Para aqueles que estão fugindo #6: Noite de Natal no fim do mundo
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Quando chegamos em Aceguá, depois da última carona do dia, milhões de estrelas pulsam no negro profundo da noite. A cidadezinha que dá início à Transbrasiliana tem uma grande área descampada, espécie de praça, por onde passa a linha imaginária que divide Brasil e Uruguai, e uma única rua asfaltada.
Encontramos um hotelzinho barato e o sono transcorre profundo, sem sonhos. O amanhecer chega colorido e fresco, com um cavalo ao lado de uma cerca de arame farpado, verdes pastos ao fundo. Aceguá tem um ar de velho oeste. As selarias, várias delas, já estão abertas ao raiar do dia, cheirando a couro. Atravessamos uma portinha meio escondida, onde o Dênis tem que abaixar para não bater a cabeça, e descobrimos uma tia uruguaia preparando uma espécie de torta frita, deliciosa especialidade para o café da manhã.
A primeira carona do dia chega após algumas horas de espera. Um veterinário de fala mansa, vestindo típicos trajes gaúchos, conta que estava cuidando de uns cavalos no Uruguai. Depois dele seguimos por alguns quilômetros com um tiozão caminhoneiro piadista, com cara de alemão.
Entre uma carona e outra, às vezes temos que caminhar por alguns quilômetros no acostamento, em busca do próximo melhor ponto de carona. De repente, durante uma dessas caminhadas, observamos uma caminhonete da polícia se aproximar. Após breve hesitação, pedimos carona também para eles, levantando os dedões. Surpreendentemente, encostam logo à frente — trocamos um rápido olhar de apreensão enquanto corremos até lá. O policial no banco do passageiro não abre a boca, simplesmente faz um gesto com o polegar para subirmos na carroceria.
Assim, chegamos em Caçapava do Sul numa viatura policial. Após longas andanças e esperas sob o fortíssimo sol de verão, o Dênis não se sente bem e decidimos descansar, sentando num banco em uma praça arborizada. Aliviados do peso das mochilas, bebemos água e comemos amendoim enquanto um grupo de meninos brinca por perto. Um deles se afasta do grupo e vai se aproximando da gente, com passos vacilantes. De repente, para na nossa frente, os olhos arregalados de fascinação, como se fossemos de algum espetáculo circense.
Essa imagem traz à tona a lembrança de mim mesmo, quando criança, fascinado por dois mochileiros barbudos que certa vez vi passar pela minha cidade de interior — talvez nós habitaremos seus sonhos como os dois aventureiros habitaram os meus.
De manhã, conseguimos carona com um jovem caminhoneiro. O único, até agora, dono do próprio caminhão. De boné na cabeça e sorriso no rosto, começa a conversa dizendo que tivemos sorte, pois nunca dá carona. Logo após essa observação, no entanto, conta de outras caronas que já deu: a um rapaz que vinha do Nordeste sem um real no bolso, a um velho de uns setenta anos.
Após um breve silêncio chama nossa atenção para uma cruz de madeira no acostamento, uma das milhares espalhadas pelas estradas do Brasil, testemunhas da carnificina que é o transporte rodoviário. Quando criança, passou no local quando o acidente tinha acabado de acontecer — tem o olhar distante enquanto faz o relato. A imagem do carro em chamas permanece viva na sua memória, com a suposta gordura das banhas do motorista obeso escorrendo pelo asfalto.
A carona seguinte é com um animado professor de História. Toca Rolling Stones no carro e ele diz, empolgado, ser uma pena não ter um isopor com cervejas geladas para dividirmos. Horas depois descemos num ponto de carona bastante frequentado por estudantes, em Santa Maria, onde temos que esperar bastante tempo, em fila, pela nossa vez. O homem que finalmente nos leva de carro conta de quando ia de carona de Santa Maria a Ijuí, anos atrás. “Época boa… Sem dinheiro no bolso, mas com uma namorada em cada cidade!”
Ele nos deixa perto de uma pousadinha na beira da estrada, onde pretendemos dormir caso não surja uma carona até Passo Fundo. Após algum tempo pedindo carona sem sucesso, o sol já baixo, tento apelar ao espírito natalino e escrevo um FELIZ NATAL no pedaço de papelão que usamos como plaquinha. O primeiro carro que passa depois disso para. No entanto, como quase todos os motoristas, o garotão de boné diz não ter lido o que estava escrito na placa.
Faz faculdade na região e parece cheio de energia. Tanto que corre acima dos cento e cinquenta por hora e faz ultrapassagens absurdas, desviando do carro que vem em rota de colisão frontal nos últimos segundos. Apesar disso o Dênis, que viaja no banco da frente, pega no sono rapidamente, como de costume. Isso já é motivo de briga entre nós: os motoristas geralmente esperam ter companhia para conversar e, como ele geralmente dorme, eu tenho que me manter acordado, apesar do forte cansaço, às vezes no limite da exaustão.
O rapaz chama a minha atenção com um sorriso malicioso e faz um sinal para observar o Dênis. Ele então freia bruscamente no meio da estrada e aperta a buzina por alguns segundos, simulando um choque iminente. O Dênis acorda sobressaltado. Quando percebe a brincadeira, dá uma risadinha sem graça e não demora a cair no sono de novo.
Descemos no acostamento, perto de uma cidadezinha, e continuamos pedindo carona — o sol já se pôs, mas continua a iluminar a estrada com seus últimos raios. De repente, passa um carro com um cara de dreads que grita: “Ali na frente, tchê!”
Um carrão parou para nós e não tínhamos percebido — vamos correndo até ele. O banco é de couro e o ar-condicionado está ligado. O homem, inicialmente sério, vai se soltando aos poucos e começar a contar histórias da sua vida — uma vez foi se aventurar no Norte e chegou a formar uma pequena frota de caminhões. Agora é advogado e está voltando de uma cidadezinha da região, estava numa audiência.
Vamos até sua casa em Passo Fundo, mas não consegue achar a chave e a esposa não atende o telefone. A casa está em reforma e a mulher ficaria furiosa se ele trouxesse hóspedes nessas condições — não fosse isso, garante que nos hospedaria. Antes de partirmos, aponta para alguns buracos de bala no muro da casa. Defende trabalhadores contra algumas empresas e por isso teria sofrido um atentado, enquanto jantava com a família.
Por fim consegue pouso para nós numa hospedaria gratuita, mantida por um político para famílias da região que vão a Passo Fundo utilizar o hospital. Deixa seu telefone conosco e insiste para ligarmos no dia seguinte, de manhãzinha: quer nos levar de carro até o melhor ponto de carona na estrada.
De manhã apenas ligamos de um orelhão, para agradecer, depois de já termos caminhado por cerca de uma hora até a saída da cidade. Em meio à garoa fina, entramos num posto para beber água e o frentista nos recebe com uma frase enigmática: “Hoje é o dia do viajante!”
Ele deve perceber nossos olhares confusos, pois logo oferece uma explicação: não somos os primeiros viajantes a passar pelo posto no dia, um ciclista acabou de sair depois de ter mostrado fotos impressionantes dos seus quatro anos rodando o mundo de bicicleta. Sorrimos com satisfação. Aos poucos, vamos desbravando um Brasil até então pouco conhecido por nós: em constante movimento, mais selvagem, nômade, itinerante, de caminhoneiros, ciclistas, andarilhos, caroneiros, retirantes.
A chuva engrossa e estendemos os dedões embaixo de um ponto de ônibus, quando mais uma vez o inesperado acontece: conseguimos carona com um ônibus de banda. O grupo de música gauchesca fez um show na noite anterior e agora ruma a outra cidade. Apenas um dos músicos está acordado — conversa um pouco, depois pede licença e vai dormir. Nós também aproveitamos para descansar.
Erechim é uma cidade planejada, as ruas em linha reta, aparentemente sem graça e meio vazia na véspera do Natal. Descemos no centro e rodamos pelas ruas largas até encontrar um hotelzinho barato, onde dormimos mais um pouco. À noite compramos umas cervejas — nossa ceia — , ligamos para as famílias a cobrar, de um orelhão, e sentamos num banco num canteiro no meio de uma avenida central.
Já é tarde quando uma família de índios, aos trapos, carregando seus poucos pertences, surge como fantasmas vagando na noite. Pai, mãe e quatro filhos, entre crianças e adolescentes, caminham até que, de repente, são atraídos por uma loja de roupas. Ficam um tempo ali, imóveis, contemplando o mundo iluminado e inacessível do interior da loja, além da vitrine. Passado um longo momento, seguem caminhada e desaparecem na escuridão da noite. É noite de Natal.
A ironia da cena me faz respirar fundo. É como se fosse um retrato síntese da história do Brasil, das Américas, quem sabe de toda a nossa civilização ocidental e capitalista, erguida com a argamassa do sangue do genocídio e da escravidão—aos sobreviventes e excluídos, só resta observar o mundo ilusório do consumismo brilhante e glamuroso através de uma vitrine impenetrável.
Pouco antes da meia noite algumas prostitutas um pouco entristecidas saem de um bailão e encostam no banco ao lado. Nossas cantadas bonachonas dão início a diálogos brincalhões e, quando o relógio marca meia noite, trocamos votos de feliz natal, abraços, selinhos na boca de despedida, e vamos dormir.
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