“D. Lourenço, a ilha de Zeiland e a fortaleza de Anchediva”

Maria Inácio Duarte
11 min readJan 28, 2017

--

CHRONICA DE D. MANOEL escrita por Damião de Goes; 1749; PDF — pp. 184–188

Capítulo XI

De como indo Dom Lourenço buscar as ilhas Maldivas por mandado do vice-rei, seu pai, foi ter à ilha de Zeiland e do que aí fez e do sítio e costumes dos da terra.

No mês de Novembro de 1505 em que estava prestes a partir a armada para o reino, de que era capitão Fernão Soares como atrás ficou dito, mandou o vice-rei o seu filho, Dom Lourenço às ilhas de Maldiva que estão a sessenta léguas de Cochim para fazer presa nas naus que por dentro destas ilhas passam de Malaca, Samatra, Bengala e outras províncias e com ele mandou Paio de Sousa, Lopo Chanoca e Nuno Vaz Pereira e outros capitães que ao todo eram nove; os quais, por má navegação, vieram à vista do Cabo de Comorim, donde constrangidos com as correntes, foram ter ao porto de Gabalicão, a que os nossos chamam Galé, que é na ilha de Zeiland, o que sabido pelo rei daquela ilha, com medo de que lhe destruíssem a terra e queimassem algumas naus que estavam no porto, mandou um presente de refrescos a Dom Lourenço, pedindo-lhe paz e amizade.

Sobre este recado, deixando nas naus reféns, Dom Lourenço mandou um cavaleiro, de nome Fernão Cotrim, visitar o rei com outro presente. Depois, para estabelecer as pazes, Dom Lourenço mandou Paio de Sousa com uma comitiva de portugueses e o rei recebeu-os numa grande sala, sentado num estrado coberto de alcatifas e panos de seda. O rei estava vestido com um baju de seda e na cabeça uma carapuça de brocado com dois chifres de ouro, com muita pedraria, cingido com um pano de seda que lhe chegava até aos joelhos, descalço e com muitos anéis nos dedos dos pés e das mãos e arrecadas nas orelhas, tudo de pedraria. Posto que fosse de dia, em cada ponta do estrado, estavam três homens com muitas tochas de cera acesas nas mãos. Além destas, havia outras feitas de prata sobre as quais estavam candeeiros também de prata que se alumiavam com azeite e que davam muita claridade.

Na sala, estavam muitos homens nobres bem ataviados a seu modo e Paio de Sousa passou perante eles com os portugueses que o acompanhavam, aproximando-se do rei que lhe fez muitas honras e logo ali decidiram que ele era contente de dar, cada ano, como por tributo ao rei de Portugal quatrocentos bahares de canela na condição de que os seus portos e gentes ficassem sob a nossa guarda para os defendermos dos que lhes quisessem, por nosso respeito, fazer dano.

Dom Lourenço consentiu condicionalmente; se o vice-rei, seu pai, o houvesse por bem. A canela foi logo entregue e carregada nas naus e enquanto se fazia a carga, Dom Lourenço mandou, com a permissão do rei colocar em terra um padrão de pedra com as armas e a divisa do reino, em sinal de que tomava posse daquela ilha em nome do rei, seu Senhor, Dom Manuel.

Assim que ficou feito, Dom Lourenço com as suas naus regressou a Cochim com esta canela e algumas naus que tomara de mouros, as quais o vice-rei mandou carregar nas naus de João da Nova e de Vasco Gomes de Abreu, por quem mandou um elefante ao rei Dom Manuel que foi o primeiro elefante que da Índia veio a estes reinos. Estas naus partiram de Cochim em Fevereiro de 1506.

Porque a ilha de Zeiland é uma das nomeadas da Índia e muito frequentada pelos nossos apresento sumariamente algumas das suas particularidades. É muito fértil de mantimentos, frutas e ervas de cheiro, principalmente de árvores de espinho e laranjeiras. Todo o ano tem muita fruta e flores, o que nasce pelos matos sem se plantar nem semear. Há nela muitos bosques da árvore da canela que se parece com o loureiro, de que se carrega muita para fora. Há muita pedraria: rubis, balais, jacintos, safiras, topázios, jagonças, ametistas, crisólitas e olhos de gato. No mar, pescam-se pérolas, aljôfar grosso e pequeno. Criam-se nela muitos elefantes que vendem para Cambaia, Narsinga e Malabar e os desta ilha são os habitantes mais domésticos e que mais facilmente se ensina e amansa que nenhuns outros que se saiba.

Há nela sete senhores, a que eles chamam reis, dos quais agora é o principal o senhor da cidade de Columbo. Dizem que este rei tem um rubi de um palmo de comprimento e a grossura de um ovo de galinha e que por ser muito limpo, de noite dá tamanha claridade como uma grande vela; o que parece fábula. Contudo, lembro-me de que o rei de Calecut mandou um seu naire, no ano de 1514, ao rei Dom Manuel, para andar na corte e aprender o modo dela e a língua portuguesa. Fez-se cristão e puseram-lhe o nome de Dom João, a quem eu ouvi dizer que o rei de Calecut tinha um rubi tamanho como um ovo de franga, tão perfeito que, de noite, dava de si claridade como uma candeia.

Os do sertão da ilha são gentios e os dos portos do mar, os mais deles mouros, falam todos canará e malabar e têm quase os mesmos vestidos e costumes: são homens fracos e pouco de guerra; muito efeminados e dados a vícios. São bem-dispostos e de bons corpos e parece terem por honra serem barrigudos.

No meio desta ilha há uma serra, da qual sai um pico muito alto e no mais alto dele está uma lagoa pequena, de água nadível e junto dela uma laje e nela uma pegada de homem que os da terra dizem que é do nosso pai Adão, que eles chamam Adambaba e que dali subiu ao céu e junto desta lagoa está uma ermida com duas sepulturas, onde eles crêem que foram sepultados os corpos de Adão e Eva. Este pico e ermida são de grande devoção entre os mouros e vêm ali muitos em romaria e de muito longe. Sobem ao alto deste pico por escadas de cadeias de ferro muito grossas. A terra ao redor desta serra em que está o pico é toda alagadiça e estes romeiros passam pela água que lhes dá muitas vezes pela cintura até chegarem à serra e daí sobem ao pico, no qual se lavam na água da lagoa e fazem o sala que depois de feito, consideram que todos os seus pecados, que até então cometeram, estão absolvidos.

Capítulo XII

De como Dom Lourenço foi mandado por seu pai percorrer a costa do Malabar, onde desbaratou uma armada do rei de Calecut e de como se desfez a fortaleza de Anchediva.

O vice-rei, assim que Dom Lourenço voltou da ilha de Zeiland, mandou-o com as mesmas naus e outras mais percorrer a costa do Malabar até à fortaleza de Anchediva, na qual se abasteceu de algumas coisas de que tinha necessidade. Despedindo-se do capitão da fortaleza, Manuel Pessanha, voltou a Cananor, onde esteve alguns dias com a sua gente ajudando o capitão desta fortaleza, de Cananor, Lourenço de Brito, na construção da fortaleza.

Nesta altura, veio ter com ele um homem chamado Luís Vuartman, natural de Bolonha, na Lombardia, que andara por muitas partes do mundo, sobre o que escreveu um tratado. Este homem disse quem era a Dom Lourenço e que vinha de Calecut para avisar o vice-rei de que o rei de Calecut fazia uma grande armada para guarda das naus que iam e vinham a seus portos. Esta armada não tardaria muito a sair para acompanhar muitas naus de mercadores de Meca que estavam de saída até as pôr a salvo das nossas armadas. Além disto, trazia recado dos milaneses que andavam com o rei de Calecut, que arrependidos do que tinham feito, como cristãos que eram, queriam reconciliar-se com Deus e vir para o serviço do rei de Portugal. Enquanto estivessem em Calecut não podiam deixar de fazer artilharia e tinham já fundidas mais de quatrocentas peças grossas e pequenas e cada dia que lá permanecessem os fariam fundir mais e o pior ainda era que os faziam à força ensinar o modo da fundição aos mouros e malabares.

Ao comunicar isto a Dom Lourenço, considerava escusado ir mais adiante buscar o vice-rei, seu pai. Pedia-lhe que prouvesse com diligência no que lhe dissera porque assim cumpria a serviço de Deus e do rei de Portugal. Dom Lourenço agradeceu-lhe muito o trabalho que tomara e o perigo a que se expusera para dar um tão bom aviso e por isso lhe fez mercê. Luís Vuartman esteve ali com Dom Lourenço três dias e depois mandou-o a Cochim na galé de João Serrão para Dom Francisco de Almeida, seu pai, dele saber o que se passava. Dom Francisco tornou a mandá-lo para Cananor na mesma galé e escreveu a Dom Lourenço para estar atento para pelejar com a armada de Calecut e que desse todo o dinheiro que houvesse mister a Luís Vuartman para ele tornar a Calecut a ver se podia trazer os dois milaneses. Ele assim negociou de maneira que os milaneses assentaram vir para os nossos. Contudo este acordo foi descoberto e os dois milaneses foram mortos pelos mouros e Luís Vuartman salvou-se e acolheu-se na fortaleza de Cananor.

Dom Lourenço, como tinha recado de seu pai para ir pelejar a armada do rei de Calecut, assim se preparou com a sua frota de que eram capitães Rodrigo Rebelo, em cuja nau, que era de quatrocentos tonéis, ia Dom Lourenço, Filipe Rodrigues, Fernão Bermudas, Nuno Vaz Pereira, Lopo Chanoca, Gonçalo de Paiva, Antão Vaz, João Serrão, Diogo Pires, Francisco Pereira Coutinho e Simão Martins. Nestas onze velas iriam oitocentos soldados portugueses além de outros da terra e com esta frota foi Dom Lourenço acometer a de Calecut que entre naus de guerra e de mercadores em cuja guarda saíra, havia oitenta e quatro naus e cento e vinte e quatro paraus. Ao ver esta armada do rei de Calecut, Dom Lourenço ficou apreensivo, não por lhe faltar ânimo, mas sim por recear que fizesse espanto a alguns dos nossos ver tanta multidão de naus e fustalha.

Porém como tinha decidido pelejar e assim fora o parecer dos capitães e fidalgos da frota abalou contra a armada dos inimigos, posto que lhe mandassem dizer que os deixasse ir em paz guiar algumas naus de mercadores aos portos para onde iam, não os achou descuidados nem desprovidos porque, se a nossa frota lhe fez rosto, o mesmo fez a outra até chegarem a tiro de bombarda de que de uma e da outra parte se fez uma temerosa salva com som de trombetas, atabales e outros instrumentos que tocavam de ambas as frotas; tudo isto à vista de Cananor e do rei de Calecut que tudo via muito bem do lugar onde estava.

Dom Lourenço encaminhou a nau para a nau-capitã dos mouros na qual lançou o arpão quatro vezes antes que aferrasse, entrando nela logo. Os primeiros foram Dom Lourenço, Filipe Rodrigues, João Homem, Fernão Peres de Andrade, Vicente Pereira e Rui Pereira, seguidos por muitos outros, mas isto não aconteceu sem grande resistência dos inimigos porque na nau inimiga havia seiscentos homens dos mais lúcidos de toda a frota que assim no entrar dela como depois lutaram ao modo de bons cavaleiros. Contudo os nossos trataram-nos de maneira que ou mortos ou cativos ou que se lançaram ao mar, a nau foi de todos despejada.

Acabado este assunto, Dom Lourenço acudiu a Nuno Vaz Pereira que, com a sua caravela fora aferrar a nau-capitã a leste dos inimigos, ficando-lhe atravessada debaixo da proa e com o arfar que fazia a caravela, cuidaram de ir ao fundo e com as setas e lanças de arremesso que lançavam dos castelos de avante se tinham todos por mortos. Deste perigo tirou-os Dom Lourenço ao chegar porque logo abalroou a nau e entrou nela e não sem menos trabalho do que se levou no entrar da nau-capitã porque nela havia quinhentos homens lúcidos e acostumados à guerra, dos quais mataram e capturaram a maior parte; outros salvaram-se a nado.

As naus dos mercadores, como viram estas duas desbaratadas, umas acolheram-se aos portos de Calecut e outras se fizeram ao mar para seguirem viagem para as partes onde tinham tomado carga. Contudo as outras naus e paraus de guerra, posto que vissem tão mau princípio nem por isso deixaram de acometer com muito ânimo a nossa armada e com tanto ímpeto que não havia navio dos nossos que não fosse cercado de dez e quinze dos inimigos, de quem se defendiam com muito trabalho porque eles vinham muito bem armados e traziam muita artilharia de bronze e de ferro com que tratavam muito mal os nossos.

Um dos capitães que nesta peleja se achou em maior perigo foi João Serrão porque tiveram cercada a sua galé, por bom espaço de tempo, mais de cinquenta paraos dos quais se desfez com assaz trabalho e com muitos dos seus feridos. Nesta revolta e ruído de bombardas e outros tiros de arremesso, aferraram quatro paraus grandes, o bergantim de Simão Martins e assim aferrados todos ficaram um pouco afastados da nossa frota e como os paraus eram altos e o bergantim muito raso os nossos se recolheram da coxia para baixo da tolda do bergantim, a maior parte deles feridos. Despejada a coxia, os inimigos entraram no bergantim; Simão Martins vendo isto, cansado com estava, arremeteu da tolda a eles e os enxotou a todos eles do bergantim, lançando-se uns ao mar e outros aos paraus (acontece que eram portugueses de muita fé e quando não podiam mais, invocavam a força divina que os impelia e assustava os nativos). Estes quatro paraus foram logo socorridos por outros quatro e Simão Martins, vendo o perigo em que estava, tomou um barril desfundado e na boca dele atou uma pele com a qual parecia ser uma bombarda grossa; o barril assim enfeitado assentou para a banda donde estavam mais paraus, dando a entender que lhe queria pôr fogo. Os inimigos, vendo isto, com medo da bombarda contrafeita, se alargaram todos e assim livre de perigo se foi para Dom Lourenço a quem ajudou a desbaratar sete paraus com que estava aos botes. Os outros capitães também o fizeram todos tão bem que a frota de Calecut foi desbaratada. Esta peleja durou todo aquele dia e parte da noite por fazer luar muito claro em que morreram mais de três mil dos inimigos; dos portugueses morreram seis e alguns malabares de Cochim e foram muitos os feridos de uma e da outra parte. Os nossos meteram no fundo muitos paraus e dez naus, das quais uma ia carregada de elefantes para Cambaia, tomaram duas bandeiras do rei de Calecut e nove naus em que algumas delas, que eram de mercadores que não puderam escapar, se achou especiaria e outras mercadorias de muito valor.

Com esta vitória e despojo, Dom Lourenço tornou a Cananor, onde foi recebido por Lourenço de Brito, por portugueses e pelo rei de Cochim com muita alegria do povo da cidade, excepto dos mouros que ficaram muito atemorizados com este desbarato da sua frota.

Lembrando que o vice-rei mandou o seu filho, Dom Lourenço, à ilha de Anchediva a prover das coisas que eram necessárias à fortaleza e à gente que nela estava, Dom Lourenço esteve alguns dias nesta ilha e isso foi do conhecimento do Sabaio, senhor de Goa, e também a armada que o Samori (rei de Calecut) fizera contra os nossos e de como Dom Lourenço tinha partido de Anchediva, onde não podia regressar tão facilmente por causa da armada do Samori. O Sabaio não quis perder a ocasião da ausência de Dom Lourenço e da sua armada (que estava em Cananor) e no mesmo instante mandou sobre a fortaleza de Anchediva uma armada de cerca de sessenta navios de remo, da qual era capitão um português renegado, chamado António Fernandes, carpinteiro de naus, que então se chamava Abedela e foi um dos degradados que Pedro Álvares Cabral levara e deixara em Quíloa. De lá viera ter a estas partes e por seu conselho o Sabaio fez esta armada, prometendo-lhe que se tomasse a fortaleza de Anchediva lhe daria a Cintacorá. Nesta armada havia muita e boa gente de guerra, a qual, durante quatro dias, acometeu muito esforçadamente a fortaleza, mas Manuel Pessanha defendeu-se de maneira que os inimigos, vendo quão mal os tratavam, tomaram a decisão de levantar o cerco e voltarem para Goa.

O vice-rei vendo quão trabalhosa era a fortaleza de sustentar por estar longe de Cochim e por conselho de todos os capitães e pessoas de qualidade, mandou, daí a poucos dias, derrubá-la e ordenou que fosse Dom Lourenço com a armada que trazia para que nela recolhesse a gente e a trouxesse a Cochim. =

Transcrita para o português actual por Maria Carmelita de Portugal

Lagos, 22 de Janeiro de 2017

Dom Lourenço, a ilha de Zeiland e a fortaleza de Anchediva

--

--

Maria Inácio Duarte

Licenciada em Economia e Master em Economia na especialidade de Planeamento licenciada em Gestão de Recursos Humanos sou professora, economista escritora. Gosto