Para aqueles que estão fugindo #9: Amazônia Armageddon
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Uma paisagem desolada se descortina ao nosso redor: um posto de gasolina fechado, alguns casebres de madeira, as ruas perpendiculares à rodovia todas de terra. Tomamos café preto numa lanchonete cheia de moscas e pegamos um ônibus circular por alguns quilômetros até o Estreito, na divisa entre o Tocantins e o Maranhão.
É o fim da BR-153 e o começo da BR-010, último trecho da Transbrasiliana antes de Belém do Pará, nosso tão esperado destino final. Conversamos com os motoristas de caminhão no arredores de um posto fiscal, pedindo carona a eles. Um gaúcho piadista, voltando ao Sul, nos aconselha, rindo: “Gurizada, o que vocês estão fazendo aqui?! Voltem pra casa!” A fila de caminhões estacionados à beira da estrada é longa e abordamos os caminhoneiros um a um. Finalmente, conseguimos uma promessa de carona para Belém, mas teremos que esperar até o fim do dia.
No entardecer, reencontramos o motorista e partimos com ele. Caminhoneiro experimente, de meia idade, moreno, alto e magro, tem a fala pausada e um sotaque goiano bom de ouvir. É um talentoso contador de histórias. Sempre com um ar sério e calmo, quase solene, narra os pormenores de acontecimentos sangrentos ou aventuras idílicas. Praticamente não faz perguntas sobre nós — gosta mesmo de contar histórias.
Por exemplo, sobre as lendárias — já narradas por outros motoristas — e longas viagens de balsa de Belém a Manaus, que duravam semanas, décadas atrás. Dias de tédio, as pessoas nas redes, as índias remando da beira do rio até a balsa, com suas ágeis canoas de madeira, para visitar os caminhoneiros. Algumas por dinheiro, outras por prazer.
Da balsa a outra história, num rincão da Amazônia, terra sem lei, ou melhor, onde reina a lei da bala. Estavam todos num boteco, incluindo ele mesmo. Um fazendeiro foi a algum lugar e deixou sua caminhonete ali, de vidro aberto, e roubaram o toca-fitas. O ladrão foi rapidamente encontrado e levado à frente do bar. Antes de matar o homem com um único tiro no meio da testa, o fazendeiro fez questão de quebrar seu braço em vários pedaços, na frente de todos. Depois o outro braço. Quem tentasse impedir a lenta tortura também levaria chumbo.
No posto fiscal da divisa do Maranhão com o Pará ele pede para registrarmos as notas na Receita. O trecho adiante, que penetramos quando começa a escurecer, revela um cenário apocalíptico: no Pará, são centenas de quilômetros com toras centenárias acomodadas nos dois lados da estrada — a maioria será vendida e transportada com notas falsas.
Nuvens negras e venenosas, da queimada de madeira para a produção de carvão, cobrem os céus. Os moradores da região não raro bloqueiam a estrada em protesto contra a fumaça, que nunca vai embora. De vez em quando avistamos uma olaria inóspita. A maioria, assim como as carvoarias, utiliza mão de obra infantil e escrava, o caminhoneiro no explica com ar de naturalidade.
Lembro então das aulas de História no ensino médio, quando aprendíamos com indignação que os portugueses praticamente varreram do mapa a Mata Atlântica e escravizaram seres humanos. Viajando pelo Pará fica claro que isso nunca deixou de acontecer: continuamos a devastar florestas e a escravizar pessoas, diretamente ou com o nosso consumismo cúmplice.
Durante a noite o motorista dá assustadoras cochiladas no volante. Tentamos não cair no sono para acordá-lo, caso necessário, mas é quase impossível, depois de uma noite sem dormir, seguida de um dia longo e cansativo. Felizmente, ele decide parar para dormir num posto em Paragominas, também conhecida como “Paragobalas”. De manhã a paisagem apocalíptica continua a mesma: centenas de quilômetros.
Descemos do caminhão na periferia de Belém, de manhã cedinho. Vamos ao centro num ônibus superlotado, pessoas de aparência sofrida indo trabalhar. Como de costume, caminhamos por um longo tempo buscando a hospedagem mais barata.
Em cidades maiores, como Belém, a região em volta da rodoviária é onde geralmente ficam os moquifos, e é lá que encontramos a opção mais em conta. O quartinho todo de madeira tem duas camas de solteiro, lençóis manchados, ganchos para duas redes e um banheiro escuro com ducha fria. Não precisamos de mais nada.
Aliviados do peso das mochilas, saímos para a ofuscante luminosidade do dia eufóricos para conhecer a cidade “portal da Amazônia”. Perguntamos a alguém a direção do centro, à beira do rio, e somos informados que é muito longe, melhor ir de ônibus. Ignoramos o conselho, como quase sempre, e vamos a pé mesmo, interagindo com o ambiente e as pessoas.
Todos com quem conversamos sobre Belém descreveram a cidade como horrível e suja. Caminhando pelas suas ruas, agora, a sujeira e os trechos com esgoto a céu aberto nos parecem meros detalhes. Os postes têm alto-falantes tocando música, as pessoas sorriem muito. Em incontáveis barraquinhas, senhoras vendem comidas com nomes indígenas e temperos nativos que nunca ouvimos falar. Cocos geladíssimos custam cinquenta centavos e são servidos por homens de facão na mão.
É a primeira vez que conhecemos uma cidade em que a maior parte da população tem traços indígenas — nos impressionamos com lindas mulheres de olhos um pouco puxados, cabelos longos, negros e lustrosos, caminhando altivamente pelas ruas. A impressão é de termos deixado para trás um Brasil europeizado e americanizado para adentrar numa terra bem mais original.
O centro antigo de Belém, esparramado nas margens de uma grande bacia formada pelo rio Amazonas, é a grande maravilha da cidade, onde os resquícios de um passado majestoso convivem com a fervilhante vida atual. Traços de natureza, como o cheiro de mata, a umidade no ar e os bandos de periquitos no céu sugerem que a grandiosa floresta pulsa não muito longe.
Belas igrejas adornadas com ouro e um suntuoso teatro, lembranças de quando Belém era uma importante cidade do ciclo da borracha, são os parentes ricos do antigo e popular mercado Ver-o-Peso, às margens do rio, e dos decadentes bairros de arquitetura colonial portuguesa.
Nesses bairros as casas e igrejinhas de paredes grossas, janelas e portas amplas, linhas sutilmente curvilíneas e cores orgânicas são, para mim, que não entendo nada de arquitetura, uma das mais belas representações da alma humana. Mistura de simplicidade e saudosismo, uma beleza quase tão natural quanto a das estrelas, mas muito humana. Como panos rendados, cafezinho e bolo de fubá com pitadas de tristeza.
Ao contrário do utilitarismo contemporâneo, lembram as coisas simples da vida: um homem e uma mulher, o pão, a água, o vinho, uma brisa, o entardecer. Às vezes, durante uma caminhada por essas ruas de paralelepípedo, o tempo parece entrelaçado, os fantasmas do passado voltando à vida: homens bebem cachaça num fim de tarde, o cheiro do peixe frito flutua pela vizinhança, o olhar distante da senhora encostada na porta vaga pelo tempo.
Passamos por uma pequena odisseia para participar de um ritual do Santo Daime, de uma noite inteira, numa área rural. De lá vamos cedinho para Mosqueiro, uma região praiana não muito longe de Belém. Pela janela aberta do ônibus observamos as casinhas de madeira à beira do rio e respiramos fundo o ar úmido impregnado de aromas da floresta. Alugamos um quarto numa pousadinha e saímos para almoçar. O prato feito mais barato da viagem, por dois reais, é delicioso. Depois do almoço, caímos na cama e só acordamos no início da noite.
A praia fica a apenas alguns minutos de caminhada da pousada. Sozinhos, esparramados na areia branca, perdemos a noção do tempo conversando. A noite está arroxeada e luzes de embarcações cintilam ao longe. O ritual de ayahuasca foi intenso, doloroso, mas limpou muita coisa. A areia fina escorrendo entre os dedos é suave — nossos corpos e espíritos estão leves, os gestos tranquilos, brincalhões e despreocupados. As cores parecem mais nítidas e vivas, o toque da brisa é como carícias.
De repente, a lua crescente nasce alaranjada nas águas negras do rio. O rio, na verdade, parece mar, pois é impossível enxergar terra do outro lado, de tão vasto. Pequenas ondas quebram na areia fofa — a água, no entanto, é doce. O mergulho refrescante tem gargalhadas de felicidade na noite quase quente.
A nossa amizade, sedimentada em inúmeras descobertas, uma experiência de quase morte durante uma tempestade de raios nas dunas de Florianópolis, momentos de felicidade e dor intensas, se torna ainda mais bela e visceral depois de uma jornada como essa. Podemos conversar por horas sem perceber o tempo passar. Em outros momentos, não raros, a comunicação vai muito além das palavras: durante um breve olhar compartilhado, de relance, com os olhos arregalados e um sorriso levemente insano, tudo é dito.
Mas, nessa noite, o Dênis vai além. Inspirado pelo Zorba — personagem do livro de Nikos Kazantzakis que utiliza a dança para comunicar seus sentimentos mais profundos — , começa a rodopiar e a dar saltos na areia, os olhos sorrindo, vidrados, o corpo se contorcendo numa dança alucinada. Expressa com todo o corpo e alma suas histórias, as vivências da nossa jornada, a poesia arrebatadora que é estar vivo.
A semana em Belém se aproxima do fim. Algumas das esquinas da cidade já nos são familiares, um ou dois donos de bar nos reconhecem, encontramos e nos despedimos de amigos que nunca mais veremos na vida. Na última noite na cidade o Dênis vai a uma lan house usar a internet e eu fico no quarto.
Fecho um baseado e deito na rede, pelado — mesmo assim não paro de suar, a umidade e o calor são extremos. Enquanto dou algumas baforadas, balançando com a rede, sou pego de surpresa por uma visão chocante: a imagem de mim mesmo nu, numa rede em um quarto de hotel barato, de madeira, em alguma cidade maluca perto da Linha do Equador.
Ao longo da viagem me surpreendi com a descoberta de que viajar pelo mundo externo é ao mesmo tempo uma viagem ao mundo interno. Não foram poucas as vezes, durante as longas caminhadas e intermináveis esperas por uma carona, que tive flashes da infância, me peguei remoendo e digerindo acontecimentos passados, sentimentos desagradáveis e medos antigos, em geral observando e aprendendo mais sobre mim mesmo.
Quando saímos do mundo relativamente seguro e previsível das nossas rotinas, da zona de conforto, somos forçados a estar mais conscientes, alertas, para lidar com o inesperado. E a luz da consciência acaba iluminando, também, aspectos de nós mesmos até então esquecidos ou ignorados em cantos escuros do ser.
Na estrada somos bombardeados o tempo todo por experiências e informações novas e pequenos ou grandes desafios, e uma das melhores maneiras de aprender sobre nós mesmos é observar nossas reações perante essas constantes mudanças.
No entanto, nesse começo de noite, nu na rede, no quarto de madeira, o próprio conceito do “eu” parece em jogo. Lembro do Vidroh contando, semanas atrás, que os budistas diziam que se você for retirando as camadas de uma cebola, no fim percebe que não existe cebola, apenas camadas. Levanto da rede e me olho no espelho, assombrado.
O que é esse ser misterioso diante de mim, o que sou eu? Sou o que vejo em mim mesmo? Mas estou em constante mudança. Sou o que os outros veem em mim? Mas eu não paro de mudar — camadas. Testemunho, então, o universo sentindo o suor escorrer pela sua testa, sentindo medo, sorrindo, observando deslumbrado o reflexo de si mesmo no espelho enferrujado de um banheiro úmido num rincão tropical.
Numa manhã ensolarada, quarenta dias após deixarmos Florianópolis, pegamos o caminho de volta. Conseguimos rapidamente uma carona na saída de Belém, perto de um posto. O caminhão tem placa de Cascavel, interior do Paraná, uma cidade conhecida do Dênis. Um comentário sobre isso leva o motorista a iniciar uma longa e intricada narrativa sobre como se apaixonou por uma menina de quatorze anos no Sul. Depois de muitas brigas, ameaças de morte e disputas armadas, arrancou ela da família e conseguiu trazê-la para o Pará, onde se casaram e agora criam os dois filhos.
Duas horas depois descemos no lugar combinado, perto de um posto, na cidade de Santa Maria do Pará. Assim que saímos do caminhão o caminhoneiro dá uma grande gargalhada e diz, “Vocês acreditaram mesmo nessa história de mulher de quatorze anos? É tudo mentira!” Em seguida, fecha rapidamente a porta do passageiro e acelera o caminhão. Ficamos mudos por alguns instantes, observando o caminhão sumir na estrada, até que nós, também, caímos na gargalhada.
Passamos o dia em frente ao posto, sem conseguir carona. À noite, pegamos um ônibus para o Estreito, no Maranhão, e de manhã, no posto fiscal, seguimos viagem com um motorista mineiro. Ele dirige um caminhão cegonha vazio de carros, mas conta do volume assombroso de carros fabricados e transportados todos os dias pela sua firma.
Assim como outros caminhoneiros, aos poucos vai simpatizando conosco e concorda em nos levar mais longe do que o inicialmente combinado. Conta, empolgado, histórias do interior de Minas, dos amores, brigas, maluquices, cachaças, maconhas. Mas não está se sentindo bem, comeu algo no almoço que o obriga a parar repetidamente no acostamento para se aliviar. Por isso, decide dormir mais cedo que o planejado, num posto no Tocantins.
Voltando para casa com uma agradável carona, ao fim de uma grande jornada, nos sentimos leves como a brisa fresca que acaricia nossas peles no entardecer. Enquanto o Dênis compra cigarros na lanchonete do posto, acaba puxando papo com uma mulher, que nos convida para tomar uma cerveja no bar onde trabalha.
O bar, uma casa de madeira, fica num canto escuro do amplo posto. Seus longos cabelos negros ainda estão molhados do banho, usa um vestidinho justo e cheira a perfume barato. É a dona do lugar, a única pessoa trabalhando, e nós os únicos clientes. O papo rola fácil, todos muito empolgados, bebemos uma cerveja gelada atrás da outra. De repente, ela traz uma porção de frango a passarinho, por conta da casa. Olhamos um para o outro, somos vegetarianos — mesmo assim comemos tudo e até roemos os ossinhos. Pedimos mais cervejas.
Ela conta dos aprendizados com a avó índia, da infância na região, dos mistérios da floresta. Fala também do namorado, um caminhoneiro paranaense bravo, que anda sempre armado, mas que agora está para as bandas do Sul. O papo esquenta, a embriaguez aumenta, começa a rolar um roçar de pernas por baixo da mesa. Ela fecha o bar, entramos na casa, deitamos os três na sua cama.
Nossa jornada começou com a incrível carona com o sorridente índio gaúcho, e termina nos braços da bela Maria, da Amazônia. Apesar da embriaguês, ou até mesmo por causa dela, estamos plenamente conscientes da inominável poesia disso tudo. Depois de sinceros beijos de despedida, poucos antes do amanhecer, estendemos nossas redes no teto do caminhão, como lençóis, e deitamos sob um céu absurdamente estrelado.
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