Para aqueles que estão fugindo #13: Quatro dias ou quarenta anos

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
7 min readMay 29, 2020

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Foi o Bonito quem me falou da Laura. Eles se conheceram num encontro do Couchsurfing, enquanto ela enrolava um cigarro de tabaco com haxixe sem o menor pudor no meio de um bar no Centro Velho de Barcelona. Ele mesmo um ser maluco e não convencional, ficou impressionado com a originalidade da menina, que respondeu à altura suas provocações, xavecos e palhaçadas. "Irmão, ela tem uma energia selvagem," me disse certo dia com um sorriso bobo de olhos arregalados, ao contar que a Laura veio de Oslo a Barcelona com uma única carona num caminhão, sozinha, e que estava procurando carona em um barco à vela para ir à América do Sul.

Poucos dias após o Bonito deixar Barcelona, encontro um post da Laura num fórum do Couchsurfing e, após titubear um pouco e sem saber se ainda está na cidade ou não, envio a ela uma mensagem privada desejando boa sorte com as caronas e sugerindo um encontro nosso, quem sabe, no Brasil. Fico surpreso quando responde com um convite para tomarmos um café em Barcelona mesmo.

Dois dias depois pego o metrô para encontrá-la na beira da praia sentindo uma euforia incomum, o coração parecendo prestes a saltar do peito. Levo na mochila uma garrafa de vinho e o restinho da maconha que comprei no primeiro dia em Barcelona, que dá no máximo para um baseado.

Ao me aproximar da praia, percebo uma figura feminina sentada numa mureta, um lenço colorido estilo camponesa do leste europeu amarrado na cabeça, enrolando um cigarro artesanal com a ponta dos dedos. Cumprimentamos com um beijo na bochecha, caminhamos em direção ao mar e sentamos na areia da praia.

O lenço exótico deixa escapar cabelos negros e curtos, os olhos inteligentes e penetrantes são claros, de uma coloração amarelada. A impressão é de uma baixinha feroz — seu olhar e gestos rebeldes e um sorrisinho meio maluco me fazem pensar na Janis Joplin. Ela recomeça a enrolar seu cigarro de tabaco com pedacinhos de haxixe e eu ofereço o resto da minha erva, completando a mistura a ser consumida pelo fogo.

Após tomarmos parte do vinho sentados na areia, ela sugere caminharmos um pouco pela praia. Enquanto escurece, a mesma lua que eu o Bonito vimos nascer naquele domingo inesquecível — agora mais espessa e amarelada — se põe sobre a cidade, à esquerda. A conversa flui tão naturalmente que nem sentimos os quilômetros percorridos. Tem vinte e três anos, a mesma idade que eu, e nasceu na Rússia, em algum povoado da Sibéria. Quando a União Soviética entrou em colapso a família se mudou para Oslo, na Noruega, onde cresceu.

Trabalhava como designer, mas entrou em depressão por vender coisas que só faziam mal para os outros e para ela mesma, de viver uma vida que não era dela, de ter sido sempre ensinada a obedecer e nunca a questionar. O médico receitou uns remédios, que ela se negou a tomar, pois nunca usa nada “químico”. Drogas apenas as “naturais”, como maconha e tabaco orgânico — álcool quase nunca.

Durante sua depressão morou por um ano na casa de amigos, que cuidavam dela — praticamente não saía do quarto. Até que foi se recuperando e decidiu mudar radicalmente de vida: vendeu tudo o que tinha e conseguiu, numa transportadora, uma única carona de caminhão, durante quatro dias de viagem, diretamente de Oslo a Barcelona.

Sentamos num banco de madeira em uma marina para descansar. Em meio à bela sinfonia dos ruídos dos veleiros balançando no mar, conto das minhas viagens de carona, tentando fazer disso um pequeno encorajamento, e quem sabe para impressioná-la um pouco. Depois questiono seu entusiasmo por alimentos orgânicos, mais para ouvir sua argumentação acalorada e idealista do que como um real questionamento.

Continuamos a caminhada e acabamos chegando numa praia mais distante e escura. Venta e faz frio, mas assim mesmo decidimos seguir por um conjunto de pedras que penetra o mar por uns cem metros. Sentamos na ponta, imersos na escuridão da noite, entre os estouros e respingos das ondas quebrando. Ela pergunta se pode ir à minha casa comprar maconha, vendida pelo brasileiro de dreads que mora comigo, e eu sinto nisso uma oportunidade de passarmos a noite juntos. Começa a falar algo e eu a interrompo com um beijo.

Vamos em pé no metrô, sem falar nada, bem agarrados, sua cabeça descansando no meu peito. Em casa, a noite transcorre como um encontro mágico e explosivo entre duas almas viajantes, vagabundas, solitárias, que por alguns momentos dividem a grande aventura, mistério, nostalgia que é viver, numa entrega total, com toda a sinceridade, com os abraços mais apertados e carinhosos e os beijos mais ardentes, como se não houvesse mais nada no mundo.

Saímos do quarto às quatro da tarde, mais de vinte e quatro horas juntos. À noite vou a um bar com um amigo brasileiro e uma galera do Couchsurfing. A Laura tinha me convidado para fazer algo, mas estupidamente deixei para mais tarde — só penso nela e meu coração está apertadíssimo. Digo isso ao meu amigo, com um adeus, e saio às ruas em sua busca.

Ela disse que estaria com amigos no bar do Manu Chao — passo horas perdido pelas ruelas do Centro Velho sem encontrar o lugar. E pior, estou sem crédito no celular para mandar uma mensagem no telefone do namorado da sua amiga — ela não tem telefone. Quando finalmente decido ir embora, às três da manhã, decepcionado e cabisbaixo, o celular toca: é ela, ligando do celular do namorado da amiga. Uma hora depois chega em casa com o sorriso mais lindo do mundo.

Passamos os últimos dias em Barcelona trancados e agarrados no quarto, numa mistura inebriante entre dois seres, traços vagos, sons extáticos, toques elétricos, névoas. Só nos separamos, por algumas horas, na manhã de domingo, quando vou me despedir da Marilyn — desde o encontro na sua casa nos afastamos um pouco. Ela tinha as feridas do seu último relacionamento para curar, eu me deslumbrava com Barcelona e passava horas buscando emprego.

Acordo às dez, deixo a Laura dormindo na minha cama de solteiro e encontro a Marylin numa estação de metrô. Caminhamos um tempo juntos pela praia, até que ela sugere sentarmos ao lado de um conjunto de pedrinhas que alguém usou para desenhar corações e a palavra LOVE na areia. Ela me presenteia com uma caixinha de metal cheia de ornamentos, presente de uma amiga do Havaí, com um pouco de maconha orgânica dentro. Abraçamos forte e partimos em direções opostas.

Na manhã seguinte a Laura me ajuda a arrumar a mochila para seguir viagem. Ambos comovidos, trocamos poucas palavras e alguns presentes improvisados. Vai comigo até a estação de ônibus, digo o último “eu te amo” e nos despedimos com um último beijo desesperado.

Enquanto o ônibus se afasta da cidade, penso que ela agora deve se preparar para tentar carona de carro até o Estreito de Gibraltar, onde dizem que é relativamente fácil encontrar um veleiro que dê carona até as Ilhas Canárias. Algumas pessoas já conseguiram pegar carona de veleiro de lá até o Caribe, na América Central.

A estadia em Barcelona me parece agora como uma longa e surreal viagem de haxixe marroquino: visões e aromas maravilhosos, descobertas fascinantes, medos terríveis, prazeres indescritíveis, emoções transbordantes, coração palpitante, redemption songs, vida, muita vida, sol, mar, noites de lua e… amor.

Com nenhuma outra mulher tive uma experiência tão profunda, sincera e maluca como com a Laura. Da mesma forma e força com que ela largou tudo e caiu no mundo, se jogou nos meus braços. Não como uma menina medrosa e carente querendo abrigo, e sim uma mulher livre e selvagem, e também um pouco carente, mas com a coragem para fazer uma das coisas mais difíceis e temidas nessa vida: se entregar. Nossa relação desde o começo foi de uma entrega, simplicidade e honestidade comoventes.

Jogados no mundo, numa busca fervorosa por algo, abertos ao que der e vier, nos encontramos na beira do mar, com os dias contados, sem nada a perder a não ser nossas limitações imaginárias, o céu estrelado atestando a grandeza do universo e a lua amarelada, sua delicadeza. O que nos restava senão viver? Completamente, sem medos, numa entrega como a lenha estralando na fogueira?

Tínhamos apenas quatro dias, não havia tempo a perder, mas qual a diferença entre quatro dias e quarenta anos? As estrelas sussurram: nenhuma. Por que então viver tão mornamente, sem o ardor da fogueira? Se as pessoas se dessem conta disso… talvez então o amor finalmente se tornava a salvação do mundo.

Esses pensamentos são interrompidos por volta da meia noite, quando o ônibus é parado na fronteira francesa. Policiais bem alimentados pela sociedade entram acordando as pessoas e pedindo documentos. Procuro meu passaporte grego no bolso e descubro que a Laura prendeu propositalmente um dos seus grampos de cabelo nele — abro um largo sorriso, é como um beijo no escuro.

Mostro meu passaporte europeu para o guarda e não tenho problemas. Mas um molecão de aparência árabe, risonho, cheio de vida, viajando ao meu lado, treme ao entregar ao policial algo que lembra uma certidão de nascimento amarelada. Mandam descer umas sete pessoas, inclusive ele. Não voltam mais, não tinham “papel” — provavelmente serão presos e deportados. Sinto o estômago embrulhar de revolta e nojo, sem poder fazer nada.

Não passa muito tempo e o ônibus para num posto. Acendo um fino baseado, bolado pela Laura, com uma mistura das maconhas dela e da Marilyn. As baforadas na noite úmida, a leve garoa e o trânsito de caminhões me lembram do Dênis e da viagem pela Transbrasiliana — este posto de gasolina poderia ser em qualquer rincão do Brasil. Ah, a beleza da noite, a dureza e a beleza da estrada, a loucura, a bela e a feia loucura do mundo. A intensidade da vida, cortante como uma faca.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com