Minha indisfarçável paixão por Mindelo

Annamaria Marchesini
Revista Passaporte
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7 min readJul 29, 2019

Cheguei lá sem saber direito o que me esperava e parti com uma vontade danada de ficar mais um pouco naquele pedacinho de Cabo Verde

Praia da Laginha, com o Ilhéu dos Pássaros à direita e a ilha de Santo Antão ao fundo: dá ou não vontade de mergulhar nestas águas?

Quando o avião embicou para a pista do aeroporto internacional Cesárea Évora, a impressão era de que estávamos aterrissando em outro planeta. Ao redor só se via o extenso terreno árido e irregular. Depois do azul profundo do Atlântico Norte, no caminho de Lisboa a Cabo Verde, cheguei ao Mindelo (sim, é no masculino) e suas surpresas. Com cerca de 70 mil habitantes e costurada em forma de meia lua na beira da baía de Porto Grande, antiga cratera de um vulcão extinto, a cidade é a segunda maior do arquipélago. Sua gente é simples, bonita, simpática e solar. Mindelo é o tipo do lugar onde dá prazer caminhar por suas ruas, puxar papo com os moradores, conhecer seus recantos e experimentar sua culinária. Tudo no calmo ritmo da cidade.

Fui para Mindelo como voluntária da ONG Si Ma Bô, que protege, trata e acolhe cães e gatos abandonados (Conto aqui: https://medium.com/passaporte/o-corpo-imundo-e-a-alma-lavada-8931747ac759 ). Durante o tempo em que estive lá as minhas tardes eram dos cachorros. De manhã saía sem direção, zanzando por suas ruas, observando a cidade. E fui à praia, lógico. Quando embarquei em São Paulo quase não sabia nada sobre meu destino. A cantora Cesárea Évora, Amílcar Cabral e o movimento de libertação de Cabo Verde e Guiné Bissau, o escritor Germano de Almeida e alguma coisa sobre a história da antiga colônia portuguesa resumiam meus conhecimentos. Não fazia ideia do que me esperava no “grão de areia que não se molha, espalhado mundo afora, só rocha e mar”, como diz a canção “Petit Pays”, na qual Cesárea Évora evoca seu país.

Mindelo vista da Torre de Belém, uma cópia simplificada da original lisboeta

Mindelo é uma cidade mignon. Cercada de montanhas, ela mal sobe suas encostas. Sua arquitetura ainda guarda muito da colonização portuguesa e da influência britânica: foi posto de abastecimento de navios ingleses e, até mesmo por isso, sempre teve mais um perfil de negócios e de cultura. Ensolarada e seca (não chove há 3 anos na ilha de São Vicente), tem poucas árvores, ruas largas e casas coloridas. Praticamente todo mundo fala o português, que é o idioma oficial cabo-verdiano, ensinado nas escolas. Mas a língua corrente é o crioulo, gostoso de se ouvir. Quando saí de lá até já entendia um pouco.

Uma das ruas de Mindelo: muito sol e poucas árvores

É muito fácil andar em Mindelo e os mindelenses são muito gentis. Há restaurantes com deliciosos pratos típicos, como a cachupa, e bons hotéis. A praia da cidade é a Laginha, entre o porto e o estaleiro. Sua areia brilha de tão branca e foi trazida do fundo do mar para aumentar a prainha que havia ali antes. A água, limpa e clara, é gelada e ótima para um bom mergulho. Raramente está cheia, pelo menos fora do verão, quando fui. Ao entardecer, quando o pessoal sai do trabalho ou da escola, a Laginha vira academia: há aparelhos de ginástica, quadras de futebol e a calçada é uma boa pista de corrida.

Navio encalhado dá um charme especial à praia Cova d’Inglesa

Apesar de receber muitos visitantes durante o verão europeu, a ilha de São Vicente e, óbvio, Mindelo, não são descaracterizados pelo turismo. Que o Universo os preserve assim. Então é muito fácil acompanhar a vida da cidade, o jeito das pessoas, seus hábitos. Ao lado do Mercado de Peixe está a Torre de Belém, uma cópia simples da “original” de Lisboa e, perto deles, os mais velhos passam o dia jogando em tabuleiros. Ambulantes ocupam as ruas próximas e a Praça Estrela, atrás do Mercado, é onde estão vendedores de vegetais, artesanatos, tênis importados, roupas. De um tudo. Já no mercado municipal as bancadas se dividem entre legumes, verduras, temperos, bebidas e artesanato.

A senegalesa Binta, à esquerda, e sua amiga Houssa, vendedoras da Praça Estrela

Na Estrela conheci a senegalesa Binta, que produz e vende artesanatos. Diz que gosta muito dos brasileiros. Perguntei se gostaria de ir embora, disse que não. “Mindelo é bom!” A opinião é a mesma de outros estrangeiros que trocaram seus países pela cidade. Os donos da ONG Si Ma Bô, italianos Silvia e Paolo, por exemplo, chegaram lá há 19 anos e só deixam Cabo Verde para visitar a família. Rita, jovem do Porto, passou dois meses em Cabo Verde e voltou para Portugal, mas não quis ficar. Retornou ao Mindelo. “Aqui sou mais feliz!”. Uma brasileira que vive em Praia, capital de Cabo Verde, me contou que um casal brasileiro havia acabado de se mudar para Salamansa, aldeia de pescadores próxima ao Mindelo, em busca de sossego!

O Farol Dona Amélia, na praia de São Pedro, onde se chega caminhando 3 quilômetros por um estreito caminho junto ao mar

As praias de São Vicente são bem boas. Para além de Salamansa há a Baía das Gatas e a Calhau. Na direção contrária, ao lado do aeroporto, está São Pedro, com sua larga faixa de areia e, a 3 quilômetros por um estreito caminho rente ao mar, o farol Dona Amélia. O caminho do Mindelo ao aeroporto passa pela Cova d’Inglesa, que fica cheia de gente e barraquinhas nos fins de semana. Nela está um barco encalhado que a torna muito fotogênica. Consta que ele foi apreendido com drogas e lá ficou. A volta completa na ilha leva a outras belas praias.

Baía das Gatas, onde o mar parece piscina

Há muito o que fazer em Mindelo: vida noturna (que eu não frequentei porque chegava cansadíssima do abrigo dos cães, mas que os hóspedes do hostel elogiaram), restaurantes e passeios. Agências de turismo levam os turistas para todos os cantos da ilha. Da Laginha, por exemplo, vê-se o Monte Cara, que parece a silhueta de um rosto humano. É possível visitá-lo, assim como o Monte Verde, o mais alto de São Vicente (750 metros). Há carros de aluguel e táxis. Para ir às praias, basta pegar um Hiace, vans que partem da Praça Estrela para vários destinos. Neste caso esqueça o relógio: elas só saem quando estão cheias. Dependendo do dia e da hora, isso pode demorar. Para ver toda a cidade, vá ao Fortim D’el Rey. A Casa do Povo, antigo Palácio do Governo, é uma graça, abriga exposições de arte e História e fica bem no centro.

A Casa do Povo, antiga sede do governo que hoje abriga exposições

A República de Cabo Verde é formada por 10 ilhas vulcânicas que somam 4 mil quilômetros de área. Só a de Santa Luzia, uma reserva natural, não é habitada. O arquipélago fica a pouco menos de 700 quilômetros da costa do Senegal. A moeda em Cabo Verde é o escudo cabo-verdiano. Um euro equivale a 110 ECV. Seca e sem nascentes de água doce, a água da ilha de São Vicente é dessalinizada. Aviso: beba apenas água mineral. Toda a sua energia depende de combustíveis importados.

Esta é só uma amostra das belezas de Mindelo: a Baía de Porto Grande, em frente ao Mercado do Peixe, e o Monte Cara ao fundo.

Apesar de produzir alguns alimentos em terras irrigadas por poços artesianos, frutas, legumes e hortaliças de São Vicente são trazidos de ilhas vizinhas, como a bela Santo Antão. Produtos industrializados são importados. A pesca é farta em São Vicente e o grogue (cachaça) produzido lá e na ilha de Santo Antão, em frente, é de primeira qualidade. A comida de Cabo Verde é deliciosa. Eu, pessoalmente, me encantei pelo cardápio da Casa Café Mindelo. Veganos, não temam: alguns restaurantes têm pratos especiais para vocês.

P.S.1: Fui para Mindelo via Lisboa pela Azul (até Lisboa) e TAP (até Mindelo). Sem queixas. Mas há voos diretos de Salvador, Recife e Fortaleza para a ilha do Sal e a cidade de Praia, a capital do país, pela Cabo Verde Airlines. Em Cabo Verde, a ligação aérea entre as ilhas é feita pela Binter. Há barcos também, mas não experimentei esta opção.

P.S.2: Fiquei no Si Ma BÔ Hostel, cuja renda é revertida para a ONG onde fui voluntária.

Paisagem do Fortim D’el Rey, com a participação especial de um dos cachorros do Si Ma Bô

P.S. 3: Quando for ao Mindelo, atravesse a baía e visite a ilha de Santo Antão. É um dos lugares mais bonitos e de natureza mais surpreendente que já conheci. As fotos abaixo mostram um pouco do que vi.

Santo Antão
Montanhas e vales de Santo Antão
Em Santo Antão as plantações são feita em terraços que sobem as montanhas
Legenda desnecessária, não é?
Construções típicas da ilha
As ruínas de uma antiga sinagoga diante do oceano

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Annamaria Marchesini
Revista Passaporte

Sobre lugares por onde passo e outras coisinhas mais. Afinal, tudo é viagem. As fotos são minhas, para o bem e para o mal.