Para aqueles que estão fugindo #21: O barco
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Sougia é uma pequena vila encravada entre montanhas estrondosas e banhada por um mar de águas azuis e cristalinas. O turismo começou com os hippies nos anos setenta e até hoje certa aura alternativa perdura. O nudismo é comum, principalmente no canto esquerdo da praia, mas não obrigatório. Como em outras praias nudistas da Grécia, as pessoas costumam acampar de graça na natureza, na praia ou numa espécie de bosque. É onde eu e a Jade armamos nossas barracas.
Em uma das barracas deixamos alimentos, roupas e livros, e dormirmos na outra. Sem o teto, o que nos permite ver o céu estrelado todas as noites — de junho a setembro não chove na Grécia. Nossa cama são duas esteiras isolantes, o lençol é uma canga e o travesseiro uma fronha cheia de roupas. Um longo lenço de seda colorido da Jade, dependurado no meio da barraca, dá certo toque de elegância ao lar.
Estendo a rede entre uma árvore frondosa e outra menor, que oferecem alguma sombra às barracas. O espaço é parcialmente cercado por muretas circulares, em ruínas, provavelmente remanescentes de uma igreja bizantina. No campo de visão há apenas outra barraca, a uns cem metros — o restante do visual se resume a elementos da natureza: capim dourado, rochas, as folhinhas prateadas das oliveiras reluzindo ao sol.
Cozinhamos com um fogareiro portátil à gás e a Jade prepara saladas riquíssimas com pepino, cenoura, abacate, cebola, tomate, queijo feta, pão e tahine — com exceção do tahine, são todos produtos frescos e locais. A praia fica a poucos minutos de caminhada por uma trilha poeirenta, rodeada de um capim dourado parecido com trigo, e ruínas.
Na praia há uma torneira que uso para buscar água de beber, escovar os dentes, cozinhar e lavar louça, e o chuveiro onde tomamos banho de água doce. À noite nossa iluminação vem de velas que acomodamos dentro de garrafas plásticas com areia — espalhadas pelo chão, muretas e dependuradas em galhos, irradiam uma luminosidade trêmula, dançante na escuridão noturna, o que dá um ar ainda mais aconchegante ao lar.
O bar onde devo trabalhar fica na beira da praia, a menos de cinco minutos de caminhada do acampamento. O primeiro dia é tranquilo — tenho que atender poucos clientes, ainda é o início da temporada. Procuro mostrar serviço, mas o chefe às vezes me chama a atenção, com a voz mole de calor: “Amigo! Senta um pouco, relaxa, os clientes podem esperar…”
O pagamento vem no final do expediente, o que é ótimo, pois as minhas economias não durariam mais que duas ou três semanas. Até setembro pretendo juntar dinheiro suficiente para ir à Índia e seguir viagem — o valor que recebo por hora é baixo, mas devo trabalhar muitas horas na alta temporada, não tenho gastos com hospedagem e como de graça no trabalho. Em casa sempre cozinhamos com produtos locais, deliciosos e baratíssimos.
À noite a Jade e eu caminhamos até um pequeno porto, na outra extremidade da praia, que abriga uns dez barcos e agora está deserto de gente. Sentamos numa superfície de concreto na beira da água, que continua transparente mesmo na escuridão noturna. As luzinhas amareladas da vila, à distância, são singelas perante a infinitude e o brilho das estrelas.
Um rústico barquinho de pesca nos surpreende ao cruzar o mar, paralelo à praia, tocando uma música altíssima, arcaica, surreal, não sabemos se árabe ou grega. Nossos olhares então se encontram e dizem mais do que palavras poderiam expressar.
“O grande milagre é estar vivo,” algo dentro de nós parece querer dizer. Como duas almas perdidas, amantes, embriagadas de sensações na noite estrelada, nos entregamos ao que há de mais belo na vida: o assombro, o arrebatamento, o mistério compartilhado.
*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.