Terra em Trânsito: por uma sociedade mais P2P

Projetos como a Commons Transition Platform apontam para uma transição para uma sociedade mais orientada aos bens comuns, compartilhamento e legado sem a intervenção do mercado ou do Estado.

Lidia Zuin
Paratii

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Foto de Harimao Lee.

Quando trazemos em pauta a tecnologia do blockchain, temos a tendência de pensá-la a partir do viés das criptomoedas, um dos seus mais populares desdobramentos. No entanto, iniciativas como a Paratii e outras tantas abordadas nesta publicação mostram como o blockchain, na realidade, surge como uma proposta mais orientada a fornecer uma infra-estrutura para uma transição de modelos e de olhares diante de como nos organizamos como sociedade, como acessamos e consumimos conteúdo e informação.

Ao longo da história da computação e da internet, das origens da cultura hacker até o BitTorrent, uma das principais questões que transitavam por estes círculos era justamente a do compartilhamento e acesso a conteúdos e informações. Esses novos movimentos e hábitos digitais “forçaram” a indústria cultural a repensar seu modelo, buscando formas de se reinventar diante do livre e fácil acesso ao download de filmes e músicas que, ao mesmo tempo, representavam uma transição para uma dinâmica em que o acesso à informação se tornava mais importante do que a posse da mídia física na qual o conteúdo estaria armazenado: isto é, já não era mais necessário comprar CDs, DVDs, jornais ou revistas para ter acesso à informação ali disposta.

Ao visualizar essa tendência, empresas como a Netflix e o Spotify trouxeram serviços de streaming de conteúdo audiovisual como uma forma de facilitar ainda mais o acesso a esses conteúdos, especialmente aos usuários mais leigos. Afinal, os aplicativos desses serviços são muito mais user friendly do que a dinâmica de busca por torrents que, invariavelmente, podem repercutir em vírus e malware. Ademais, com a também crescente popularização dos smartphones, o consumo de conteúdo se tornou multiplataforma, o que favorece a presença desses mesmos serviços em versões para desktop, mobile e SmartTV, por exemplo.

O fato de o criador do Spotify, o empresário sueco Daniel Ek, ter criado o serviço no país de origem do The Pirate Bay é sintomático: “Nós entendemos que, se criássemos um serviço que fosse melhor que a pirataria, então conseguiríamos convencer as pessoas a pararem de compartilhar arquivos ilegalmente, e começarem a consumir música legalmente outra vez.” Isto é, novos serviços e empresas são fundados com a tônica de repensar o acesso e o consumo de conteúdos audiovisuais de forma a não só facilitar a vida dos usuários, mas como também repensar modelos de remuneração para criadores de conteúdo.

A questão é que plataformas como o Youtube e o Spotify, ao disponibilizarem seus conteúdos de forma gratuita, apostam em um tipo de publicidade que já não faz mais sentido em uma época na qual tantas pessoas já usam Adblock e navegadores como o Chrome passam a considerar a implementação dessa ferramenta já como um serviço interno à plataforma. Desse modo, com o modelo de interrupção da publicidade caindo por terra assim como aconteceu com a mídia física, quais são as novas lógicas que podem propor uma solução para remunerar criadores de conteúdo?

A Paratii traz esse discurso como norteador de seu modelo de distribuição de vídeos de forma descentralizada, baseando-se na tecnologia do blockchain que, afinal, trata-se de uma tecnologia P2P, isto é, peer to peer ou de pessoa para pessoa. Dos novos modelos de economia criativa, compartilhada e descentralizada, movimentos como o Commons Transition não só reproduzem um diagnóstico pelo interesse e a necessidade de uma nova transição como também apresenta formas de fazê-la acontecer a partir de tecnologias sociais.

A Commons Transition Platform é uma base de dados que reúne experiências práticas e propostas políticas que têm como objetivo tornar a organização social mais humana e consciente. Mas qual é o significado de “commons” para essa iniciativa? Traduzindo-se o termo, temos o conceito de “bens comuns”, o que o estrategista político David Bollier define como:

  • Um sistema social voltado para uma administração de recursos a longo prazo e que tem como foco preservar os valores compartilhados e a identidade da comunidade.
  • Um sistema auto-organizado pelo qual as comunidades administram recursos (tanto os esgotáveis quanto os reabastecíveis) com a mínima ou nenhuma dependência do Mercado ou do Estado.
  • A riqueza que herdamos ou criamos juntos e que deve ser passada adiante, não diminuída nem aumentada, para nossos herdeiros. Nossa riqueza coletiva inclui recursos naturais, infraestrutura civil, obras culturais e tradições, e conhecimento.
  • Um setor da economia (e da vida!) que gera valor de forma que sempre podemos ter como garantido — e muitas vezes prejudicado pelo Mercado e pelo Estado.

Portanto, o desafio da Commons Transition é desenvolver políticas que criam valores em comum, facilitando uma participação aberta e generalizada da sociedade e que prioriza as necessidades das pessoas e dos ambientes afetados por tais decisões políticas acima de considerações mercadológicas ou burocráticas. É a partir daí que vemos a conexão com a lógica do P2P, especialmente quando entendemos essa expressão como interações sociais não coercivas, isto é, não forçadas, nas quais um valor comum é criado e circulado na forma de bens comuns. Em suas palavras:

A Commons Transition descreve propostas de ação que priorizam as necessidades da sociedade civil com foco em uma cultura mais democrática e consciente. O constante crescimento econômico produz impacto negativo e a captura (enclausuração) de recursos físicos escassos com finalidade de lucro pessoal ocorrem ao mesmo tempo em que recursos abundantes, como a informação e a cultura, são artificialmente transformados em algo escasso a partir de limitações legais. Uma transição para bens comuns recomenda práticas P2P e redes de compartilhamento do que é abundante, além de proteção para o que é escasso. A decisão feita de forma coletiva, em muitas escalas, e a emergência de movimentos políticos municipalistas fazem parte dessa transição.

Seria esse ideal um tanto utópico? Segundo a Commons Transition, pelo menos 2 bilhões de pessoas no mundo têm sua sobrevivência a depender de algum tipo de bem comum. Apesar dessa dependência, esses bens comuns são muitas vezes desprotegidos e muitas vezes sob ameaça de serem vendidos ou privatizados devido aos interesses do mercado.

“Historicamente, há muitos tipos de bens comuns; hoje, vemos um novo tipo de bens comuns digitais desenvolvendo a partir da emergência da internet. Entendemos que este é o momento de adotarmos o desenvolvimento de programas específicos, incluindo legislações, de modo a reclamar, expandir e defender os bens comuns, iniciando essa transição para uma sociedade verdadeiramente sustentável e justa. Nossas visões de uma sociedade orientada ao bem comum é baseada no escalonamento e coesão dos vários projetos e práticas P2P e de bens comuns atuais.”

No momento, a plataforma já conta com 10 rascunhos de propostas de políticas criadas em colaboração com a FLOK Society. Esses rascunhos trazem considerações acerca das capacidades humanas, capacidade de produção orientada à criação de bens comuns, infraestrutura social e inovação institucional, infraestruturas técnicas e abertas, infraestrutura para bens comuns e vida coletiva, todos disponíveis na Commons Transition Wiki.

Essas propostas foram discutidas em um seminário global em Quito no fim de 2014 e, desde então, a plataforma tem recebido contribuições de modo a transformar o próprio projeto em um bem comum, aberto para colaboradores. O melhor cenário imaginado pelo projeto é transformar-se em uma plataforma de compartilhamento aberta e P2P que se torne um repositório de propostas de políticas públicas, oferecendo meios de avaliação e troca de informação para que tanto cidadãos quanto oficiais, legisladores, movimentos militantes e hackers possam se beneficiar e colaborar com a empreitada.

Paratii é uma plataforma de vídeo que permite a criadores terem de volta o controle sobre suas receitas. Funciona sobre uma rede peer-to-peer, é resistente à censura, e cada login tem sua própria carteira de tokens. Saiba mais através do nosso site.

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Lidia Zuin
Paratii

Brazilian journalist, MA in Semiotics and PhD in Visual Arts. Researcher and essayist. Technical and science fiction writer.