trás). Creuza fala do seu amor pela construção das fogueiras, hábito herdado ainda menina: “eu quero fazer a minha até morrer, mesmo que tenha só dois pauzinhos de lenha, só pra dizer que fiz, mas o dia de São João eu não deixo passar em branco”.