Blockchain para artistas: o que você precisa saber, mas não tiveram coragem de te contar

Sobre o hype, a realidade imediata, e o valor do pioneirismo.

Felipe
Paratii
12 min readJul 3, 2018

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Texto escrito em Março de 2018 e publicado na edição #6 da revista Cause Magazine.

Em outubro de 2015, uma compositora britânica chamada Imogen Heap lançou aquele que é considerado o primeiro “single registrado em blockchain” na história da música. À Digital Music News, a cantora relatou seu entusiasmo: “Imagine que alguém ouve sua canção e você é imediatamente recompensado, podendo dividir a quantia com seu coreógrafo, suas companheiras, […] com quem for, [e] isso pode ir imediatamente para a conta deles”.

Para um internauta qualquer, bastava acessar uma URL, logar-se numa carteira de criptomoeda dentro do browser, e assinar digitalmente um download atrelado a um micropagamento. Soa complicado, mas não era tanto. Valia a pena. Transmissão direta de receita advinda de fãs, sem intermediários. Redistribuição automática de lucros para colaboradores. Duas antigas utopias para artistas finalmente tomavam forma, após décadas de uma internet não tão democrática quanto as promessas do passado faziam soar.

Em torno do lançamento de Imogen Heap, pairava uma aura que remetia ao movimento epitomizado por Radiohead, ao distribuir In Rainbows, em 2007, na internet, sob um modelo inédito de “pague o quanto quiser”. A banda inglesa de rock alternativo tinha vendido mais de 3 milhões de unidades físicas e digitais do álbum, numa jogada de marketing pioneira que ganhara manchetes mundo afora.

Abraçando uma tecnologia muito mais embrionária do que a internet era em 2007, mas igualmente revolucionária — a blockchain -, Imogen Heap lançou-se à sorte, dotada do mesmo espírito libertário. Ao Guardian, confessou:

“Quero que hackers peguem minha música e experimentem com ela o que bem entenderem, usem-na como quiserem, explorem o que podemos fazer juntos”.

Depois de meses no ar, o álbum vendeu pouco mais de 200 cópias, a um total de cerca de 133 dólares.

Já é 2018, e uma criptomoeda brasileira patrocina a camisa de um time no campeonato paulista de futebol. Seu vizinho fala de bitcoin no elevador; os primos já sabem investir em Ripple; não cabem numa mão os amigos que ficaram ricos com ether (essas são 3 das maiores criptomoedas, caso não soe familiar). Por que tentar desmistificar a blockchain nas páginas de uma revista, uma vez que até o William Bonner já se aventurou a fazê-lo na mesa do Jornal Nacional?

A Bjork já vendeu disco que levava Audiocoins de brinde. O Fifty Cent descobriu ter mais de sete milhões de dólares em bitcoins guardados — foram pagos por downloads de um álbum seu, anos atrás. Gramatik e RAC são dois entre tantos DJs que a mídia já reportou terem “se tokenizado” e começado a distribuir parcelas de seus rendimentos a fãs.

No entanto, mesmo que fagulhe a impressão de que o mundo já gira em torno de blockchains e seus ativos nativos, você provavelmente nunca consumiu música, vídeos, ou qualquer tipo de conteúdo digital diretamente do seu artista favorito, através das chamadas “plataformas descentralizadas”, sem passar por intermediários como Facebook, Google ou Amazon, como promete a tecnologia por trás do bitcoin e seus similares.

A democratização do acesso ao conteúdo proporcionada pela internet, em certa medida, não foi acompanhada da democratização do acesso aos meios de distribuição. Facebook e Google monopolizam mais de dois terços do negócio de publicidade digital global porque detém infraestruturas hercúleas para suportar a demanda sem prejudicar a experiência das preciosas audiências, ou perder o controle das informações geradas por elas durante um segundo sequer.

Imaginemos a seguinte situação: você recebeu uma mensagem no Whatsapp com um hit viral, cujo clipe não vê a hora de dar “play” no Youtube. Provavelmente, quando isso acontecer, os arquivos requeridos virão de um datacenter num país gelado, viajarão por cabos de fibra óptica debaixo do mar, chegarão a um servidor local e serão “disparados” em direção ao seu celular. Os segundos de consumo serão traduzidos em um fluxo de bits descrevendo sua localização, perfil demográfico, hábitos de navegação e sabe-se lá mais o quê, tudo a ser enviado de volta aos datacenters gelados, pela mesma rota, para depois servir de moeda de troca junto a anunciantes.

No espectro oposto, em alternativa a esse modelo de negócio, têm-se aquilo que chamamos de redes peer-to-peer (par-a-par, ou pessoa-a-pessoa). Quem já usou BitTorrent, Kazaa e cia. sabe do que se trata. Nas iterações mais modernas desses programas, não se necessita de um servidor central para guardar e distribuir arquivos digitais. No caso do exemplo acima, um “play” geraria uma requisição comunicada para quaisquer computadores ou aparelhos próximos — se algum deles tiver assistido ao clipe recentemente, ele próprio poderá entregar pedaços do arquivo a você. Quem “serve” a rede são os próprios participantes que consomem recursos dela.

Essa subversão logística está na base de uma miríade de serviços alternativos que tem despontado como promessas nos últimos anos. Ujo é uma plataforma para a venda de músicas em troca de criptomoedas, sem taxas para que terceiros mantenham o serviço. Mediachain, um registro distribuído que atribui imagens e fotos a seus criadores originais. Paratii, um mercado aberto de vídeos online sem censura ou desmonetização discriminatória.

Os três exemplos — análogos ao Spotify, à Shutterstock e ao Youtube, para facilitar a comparação com o cenário presente — são construídos sobre redes peer-to-peer que, em essência, tem pouco de novidade, e remontam a décadas de pesquisa e desenvolvimento em tecnologias distribuídas. A diferença das propostas atuais para os torrents, por exemplo, é que, agora, com uma camada nativamente digital para micropagamentos, usuários podem ser recompensados em dinheiro por “ajudarem a servir os serviços que consomem”. É como se, após o fim do download de um filme, e antes de fechar o programa do torrent, você fosse avisado de que manter a janela aberta por mais cinco minutos pudesse lhe render cinco reais. Existem incentivos para que máquinas ociosas em datacenters, empresas e casas ao redor do mundo passem a se plugar em redes do tipo. Paira a esperança de uma escalabilidade maior ainda que a conquistada por arquiteturas tradicionais, mesmo as altamente otimizadas.

Ocorre que a escalabilidade não vem sem uma curva de adoção sólida, sustentada por educação em torno do significado dessas novas tecnologias. Por debaixo de toda a complexidade técnica, têm-se aberto naturalmente espaços para charlatanismos e fantasias. Em meio a mudanças de paradigma difíceis de se assimilar, usuários são bombardeados com explicações rasas ou propositadamente errôneas, falsas promessas de lucro, esquemas de pirâmide e clamores de que todos os serviços digitais que usamos hoje estão fadados ao fim.

Mas a blockchain não representa panaceia alguma. E, sendo honesto (em contraponto com a narrativa sexy e underground da mídia), sua natureza é bastante crua e objetiva.

Uma blockchain nada mais é que uma estrutura de dados, que registra novos blocos de informação ordenadamente. Podemos imaginar uma grande planilha, que, em vez de ficar hospedada em um único computador ou grupo de servidores, é guardada, em cópias, por todo mundo que tem interesse em ler ou utilizar as informações que ela provém. Computadores que têm uma cópia do arquivo podem servi-lo para novos entrantes na rede, e assim por diante, de forma peer-to-peer. Nessa “planilha”, a cada 10 minutos, imaginemos que uma linha nova é adicionada ao rodapé. Essa linha tem células onde qualquer um pode escrever uma transação, usando uma unidade contábil que está impregnada no código e, portanto, a planilha sabe ler e operar: o bitcoin, por exemplo. A grosso modo, cada transação especifica o endereço que a envia, aquele que a recebe, e quanto está sendo transferido.

Ilustração (tecnicamente incompleta) de uma nova transação na blockchain do bitcoin, em verde.
Fonte: http://fortune.com/2017/12/18/jp-morgan-bitcoin-zcash-wilcox

A cada período de tempo, na nossa metáfora, uma nova linha é adicionada a planilha, e todos os que detém uma cópia dela a sincronizam, propagando as transações registradas. Através de um mecanismo criptograficamente seguro, “novas linhas são adicionadas ao rodapé da planilha” (na verdade, são blocos adicionados a uma corrente, a blockchain). A cada nova linha, além das transações feitas, registra-se também novas unidades de bitcoin, que são “emitidas” pela rede de forma segura e previsível — ou seja, mineradas. O importante da metáfora é entender que toda atividade adiciona novas informações ao registro, mas não é possível “apagar” informações passadas. É como se a única linha editável da planilha fosse a próxima a ser preenchida.

“Pense na blockchain como algo altamente processado, como um chicken McNugget, e se você quiser hackear o negócio isso significaria mais ou menos transformar o nugget de volta em uma galinha” — ilustra Don Tapscott, do Blockchain Research Institute, com sua famosa e polêmica metáfora, em entrevista à série documental Around the Block.

Está contida aí a ideia básica por trás do bitcoin. Proposto em 2008, e nascido em 2009, representa a primeira incarnação de uma blockchain, estrutura genericamente chamada de “base de dados distribuída” (ou, literalmente, “livro-registro distribuído”) porque essa “planilha” não fica armazenada em um único servidor central. Em vez disso, é compactada criptograficamente e cada computador conectado à rede armazena uma própria cópia do registro compartilhado.

O bitcoin é herdeiro de uma linhagem longa de empreitadas científicas na tentativa de se criar uma moeda nativamente digital. Zooko Wilcox, conta, em outra entrevista à mesma série, como descobriu aquela que provavelmente foi a primeira implementação real de uma dessas moedas — o Digicash, na década de 80.

Uma linha do tempo com iniciativas que levaram a redes peer-to-peer e moedas criptográficas.
Fonte: https://medium.com/paratii/a-brief-history-of-p2p-content-distribution-in-10-major-steps-6d6733d25122

Vimos a queda do Muro de Berlim, eu devia ter uns 15 anos, [o que] significou o fim dos sistemas políticos sustentados em se manter pessoas aprisionadas detrás de barreiras — foi o que pensei naquela época. […] A próxima coisa que aconteceu foi a internet, que eu descobri aos 18. E aí, de novo, de forma naïf, eu supus: ‘a internet é a solução para todos nossos problemas, ela vai acabar com as guerras, com a ignorância, com a pobreza’. E a internet gerou muito bem pra todo mundo, mas ela não acabou com as guerras — ainda não. E aí, quando eu tinha 19 anos, descobri a ciência de David Chaum*, e a habilidade de se ter dinheiro privado pela internet. E eu pensei: pois bem, essa é a terceira peça. O ingrediente que faltava. Se um indivíduo tem liberdade política suficiente; tem comunicação de forma a não depender de governos ou jornais que controlam o que pode ser lido ou escrito; e também tem dinheiro livre… aí vamos ter uma rede em que todos os humanos podem ajudar outros humanos livremente”.

[* Criptógrafo notório por criar diversos protocolos voltados à preservação da privacidade, além do paper “Untraceable Electronic Mail, Return Addresses, and Digital Pseudonyms”]

No que tange a distribuição de conteúdo digital, redes peer-to-peer já vêm sendo usadas há tempos em formatos historicamente associados a movimentos de oposição, dado o caráter incensurável da tecnologia (lembre-se da metáfora em que não dá para apagar, mas somente adicionar linhas à planilha). O anseio por plataformas descentralizadas capazes de escalar mais sustentavelmente que arquiteturas monolíticas remete aos tempos áureos não só dos torrents, mas de outras empreitadas, como a MojoNation, startup em que Zooko trabalhou.

Eles me contrataram para incluir dinheiro digital privado no produto de hospedagem distribuída que estavam construindo”, ele rememora. Na época, não funcionou. Hoje, a camada dos pagamentos tem um modelo em que se inspirar — o bitcoin — e uma tecnologia que a suporta — a blockchain. Com incentivos financeiros embedados em tais redes, o arranjo pode finalmente ficar de pé.

O dinheiro ganho por agentes que contribuem com redes suportadas por uma blockchain gera um corolário inesperado: onde ele fica guardado? Com meios de pagamento tradicionais, valores são armazenados e garantidos por bancos. No caso de transações falhas, há alguém para quem recorrer. E o único dinheiro que um artista guarda consigo, de fato, são talvez notas debaixo do colchão. Com criptomoedas, muitos usuários potenciais congelam quando percebem que precisarão custodiar o próprio dinheiro. Guarda-se um par de senhas, pelas quais se dá o acesso aos fundos, armazenados na rede distribuída e visíveis em qualquer máquina conectada. Se o usuário erra na hora de digitar o destinatário de uma transação, ou perde suas senhas, não há um intermediário responsável a quem recorrer. O que para alguns é libertador, para outros, dá calafrios.

Problemas de user experience são notórios em se tratando das aplicações descentralizadas. Estão certamente entre os fatores que impediram a compositora Imogen Heap de vender mais cópias, em seu lançamento pioneiro. Google e Facebook não construíram seus impérios à toa: a capacidade que têm de oferecer conveniência é insuperável, atualmente, seja cruzando serviços proprietários ou nos conhecendo melhor que nós mesmos. Será que acabaremos abrindo mão desse conforto (ou substituindo-o) por conta de uma tecnologia que nasceu de um anseio estritamente político?

Don Tapscott postula: “ninguém entende sobre o HTTP, ou a diferença entre o HTML e o XML, e acho que esse vai acabar sendo o caso para as blockchains. É preciso entender a natureza peer-to-peer do negócio. Quanto aos detalhes sobre criptografia e todo o resto, a maioria das pessoas jamais vai apreender, e nem deve”.

Usabilidade vem com o tempo, e com iniciativas de educação que ensinem as massas a distinguir redes nas quais se pode confiar daquelas em que é melhor manter distância. Não é simples como soa:

somos ensinados a confiar em pessoas e instituições. Não em grupos distribuídos, sem líder, representados por conjuntos de regras escritos em linguagem de programação.

As infraestruturas para que artistas migrem para novos modelos estão sendo testadas em escala neste ano, muitas ganhando vida em seus alfas e betas. É o caso da Paratii, que começamos aqui no Brasil, em 2016, e hoje desenvolvemos junto a um time de engenheiros de um punhado de países diferentes.

No começo, ninguém entendia nada desde que abríamos a boca pra falar de um Youtube sem dono, em que tudo é registrado numa blockchain. Agora, parece que todo mundo quer investir no mercado. Dos veículos aos pequenos produtores, passando pelos grupos de mídia — o mercado percebe a revolução em curso. É preciso aprender a adotar um paradigma completamente diferente. Se não for assim, como é que uma indústria calcada no modelo de intermediação e agenciamento vai sair de onde estamos hoje e ir para onde estaremos amanhã?”, conta Edu Tibiriçá, CEO da BossaNovaGroup, que incubou a Paratii no fim de 2015, antes de o assunto virar pauta recorrente no território nacional.

Diante das valorizações na casa dos quatro dígitos percentuais obtidas por criptoativos nos últimos anos, é improvável que novos entrantes façam fortuna puramente através da especulação. O que deve incentivar criadores, produtores e audiências a participarem de redes descentralizadas é a possibilidade de se estar presente, antes de muitos, no Youtube, no Spotify ou no Twitter de depois de amanhã.

O pioneirismo tem seus custos. Mas, para se valer do linguajar financeiro que permeia a indústria das criptomoedas, o risco-retorno é dos mais atraentes. Lembra daqueles 133 dólares que a Imogen Heap arrecadou em 2015? Se ficaram guardados em ether, moeda virtual pela qual foram transmitidos, surfaram na valorização estonteante que culminou ao fim de 2017*. A valor presente, as vendas da compositora somam mais de meio milhão de reais.

[* Cerca de 190 mil dólares, com o ether a ~U$920, em 14 de fevereiro de 2018. Em outubro de 2015 uma unidade da criptomoeda valia por volta de U$0,65.]

[** Fui recentemente informado do paradeiro deste valor pelo próprio time da artista, no Twitter]

A economia criativa não tem mais dono. Pertence, de pedacinho em pedacinho, a quem se entregar a ela primeiro. Diz um livro antigo que a nobreza não está em ser servido, mas sim em servir. Pois a web descentralizada coloca o ideal em prática. Quem aos outros serve, enobrece. Quem aos outros explora, não serve mais.

Na Paratii, estamos construindo um protocolo para atribuição, curadoria e monetização distribuída de vídeos. Estamos no reddit, e o time é acessível pelo Telegram (BR aqui 🇧🇷, ING aqui 🇺🇸)👇

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