Colagem de Pedro Henrique Cabo com o autorretrato de Eugène Delacroix (1798–1863).

Opinião: A sutil arte de (não) ter zelo

Como o exibicionismo do ser humano se tornou um problema social

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3 min readSep 6, 2020

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Este é um artigo de opinião.

Escreveu Pedro Henrique Cabo. Colaborou Luiz Eugênio de Castro.

Não é novidade que os famosos stories podem ser uma arma social. Acredito que nem percebemos, mas somos condicionados pelos aplicativos a um certo desejo de consumir incessantemente uma timeline infinita. Se não eliminarmos todas as notificações e não vermos todos os stories, sentimos que não participamos efetivamente da rede. Esse problema de conduta também põe em discussão o que é consumido. No atual momento de pandemia, fotos na praia, cervejinha com os amigos e resenhas são alguns dos “gatilhos” de muitos que estão reclusos há seis meses e seguem a quarentena de forma mais rígida. Tá, mas você pode estar se perguntando: “e daí”?

Releitura, de Pedro Henrique Cabo, da obra “The Shot Marilyns de Andy Warhol”

Vivemos em uma época onde coaches e best sellers querem nos ensinar a “cultura do foda-se”. Em 2019, o livro mais vendido foi “A sutil arte de como ligar o foda-se”, de Mark Manson, o que comprova o interesse por esse movimento recorrente de eliminar tensões. A “sutil arte” de não se responsabilizar por consequências de nossos próprios atos em outras pessoas é uma postura muito confortável. A pandemia veio mostrar que essa atitude se torna cada vez mais habitual dentro de uma cultura completamente individualista e agressiva, na qual estamos inseridos. Praias lotadas no Rio de Janeiro, aglomeração em bares e postagens que mostram a realização de todas essas atividades, enquanto temos mais de 125 mil mortes causadas pela Covid-19, demonstram e exemplificam o caráter social egoísta. Ok, mas até onde eu, verdadeiramente, me responsabilizo pelo outro? Ou, até onde devo reavaliar minhas próprias condutas em prol do outro?

Colagem de Pedro Henrique Cabo da obra “Uma Tarde de Domingo na Ilha”, de Grande Jatte, com a fotografia de Ricardo Cassiano para a Agência O Dia/Estadão.

O “cancelamento” se tornou um termo muito usado pela internet nos últimos anos. Trata-se de um fenômeno de interrupção de apoio a políticos, empresas ou até mesmo a uma pessoa física, a partir de ações consideradas erradas pelo senso comum. Entretanto, a banalização desse movimento fez com que muitos indivíduos se protegessem e agissem sob a tutela do rótulo de cancelado. Por muitas vezes, em vez de encarar alguma ação como precipitada ou errada, pessoas optam por ironizar a ideia de cancelamento. “Já tô cancelado mesmo”, “vão me cancelar” são as frases mais comuns. Em uma tentativa de criar memes, fogem do debate e permanecem na superficialidade do sarcasmo.

Os muros são cada vez maiores e o diálogo cada vez mais ausente. As relações sociais foram prejudicadas em prol de uma egolatria exacerbada. Assim como Narciso, figura mitológica, que, pela sua vaidade, deixou se levar pela morte, o seu ato de imprudência resguardado de amor próprio pode ser interpretado como apenas uma negligência aos milhares de mortos diários. O seu post apenas demonstra a insensibilidade com outros, que podem estar em sérias crises de ansiedade ou depressão, por exemplo. Então, da próxima vez, repense se o foda-se é realmente a melhor forma de conduta.

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