Para aqueles que estão fugindo #18: A ilha perdida
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Há anos sonho em passar um tempo sozinho numa ilha deserta, num mergulho mais profundo e solitário na natureza, talvez inspirado em parte por um livro infantojuvenil brasileiro que marcou minha infância: A ilha perdida. Além disso, falta mais de um mês para o trabalho em Sougia começar e preciso economizar cada centavo. E a tal comunidade hippie nudista parece no mínimo interessante. Por isso, decido pegar o ônibus de volta a Paleohora, de onde sai o barco para a ilha de Gavdos.
Na mochila, quilos de comida: lentilha, grão de bico, arroz integral, trigo, amendoim, alho, cebola, azeite, azeitona, mel, doce de gergelim, biscoitos. Compro também um fogareiro portátil com uma carga extra de gás. O barco sai às sete da manhã do pequeno porto de Paleohora, se o tempo permitir — a viagem até Gavdos dura cerca de cinco horas.
No entanto, a mesma cena se repete dia após dia: acordo com o sol nascendo, desarmo a barraca no camping e caminho até o porto. Venta muito no mar, por isso o barco não sai. Volto ao camping. Uma mulher solitária é a única pessoa acampada além de mim — tem uma fisionomia dura, o rosto esculpido pelo sol e vento, veste roupas e penduricalhos rústicos e exóticos. Seria uma pastora de ovelhas, de algum rincão dos Bálcãs? Talvez cigana?
Preparo o almoço na cozinha quando ela entra com um saco de papel cheio de legumes coloridos. Para minha surpresa, começa a falar em bom português, misturando uma ou outra palavra de espanhol, ao descobrir que sou do Brasil. É belga e casada com um brasileiro — ele está em Atenas tentando comprar uma moto. Em minutos de conversa, relata suas aventuras no mundo todo: durante anos viajaram pelo Brasil e América Latina, fazendo e vendendo artesanato, e agora passam parte do ano na Europa, parte na Ásia.
Chegou da Índia, onde passou os últimos seis meses, há poucos dias. Na viagem de avião até Istambul trouxe um pouco de charras, uma espécie de haxixe dos Himalaias, escondido no sapato. Da Turquia veio à Creta por terra e água, e está em Paleohora porque ouviu rumores sobre Gavdos — o fato dessa viajante mais experiente também estar buscando a ilha lendária me empolga ainda mais sobre o que poderei encontrar por lá.
Os dias de espera pelo barco transcorrem vagarosos e contemplativos, entre uma tragada e outra de charras. Os odores perfumados da primavera, quase sexuais, impregnam o ar. Sentado na sombra de oliveiras — em Creta os campings são plantações de oliveiras que abrigam turistas no verão — , observo um universo fervilhante de vida não humana: insetos de todos os tipos, tamanhos e cores zunem alto e dançam entre flores selvagens, o capim dourado balança com a brisa e pássaros cantam nos galhos das árvores — tudo isso banhado pela luminosidade espiritual da Grécia.
A Estela é como uma mensageira vinda da longínqua Índia, cheia de histórias intrigantes, e até o cheiro de incensos e ervas indianas exalam das páginas amareladas dos seus livros de ioga. Ela mesma poderia se passar por indiana, pelos traços do rosto, roupas, jeito de andar, a tinta no lugar do terceiro olho. “As pessoas usam cores tão fortes lá, cores bonitas, vibrantes. Parece que na Europa têm medo disso.”
Numa manhã ensolarada, após cinco dias de espera, o barco finalmente parte para Gavdos. Os únicos passageiros, além da tripulação de dois marinheiros gregos de barba por fazer, são eu e um casal de estudantes universitários. Ele da Turquia, ela francesa, se conheceram durante um semestre de intercâmbio em Thessaloniki, no norte da Grécia. Decidiram ir a Gavdos de última hora, sem saber que cartões de crédito não funcionam na ilha. Como não têm barraca ou dinheiro para alugar um quarto, ofereço a minha barraca para passarem a noite.
Após uma manhã inteira entre o balanço das ondas, cortando o mar azul no pequeno barco, chegamos a um modesto porto na ilha de Gavdos. Um grupo de jovens com mochilas e instrumentos musicais aguarda a embarcação para voltar a Creta, e eu aproveito para perguntar a uma bela menina a localização da praia de Agia Ioannis, onde supostamente vivem os “últimos filhos do arco-íris”, segundo a norueguesa sessentona que conheci em Hania. Ela não chega a responder, pois um homem mais velho, sentado ao lado, toma a palavra e nos oferece carona no seu carro até lá.
É alemão, veste um lenço vermelho no pescoço e esbanja um volumoso bigode branco. Diz conhecer uns artistas famosos de São Paulo e cita nomes que eu nunca ouvi falar. Fala também de um brasileiro que leva ayahuasca a Berlim.
“É a primeira vez de vocês em Gavdos?”
“Sim,” respondemos juntos.
“Não vão querer ir embora,” retruca, num tom profético.
Percorremos alguns quilômetros de asfalto, atravessando uma paisagem pedregosa e acidentada, a vegetação desértica e o mar azul turquesa sempre à vista, até que chegamos ao fim da curta estrada. O alemão nos indica o caminho, agradecemos a carona e seguimos a pé.
Algumas das informações da norueguesa do Couchsurfing estavam no mínimo distorcidas, começo a perceber, durante a caminhada. A distância é bem menor do que ela tinha sugerido, porque após trinta minutos de trilha avistamos Agia Ioannis. E não há comunidade hippie alguma. O alemão disse que apenas três ou quatro pessoas acampam na praia atualmente, e é o que constatamos.
Avistamos um cara de dreads ao longe, na praia, e o turco — que começo a achar um mala, meio arrogante — vai na sua direção pedir informação. Volta reclamando que o homem não foi nada solícito. Eu abordo um barbudo que toma sol pelado, fumando algo, e ele responde seco, aparentemente querendo dizer, “Você não é bem-vindo aqui, turista.”
Decidimos ir até a praia seguinte. Para isso temos que subir uma encosta, escalando um pouco um pouco o sopé de uma montanha, segurando nuns arbustos. Já no alto, num ponto onde não é mais possível retornar, percebo que trilha é perigosíssima e pode ser fatal. Alguns trechos não têm mais que dois palmos de largura e o solo arenoso se esfarela com facilidade — a mochila de quase vinte quilos só deixa a situação mais delicada.
Suo sem parar, mas tento manter o sangue frio. Não há espaço para temores ou pensamentos: a concentração tem que ser total, dela dependem a vida e a morte. De repente o chão se desfaz e quase caio numas rochas trinta metros abaixo — o coração parece que vai saltar da boca.
Chegar à praia é quase como nascer de novo. Ofegante, inspeciono as redondezas: nenhuma pessoa à vista, apenas um poço artesiano, desses de filme, com um balde dependurado no meio da praia. Umas dunas não muito altas se levantam à esquerda e algumas pedras baixas demarcam o final da pequena baía e da praia, à frente — uma floresta subtropical circunda todo o ambiente. Logo depois das pedras, no fim da praia, encontramos o melhor local para armar a barraca, o que terminamos de fazer quando começa a escurecer.
No Brasil o sol geralmente nasce no mar, e essa é a primeira vez na vida que vejo, comovido, o espetáculo da bola de fogo sendo engolida pelo mar prateado. Fazemos uma fogueira e a primeira refeição na ilha, sob a luz das estrelas. Tenho vagas esperanças de fazer como no filme A praia e roubar a bela namorada francesa para mim, o que acaba não acontecendo.
Eles deixam o acampamento de manhã, para pegar o mesmo barco de volta a Creta. Foi bom ter companhia na primeira noite, mas não rolou muita química entre nós e rapidamente me cansei dos seus papos do tipo, “Ai, nossa, acho que ficaria entediado duas semanas sozinho aqui, se tivesse pelo menos uma bola pra brincar…”
Penso em passar umas três semanas em Gavdos, mas não descarto ficar mais, talvez meses. Após a partida do casal, confirmo que o acampamento está armado em um bom local. Para quem vem caminhando da praia, é preciso subir uma pequena elevação rochosa para se chegar à clareira que abriga a barraca. Um galho baixo funciona como espécie de portal da “casa” — é preciso se abaixar um pouco para passar sob ele.
A barraca fica à direita, protegida por curtas e densas árvores. À esquerda um círculo de pedras meio destruído delimita a fogueira. Eu o reconstruo e ainda faço um banquinho de pedra para as refeições. Entre a barraca e o lugar da fogueira há um “corredor” formado por duas pequenas árvores. Ao seu fim, à esquerda, amarro a rede e à direita fica um espaço vazio. Todo esse ambiente é cercado por uma maçaroca de árvores baixas e arbustos, intransponível para uma pessoa. O chão é de areia branquinha e fofa. As ondinhas do mar quebram nas rochas, a uns oito metros do lar.
É possível observar o mar da rede, da “cozinha” e da barraca. De dentro dela, com o zíper aberto, dá para ver o nascer do sol. O mirante do pôr do sol fica a uns duzentos metros, no começo de outra praia, acessível por uma passagem entre a floresta e umas pedras.
Por ali há um laguinho de águas verdes transparentes, conectado ao mar por um fino braço de água. Ao lado, uma linda e improvável casa construída quase toda com pedaços de madeira velha e objetos trazidos pelo mar, rodeada por flores nativas — o que me lembra do filme A lagoa azul. A floresta que se estende ao redor e por boa parte da ilha é formada principalmente de pinheiros e uma espécie de árvore baixa, um pouco retorcida e muito bela.
Vou aprendendo sobre a ilha conversando com alguma pessoa que eventualmente encontro durante as longas caminhadas — às vezes dias transcorrem sem ver ninguém. A figura mais frequente é a de um escocês gordinho e cinquentão, que passa alguns meses na ilha todos os anos. Ele explica que uma chuva de algumas semanas atrás — provavelmente a mesma da minha primeira noite de acampamento em Sougia — destruiu boa parte da vila principal, levando casas inteiras, e também a trilha que eu e o casal usamos. “Agora é suicídio passar por lá.”
Aprendo outro caminho para ir de Lavrakas, a praia onde acampo, a Agia Ioannis, passando pelas pedras que ficam abaixo do barranco da trilha destruída. Às vezes a água chega a bater na cintura e o perigo ali é alguma pedra cair do alto — no ano passado alguém morreu assim.
A ilha é totalmente acidentada e tem umas oito praias, algumas protegidas por cânions profundos e elevações quase intransponíveis, alcançáveis após dias inteiros de caminhada por trilhas mais ou menos perigosas. Isso dá a impressão de Gavdos ser muito maior do que realmente é — tem apenas sete quilômetros de ponta a ponta. Desbravando caminhos, me deparo com dezenas de igrejinhas brancas perdidas no meio do nada — dizem que há mais igrejas que habitantes na ilha — , incontáveis ruínas e três pequenas vilas. A maior tem umas dez casas, alguns restaurantes e pousadas.
A população fixa de toda a ilha é de umas cinquenta pessoas, mas no verão às vezes chega a mais de mil, a grande maioria jovens gregos e estrangeiros praticando “free camping”. Eletricidade existe apenas nas vilas, que a adquiriram recentemente. Onde estou, na praia de Lavrakas, nem pensar, nem qualquer construção humana além do poço.
Passo muito frio durante as noites, mesmo vestindo quase todas as minhas roupas de uma vez só. As manhãs frias começam com uma colher do mel, presente do Manolis, algum biscoito e amendoim. Depois mergulho no mar, apesar do frio cortante, coleto lenha suficiente para todas as refeições do dia e pego cinco litros de água do poço, para beber, escovar os dentes e cozinhar. Às vezes uso o balde para um eventual banho de água doce.
Com o passar dos dias a comida vai escasseando até restar apenas o essencial: arroz, trigo, lentilha, grão de bico, cebola, alho, azeite. De vez em quando sinto uma grande vontade de comer alguma fritura, queijo ou doce. Mas essas vontades também vão se tornando raras e o prato principal, de arroz, lentilha, cebola, alho e azeite, tudo cozido junto na fogueira, fica cada dia mais gostoso. O cheiro mais constante, além do perfume delicioso dos pinheiros, é o da fogueira. Vivo manchado de cinzas e cheirando a madeira queimada. Controlar o fogo e cozinhar com lenha é uma arte que constantemente tento aprimorar.
Nas longas andanças pelas florestas, montes e praias inóspitas encontro vestígios de acampamento, como pedras de fogueira, grelhas, panelas, um balanço dependurado numa grande árvore no meio do mato. Há também cabanas rústicas, construídas ao redor de árvores, quase como “casas na árvore”, onde, fico sabendo, funcionam espaços comunitários no verão. Possuem “sofás” de pedra ou madeira, utensílios mais ou menos bem guardados e organizados, e indícios hippies como pinturas de mandalas, borboletas, cogumelos, símbolos de ioga, móbiles dependurados. A história dos “filhos do arco-íris” começa a fazer sentido.
A ilha é ocupada por humanos desde a civilização minóica, ou seja, há milhares de anos. Dizem que há cem anos tinha mil habitantes e na Idade Média era um importante território com incríveis — para a época e tamanho do lugar — cinco mil habitantes. Caminhando no seu interior, por rincões selvagens, sem nenhum vestígio ou rastro humano recente, me maravilho com centenas de ruínas no meio do mato. Centenas — restos de casas, estruturas de agricultura, túneis, tubulações.
Uma das descobertas mais interessantes são conchas de ostras a quilômetros do mar, a mais de duzentos metros de altitude. Aparentemente petrificadas, devem ter sido transportadas há centenas ou milhares de anos. Sempre as encontro em lugares onde a chuva erodiu a terra — perto delas invariavelmente estão cacos de cerâmica, alguns pintados. É como um quente e brilhante sonho de infância tornado realidade: eu o explorador de uma ilha perdida.
Aos poucos reparo que um dos efeitos de estar completamente só é que sou obrigado a olhar para mim mesmo. Na cidade estamos sempre nos distraindo, e tudo pode ser uma forma de distração: internet, namoradas, festas, amigos, livros, estudo, trabalho, drogas, álcool, a rotina. Mas aqui não tenho muito com o que me distrair. Os únicos objetos supérfluos que trouxe foram dois livros já começados, um do místico indiano Krishnamurti e outro de um mestre zen japonês, Deshimaru. Ironicamente, os dois pregam o acordar, o fim da distração — são páginas recheadas de incentivo ao autoconhecimento.
Observando a mim mesmo percebo, espantado, a minha própria e incessante tagarelice. Já tinha reparado nesse fenômeno, esse falatório eterno, em meditações, mas aqui estou consciente dele quase o tempo todo. No hospital em Londres às vezes encontrava pelos corredores uma funcionária que vivia falando sozinha, e achava a cena cômica. Em Gavdos descubro que eu também falo e sempre falei sozinho!
A única diferença é que eu, e quase todas as pessoas, não transformamos nossas tagarelices em ondas sonoras — pelo menos não em lugares públicos e com tanta frequência. Essa é a única diferença. Mas a loucura é a mesma. E toda essa falação mental acaba sendo, também, uma forma de distração, a mais sutil e poderosa de todas, capaz de drenar quantidades enormes de energia e, como nuvens, tampar a nossa visão para o céu infinito.
O meu estado emocional quando cheguei em Gavdos não era dos melhores — estava arrasado pela realização de que a Laura não viria mesmo à Grécia, me sentindo solitário, inseguro, ansioso. Segundo o Krishnamurti, sempre que sentimos coisas desagradáveis como essas o proceder mais comum é racionalizar e chegar a uma conclusão ou outra, o que nos dá a sensação de ter um “chão”, como se essas falsas certezas nos dessem alguma segurança.
Ou então buscamos distração de várias formas, reprimindo esses sentimentos, que se tornarão as nossas sombras e nos acompanharão aonde quer que formos. Sua sugestão é, ao invés disso, encararmos completamente nossas angústias, sem tentar entendê-las ou analisá-las racionalmente, mas apenas observá-las como se estivéssemos contemplando o mar — sem julgamentos. Esse seria o começo da compreensão, da transformação.
Decido fazer um experimento com o medo. Estou deitado na rede, à noite. Os vultos das árvores, o barulho do vento passando pelas folhas e os sons da floresta são assustadores e aguçam o pior da imaginação — ou seriam as intuições e instintos mais profundos vindo à tona? Fecho os olhos por minutos que parecem horas e tento observar não um medo em relação a algo, mas a natureza do medo em si.
O que surge são lembranças claras, flashes de todos os momentos em que mais senti medo na vida. Quanto mais encaro o medo, mais intensa a sensação fica, beirando o pânico. Chega um momento em que não aguento mais e abro os olhos: explosão de estrelas no céu.
Esmagado pela sublime imensidão, sinto mais uma vez a comovente fragilidade humana. Toda a civilização se levanta, ao longe, como um enorme castelo de areia. Seus altos edifícios e relações sociais seladas em cartório e sorrisos falsos transmitem certa sensação de continuidade, nossas vidas parecem tão sólidas quanto o concreto.
Mas, sozinho no mato, as estrelas e os ventos, arautos do Apocalipse, revelam que a segurança é uma ilusão e a morte uma realidade absoluta para todos, independente dos melhores planos de saúde e dos muros mais altos.
A morte, só ela liberta… Quem fita seus olhos infinitamente profundos, como os da mulher amada, ouve o sussurro primordial: não há para onde ir, nada é tão importante, já temos o essencial. Oro, então, para que mais e mais pessoas saiam das suas casas muradas, levantem as vistas para os céus e ouçam a mensagem. Quem sabe assim relaxaríamos um pouco de nossas condições tão tensas e finalmente desfrutaríamos, verdadeiramente juntos, o que realmente importa!
Com o passar dos dias observo a lua crescente se tornar cheia e minguar novamente. Todas as noites a constelação de Escorpião se desenha no céu que escurece. O vento sempre muda de direção no mesmo horário, no fim da tarde. Há um marchar incessante de formigas, por dezenas de metros, com maravilhosa organização. Cobras, aranhas, cigarras, borboletas, pássaros e bodes são parte do dia a dia. Respiro, do fundo do peito, a maresia, o cheiro da madeira queimada, o perfume dos pinheiros. Desde criança não sentia o corpo tão vivo, cheio de pequenos arranhões e machucados.
Devagarzinho uma paz vai assentando no fundo do peito, aos poucos as ansiedades e angústias vão evaporando. Cada dia me sinto mais leve, tranquilo, feliz, com uma energia e vitalidade tremendas. Medito toda manhã sem marcar o tempo, sentado numa pedra, às vezes também à noite. De vez em quando tento umas posições de ioga. Vibro com a natureza.
Há muitos gatos na ilha, alguns meio selvagens. Às vezes passam perto da barraca e saem em disparada quando percebem a minha presença. Apenas um, ou melhor, uma, não correu ao me notar, certa vez. A primeira vez que a vi, ela apenas me observou, de longe. Foi se aproximando pouco a pouco, dia após dia. Em uma ocasião eu estava na rede e ela chegou perto o suficiente para receber carinho. Outro dia, saltou no meu colo. Desde então repete a visita quase todos os dias. Estou na rede, ela pula em mim e ganha carinho.
É noite e chove. De manhã continua chovendo e me pergunto o que fazer o dia todo na barraca. Lembro que ainda tenho um pouco de maconha cretense, o suficiente para um fino. Pego metade e faço uma “perna de grilo” — pela primeira vez fumo na ilha. Chapado, extremamente sensível, observo a natureza sob uma perspectiva totalmente diferente. A chuva para, o amor do gato irradia no colo, quente como o seu coraçãozinho pulsando. Permaneço sentado um longo tempo, sem me mexer — o mar calmo, de um cinza metálico, suave, aconchegante, lembra os sonhos mais profundos e brilhantes.
Decido partir um pouco antes do previsto, ao final da terceira semana, vinte e um dias depois de ter chegado a Gavdos. Se o tempo mudar e o barco atrasar alguns dias posso ter problemas com a comida, que está acabando. Recentemente chegaram mais pessoas à ilha e vou à praia mais badalada, Agia Ioannis — na metade do caminho de volta — , para quem sabe socializar um pouco.
Lá vive um alemão que chegou em Gavdos um mês antes de mim, o amigo da Maria — é um cara silencioso, tranquilo e bastante simpático. Ao chegar aceno na sua direção e armo a minha barraca na praia, entre umas árvores curtas. Em seguida caminho até a vila. Um casal quarentão puxa papo na porta do único mercadinho e eu respondo um pouco sem jeito, desacostumado a conversar.
O Thanassis é cretense e personifica a figura masculina de Creta: pele bronzeada, espessa barba negra, cabelo comprido, porte de lenhador musculoso. A voz é cavernosa e o aperto de mão firme — os olhos brilhantes e bondosos chegam a contrastar um pouco com a figura máscula. A Beatriz, espanhola, me pergunta do Paulo Coelho. Digo que curto mais o Carlos Castañeda — mesmo sem ter lido Paulo Coelho e conhecendo pouco do Castañeda. O Thanassis fica empolgado, conta que estudou muito o Castañeda.
A caminhada de volta é vibrante, ensolarada, suada. Ao longe, na praia, duas mulheres tomam sol nuas. O mergulho no mar transparente é maravilhoso. É bom demais sentir o verão chegando, depois de semanas passando frio — o corpo cheio de vigor, pleno de vitalidade. Aproveito o bom momento, último dia na ilha, para fumar a metade restante da penúltima perna de grilo. Inesperadamente, pensamentos confusos e angustiados emergem com a fumaça da maconha. Quanto mais tento escapar, mais me envolvem na sua trama.
Pego um livro e sento na areia da praia, para quem sabe me distrair um pouco, mas a Beatriz aparece peladona e não chego começar a leitura. Conversa gesticulando, cheia de gestos, e sugere chegarmos mais perto do marido, para ele não achar estranho. Trocamos várias ideias, os três. Ela fala sem parar e, quando faz uma pausa, eu e o Thanassis aproveitamos para trocar algumas ideias, quando conto dos meus planos de ir à Índia.
O Thanassis arregala os olhos. “Uns anos atrás Preveli, em Creta,” diz, apontando na direção da enorme ilha montanhosa visível a nossa frente, “era como um portal da Índia, você sempre encontrava pessoas indo ou voltando de lá. Agora esse portal é Gavdos.”
Começa então a discorrer sobre sua viagem à Índia e outros lugares da Ásia nos anos oitenta. Está pelado, veste apenas uma camiseta colorida, de cores psicodélicas. O filho de uns dez anos brinca também pelado a alguns metros. Eu sinto que a nudez deles não tem nada de sexual, é simplesmente uma maneira de estar mais à vontade. Eu uso sunga e percebo, de repente, como existe uma carga enorme de medo da nudez nas pessoas, na nossa sociedade — e em mim mesmo. Ficar sem roupa em público parece libertador.
Eles moram na ilha há alguns anos e eu aproveito para fazer algumas perguntas sobre Gavdos. Aparentemente, uma galera legal e descolada acampa aqui no verão, fazem coisas interessantes como batucada africana, ioga, luais, mas alguns têm o nariz meio empinado, se acham especiais, explica o Thanassis, levantando a ponta do nariz com o indicador para ilustrar o que fala. Meu olhar então se torna vago e distante enquanto penso em pessoas amedrontadas, buscando abrigo em tribos, que às vezes acabam se tornando tão fechadas e intolerantes quanto a sociedade que criticam.
Os pensamentos ruins finalmente se vão por completo na companhia dessa família. Exalam algo raro, certa despretensão, abertura — me sinto acolhido. Quase todos nesse mundo vivem na defensiva, fingindo ser quem não são. Espontâneos, leves, os dois me tratam como se fôssemos velhos amigos, compartilham sua intimidade comigo.
Comentam algo sobre a relação entre Espanha e Grécia — ela é espanhola, ele grego — e eu conto que a família do meu pai tem origem grega e a da minha mãe, em parte, espanhola. O Thanassis, com um sorriso de olho, demonstra entender minhas palavras. Com poucas pessoas, poucas vezes, tive uma comunicação pelo olhar como tenho com ele agora. Conversamos sobre um monte de coisas, mas comunicamos coisas indizíveis e profundas através do olhar, e estamos ambos cientes disso.
Meia hora depois, durante uma pausa na conversa, ele diz: “Legal o que você falou sobre Espanha e Grécia.” Ele compreendeu. É o meu último dia em Gavdos. Foram dias intensos, revolucionários. É como se eu nascesse de novo e, neste momento, minha família são eles.
Vão embora um pouco antes do entardecer e eu aproveito para subir, pela última vez, até um mirante, no alto de um morro, com vista para boa parte da ilha. O coração pulsa forte com o trote rápido entre as árvores e, quando chego à solitária igrejinha branca, no topo, o grande sol tinge todo o horizonte de vermelho-sangue: só a floresta abaixo ouve o grito animalesco que sai rasgando das minhas entranhas.
Desço quase correndo e, na praia, caminho na direção do barraco que o Max, o alemão, construiu embaixo de uma árvore. Ele me convidou para o jantar e prometeu, meio solenemente, abrir uma lata de atum. Não como peixe há anos, mas não mencionei ser vegetariano. Ele também quase só come lentilha com arroz e sei que latas de atum só são abertas em ocasiões especiais.
Quando chego está acendendo a fogueira no quintal — a praia — e percebo, admirado, que maneja o fogo com muito mais destreza que eu. Fico surpreso ao descobrir que tem trinta e cinco anos, pois aparenta no máximo uns vinte e cinco. Trabalhava como pedreiro na Alemanha e decidiu tirar as primeiras férias em dez anos depois de terminar um relacionamento.
É um homem de poucas palavras, um pouco tímido, mas quando fala brevemente da ex-namorada, com quem ficou também por dez anos, certa comoção transparece. Em Creta caminhou dezenas de quilômetros pelas encostas selvagens do sul até ouvir falar de Gavdos. Veio para cá pensando em ficar no máximo duas semanas, mas já cogita passar o verão inteiro, se conseguir trabalho com a chegada do turismo.
A ilha de Creta, com suas enormes montanhas, se estende pelo horizonte quase todo: à esquerda ela acaba no mar, à direita perde-se de vista o seu fim, de tão extensa. As luzinhas de algumas vilas já começam a cintilar, mas a maior parte da ilha, feita de rochas e vegetação, vai enegrecendo. O céu, a praia e o ar são banhados por uma densa radiação avermelhada, do sol que já se pôs. As ondinhas vêm encontrar a praia em seguidos chuás.
“Existe cozinha no mundo mais linda que essa?” — pergunta com o olhar comovido e risonho, num gesto com o braço que abarca a vastidão. Despedimos com um abraço e vou caminhando à barraca emocionadíssimo, perdido no céu estrelado — foi o jantar mais lindo da minha vida.
O dia amanhece ensolarado. No porto, como sempre, a população da ilha se reúne para ver quem vai chegar e receber mantimentos e outras encomendas — quase todos que conheci durante as três semanas estão aqui. Pouco antes de embarcar encontro o Thanassis. Ele me olha no fundo do olho, dá um forte aperto de mão, sorri vibrantemente. “Força!” diz com os olhos apertados.
O barco, bem maior que o da vinda, só funciona no verão e deve passar por alguns vilarejos de Creta antes de chegar a Paleohora. Da popa observo a ilha se distanciar com um aperto no peito, sentindo que foram muito mais que três semanas.
Horas depois, na primeira vila, entra uma grande leva de turistas. Parecem uniformizados: chapeuzinhos na cabeça, camisetas com GREECE estampado, cheiro de protetor solar e grandes máquinas fotográficas penduradas no pescoço. Exalam uma energia bizarra, bem diferente do que vinha experimentando em Gavdos, e que acabo identificando como ansiedade. Ansiedade, anos e mais anos de ansiedade acumulada.
Paleohora parece outra cidade, mais viva e movimentada com a proximidade do verão, quente e agradável. Encontro uma nota de vinte euros no chão, com grande felicidade, compro um gyros vegetariano e sigo caminhando na direção do farol, em busca da brisa do mar, da vastidão do céu, do escuro e da solidão da noite.
Uma lua crescente alaranjada de repente começa a nascer no mar, na direção de Gavdos, à minha esquerda. Essa aparição me inspira a sentar na primeira rocha que encontro, mal iluminada pelos postes distantes e esparsos da rua vazia, as ondinhas salgadas quebrando logo abaixo. De alguma taverna sai uma daquelas canções gregas tristes e apaixonadas, de partir o coração.
Embriagado pela noite, lembro do Zorba, talvez o principal responsável pela minha vinda a Creta. É com uma paixão como a dele, que a gente quase explode, arrebenta, transborda, que olho para a lua alaranjada e sinto a vida em toda a sua intensidade rasgante — o olhar perdido numa Gavdos invisível, os pensamentos tentando alcançar a Laura e os irmãos da vida.
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