Colagem de Pedro Henrique Cabo feita a partir de foto tirada por Nathali de Deus. As integrantes do Coletivo Madalena Anastácia se encontram no Parque Madureira, zona norte do Rio de Janeiro. Da esquerda para a direita: Ana Carolina Rocha, Priscilla Ferreira, Carolina Netto, Maiara Carvalho, Flávia Souza, Eloanah Gentil, Fernanda Dias, Rachel Nascimento.

As potências que vão além dos tablados

A união de mulheres negras cujos corpos transbordam “artivismo” e legitimam os espaços por onde passam

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8 min readSep 18, 2020

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Escreveu Lucas de Andrade.

O ano de 2015 chegava ao fim quando algumas percepções sobressaltaram aos olhos e já não podiam adiar o inevitável para as atrizes negras do Centro do Teatro do Oprimido (CTO — Rio), localizado no coração da Lapa. Antes apenas Madalenas, do Madalena Rio, porque são núcleo de uma rede internacional de teatro contemporâneo composta por grupos feministas, tornaram-se também Anastácias. Era necessário um recorte que potencializasse a vocação dessas mulheres, após perceberem a necessidade de que o trabalho fosse aprofundado. Da fusão entre ativismo e arte, surge o “artivismo”, que dita a filosofia — não apenas profissional, mas de vida — das integrantes do Coletivo Madalena Anastácia, criado após necessária cisão.

Primeira formação do coletivo Madalena Anastácia, na Lapa, bairro do Rio de Janeiro. FOTO: Tenily Guian. Da esquerda para a direita: Isabel Freitas, Bárbara Santos, Rachel Nascimento, Eloanah Gentil, Cláudia Simone, Fernanda Dias.

Desde então, raça e gênero se cruzam em todas as produções. Os assédios, o cabelo e outros assuntos são abordados na perspectiva de 10 mulheres negras. “A gente precisava encontrar um lugar dessa interseccionalidade porque tem questões que não são puramente de gênero, não são puramente raciais, mas atravessam ambas as opressões”, relata Rachel Nascimento, 32, mestra em Relações Étnico-raciais e Educação pelo CEFET-RJ, moradora de Madureira e integrante “curinga” — termo adotado para nomear quem media o público e lidera encontros internos — .

Assim como a carta do baralho apresenta valor variável para o jogo, Rachel, sempre proativa, age conforme as situações se impõem. Mas, diferentemente da carta, que tanto traz insegurança aos demais jogadores, ela assegura conforto e age sempre em favor de todas.

A jovem explica que Madalena alude à fama controversa que a figura icônica de Madalena tem: santa, para alguns; pecadora, para outros. “Sempre julgada, posta à prova, porém central em várias abordagens religiosas”. Já Anastácia foi o nome escolhido em memória à princesa bantu, escravizada, amordaçada pela inveja de sua eloquência e beleza, e um mártir da resistência do povo negro no Século XVIII. Bárbara Santos, mulher negra, ativista da Rede Ma(g)dalena Internacional e precursora do Teatro das Oprimidas - “uma revolução dentro da revolução” que foi o Teatro do Oprimido - inspira o movimento. Rachel acredita que o coletivo carrega consigo toda essa força.

Anastácia, princesa bantu.

“Mesmo com a máscara, os olhos e as ações dela [Anastácia] falavam muito. Assim a gente constrói nossas narrativas, nossa história. Tentamos cada vez mais tirar essas mordaças que também nos aprisionam”, diz. E não pense que elas se limitam aos palcos arrojados e holofotes ajustados. Elas são conscientes quanto à necessidade de democratizar cada vez mais o que discutem e os lugares que precisam ser acessados. Elas vão aonde for necessário, para encenar ou engajar. Seja qual for a ocasião, dão um espetáculo.

Em vez de resistência, troca de experiências

A primeira atividade presencial pós-pandemia do grupo ocorreu no fim de agosto, para uma plateia exclusivamente feminina de integrantes da Guarda Municipal do Rio de Janeiro (GM — Rio). O encontro foi possível pelo intermédio de Jucieni Santos, 52, membro do coletivo e há 24 anos vinculada à GM-Rio, e surpreendeu as demais artivistas. A formação militar, em certa medida, exige que mulheres tentem se equiparar aos homens para impor respeito. Maiara Carvalho, 25, pedagoga, moradora da Maré e membro do coletivo conta, no entanto, que a apresentação possibilitou reflexão entre as espectadoras:

A gente apresentou uma performance que falava como o corpo da mulher tem sido agredido pelas produções musicais, como nosso corpo tem sido invadido, a forma que ele é visto como algo permitido a ser acessado e abusado. Essas mulheres trouxeram várias reflexões do dia-a-dia, ficaram super impactadas com as músicas que levamos para essa apresentação. Elas nunca pensaram que aquelas músicas poderiam ser ofensivas para elas, como essas produções são um ponto de agressão”.

Da esquerda para a direita: Jucieni Oliveira, Rachel Nascimento e Maiara Carvalho juntas no evento voltado às mulheres agentes da GM-Rio, em agosto. Reprodução: Instagram do Coletivo Madalena Anastácia.

Maiara ressalta que o ambiente foi um local seguro tanto para elas, quanto para a plateia. Apesar de um homem ser ironicamente o cerimonialista de um evento totalmente voltado às mulheres, as agentes se sentiram à vontade para se verem representadas em cenas e se colocarem num lugar de desconstrução e reflexão. “Eu percebi a nossa companheira Jucieni sair dessa armadura que o militarismo coloca nas mulheres”.

Desconforto aos retrógrados e conservadores

No dia em que realizamos as entrevistas via WhatsApp, o Jornal Extra noticiou um caso de incêndio num terreiro de umbanda localizado no bairro Carlos Sampaio, em Nova Iguaçu. Pai Emilson de Iemanjá, responsável pelo local, registrou ocorrência na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). Rachel alerta que o caso não pode ser tratado como apenas um ataque à liberdade de culto, mas um ato de racismo religioso.

“Essa destruição de nossos referenciais é uma tentativa de embranquecimento para apagar a nossa história”, denuncia. Embora não tenha uma peça que aborde especificamente o tema, o coletivo usa aspectos da cultura e das religiões de matriz africana para denunciar a violência cometida contra os negros.

A peça “Qual é o seu lugar?” questiona quais são os lugares relegados sistematicamente pelos brancos e as pontes que articuladores da população negra têm buscado construir, especialmente como suporte para mulheres pretas e pardas. Ao discutir essas possibilidades, elementos de empoderamento, pertencimento cultural e identitário são trazidos como fio condutor da encenação.

Assista abaixo dois trechos da peça:

Leia mais: Onde se encontram os negros no mercado de trabalho, de Diogo Gomes, Fábia S Oliveira, Isabelle de Oliveira e Vivian Bonaço.

Arte e afeto na linha de frente

Moradores se reúnem para o ato “A Gente Pela Gente”, no Complexo do Viradouro, em Niterói. FOTO: Rafael Lopes.

Desde meados de agosto, o Complexo do Viradouro, em Niterói, foi ocupado por forças da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Uma operação policial deflagrada na comunidade sob muita violência, com muitos relatos de invasão às casas da região. Eloanah Carolina, moradora da localidade e integrante do coletivo, não se conformou com a arbitrariedade da ação, que descumpre ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) pela proibição de operações em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia.

A ação foi solicitada pelo prefeito do município de Niterói Rodrigo Neves (PDT) ao governador Wilson Witzel (PSC), antes da decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que o afastou do cargo. Cláudio Castro (PSC), governador em exercício, não desfez a autorização.

Eloanah, junto à Alessandro Conceição e demais moradores da comunidade, organizou protestos com faixas e lençóis onde escreveram #LarDeMoradoraRespeite e estenderam nas janelas das casas. Também foram distribuídos pelas ruas do complexo panfletos informativos da defensoria pública, com o objetivo de orientar mulheres a recorrerem à justiça em caso de abuso policial. “Lá não é um espaço onde as pessoas só saem para trabalhar e voltam. Não. As pessoas fazem arte, fazem cultura e só querem ter a sua casa, poder estar bem onde vivem”.

Abaixo, Juliana Marques, articuladora do movimento Mulheres Negras Decidem, reproduz um vídeo sobre a ação “A Gente pela Gente”:

O foco na população feminina se explica porque são elas, as mulheres negras, as chefes de família, em larga maioria, na região. São elas também que lideram o protesto. Isso torna o episódio, segundo Maiara, um pedido pela manutenção de um legado ancestral para “cuidar do complexo, cuidar das crianças que lá vivem e demandar respeito, principalmente por esses policiais que estão de fora e entram dessa forma num território sem pedir licença, sem saber como as pessoas vão estar”.

A primeira Ocupação Cultural Artística do Viradouro (OCA), pensada como um movimento de protesto e resistência, ocorreu no dia 5 de setembro. A bateria da G.R.E.S. Unidos do Viradouro esteve presente. Além do samba, performances de hip-hop, slam, poesias e outras manifestações de arte marcaram o evento.

Mulheres, jovens e crianças se reúnem na primeira Ocupação Cultural Artística do Complexo do Viradouro, no dia 5 de setembro. FOTO: Rafael Lopes.

Abaixo, Bárbara Santos, da Rede Ma(g)dalena Internacional, reproduz o vídeo da 1ª OCA:

“Um lugar onde uma mulher não duvida da outra”

As circunstâncias das existências das artivistas são, muitas vezes, o laboratório de suas personagens e imprimem também como são finalizados roteiros, figurinos e aspectos de direção. “Nós somos mulheres múltiplas. Atuamos, dirigimos, tocamos, cantamos, fazemos de tudo um pouco. Estamos prontas para reivindicar em diversas frentes o que é negado para nós”, diz Maiara.

No teatro das oprimidas, as mulheres se apoiam e seguem juntas para transformar as injustiças. Numa cidade tão excludente e desigual, o coletivo une trajetórias. Rachel e Maiara, por exemplo, vivem cerca de 15 quilômetros distantes uma da outra, mas no teatro tornam suas vozes uníssonas e sintonizam seus corpos para transformar.

Maiara Carvalho

Eu fui convidada a integrar o coletivo em 2017, depois de participar de outros grupos do Teatro do Oprimido. Eu começo a me identificar enquanto mulher negra e começo a reafirmar minha negritude a partir dos encontros com o coletivo. A partir das trocas, comecei também a abrir meus olhos para o que antes eu não via. Também convidei amigas e até familiares minhas para estar no teatro, seja em apresentações ou discussões. Além disso, pude me aproximar de mulheres negras potentes que estão na universidade e em outros espaços e pude contribuir para o avanço de outras companheiras.

Rachel traça uma linha do tempo para refletir o impacto que o coletivo trouxe à sua vida. Quando ainda pertencia ao Madalenas Rio, sentia falta da perspectiva da mulher negra porque, segundo ela, “por mais que todas lutem contra o patriarcado, as construções de vida mesmo são diferentes até historicamente” e justifica: “Enquanto mulheres brancas queimavam sutiãs, a gente lutava — e ainda luta — para não ter os corpos hiperssexualizados”. O que também possibilita uma angústia frustrantemente comum: histórias únicas de negros em espaços de prestígio social.

Rachel Nascimento

Em muitos lugares funciona assim: Você dificilmente vê várias pessoas negras em postos de destaque. Sempre “a primeira mulher negra”, “o primeiro homem negro” a fazer algo. Isso é muito solitário e muito perigoso, vide o que aconteceu com a Marielle Franco. Então, a gente tenta construir lugares coletivos e, para construí-los, precisamos narrar a história de forma coletiva. Curiosamente, os companheiros negros foram os que mais nos apoiaram nessa empreitada.

Quem financia a cultura

Em razão das medidas de distanciamento social aplicadas durante a pandemia, muitos produtores e projetos culturais ficaram desassistidos. O coletivo já se inscreveu para receber benefícios da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, sancionada para socorrer o setor artístico de todo o país com um fundo de R$3 bilhões. Maiara, no momento, está desempregada e sem nenhum tipo de renda. Receber o benefício garantiria uma segurança por mais alguns meses, mas ela conta que “tem sido demorado os trâmites para que esse recurso seja disponibilizado às pessoas que são da área artística de forma geral”. O coletivo atende aos critérios estabelecidos pela lei e acompanha o cadastro para receber a ajuda financeira.

Integrantes do coletivo na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). FOTO: Bobby Gordon. Da esquerda para a direita: Eloanah Gentil, Fernanda Dias, Carolina Netto, Rachel Nascimento, Maiara Carvalho.

Você pode acompanhar o trabalho e entrar em contato com o Coletivo Madalena Anastácia pelos seguintes endereços:

Facebook: https://www.facebook.com/coletivomadalenaanastaciario/

Instagram: coletivomadalenaanastacia

YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCtQZp-FF-OFhiUFDPVIOvtA

E-mail: coletivomadalenaanastacia@gmail.com

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Um coletivo de jovens da Baixada e da ZO em busca de boas histórias.