Para aqueles que estão fugindo #26: Dionísio
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Agosto chega em ondas, de calor e de gente. As pousadas e quartos de aluguel estão cheios. Na parte de cá de Sougia, de free camping, centenas de pessoas acampam no mato e na praia, muitos dormem ao relento, num clima festivo. Trabalho de oito a quinze horas por dia, sem dias de folga, e já não sou o único garçom do bar — um grego e uma bela eslovaca também correm com a bandeja nos horários de pico.
Durante os meses de prática aprendi que os gregos esperam um serviço muito diferente daquele considerado bom no Brasil, ou pelo menos em São Paulo. Lá o que conta é o atendimento ágil, a mesa limpa, o garçom próximo e solicito. Na Grécia é completamente diferente: a cultura é hedonista e a vida deve ser apreciada sem pressa. É muito comum uma xícara de café durar horas, e o garçom que ameaçar retirá-la da mesa ainda com algumas gotas frias corre o risco de cometer um insulto.
Quem toma cerveja ganha azeitonas. Em Creta as pretas são curtidas no sal grosso, as verdes no limão e orégano. Em nosso bar às vezes oferecemos como cortesia dolmades — folhas de parreira recheadas com arroz temperado — preparadas pela mãe do dono. Acompanha um pouco de zazike: coalhada misturada com alho, pepino, sal e azeite. Quem faz refeições maiores às vezes ganha doses de raki bem gelado, porções de melancia fresca ou alguma sobremesa caseira.
O ato de comer e beber é um ritual. O álcool e o café são consumidos a curtos goles, intercalados por longos espaços de tempo, momentos de conversas apaixonadas, descontraídas, ou silêncios compartilhados. Essa maneira de sorver a vida com reverência e celebração é visível nos semblantes austeros, nos gestos lentos e cheios de dignidade. Uma postura quase religiosa, no melhor sentido do termo.
Corro com a bandeja de mesa em mesa, num dia corrido, quando uma visão me faz perder o fôlego e quase o equilíbrio: uma menina linda, cabelos dourados ao vento, seios mediterrâneos de fora, caminha rente à cerca da entrada do bar. Apesar de estarmos de frente com a praia nudista, normalmente ninguém anda pela ruazinha de terra sem roupa.
Após a longa jornada de trabalho desempenho o ritual diário. Percorro cem metros até a beira do mar, tiro a roupa e mergulho completamente nu no líquido frio e salgado — os astros mais luminosos já brilham no céu que começa a escurecer. Após alguns minutos de natação caminho até a ducha, de onde saio sentindo o corpo mais limpo que nunca. Enrolo a toalha na cintura e sigo assim até a barraca.
A Jade foi à Hania receber uma amiga dos Estados Unidos e comprar material para fazer artesanato, por isso dormirei sozinho na barraca pela primeira vez em meses. A noite com os amigos pede calça jeans e camiseta preta. Ajeito com a mão o cabelo, cada vez mais comprido e rebelde — tem um mês que não faço a barba.
A caminho dos bares, a trilha e a noite são preenchidas por nossas gargalhadas. Sinto estar na presença de bons e velhos amigos: a estrada, o riso e o amor à vida nos une — e também a paixão pelas mulheres. O Eduardo se apaixonou por uma cretense e vive cantando ela, fez até uma serenata. Mas não é a única. O Pierre resume bem os impulsos do nosso amigo: “Porra, eu me apaixono quase todos os dias, mas o Eduardo se apaixona por várias todos os dias!”
Estamos empolgados para encontrar umas gregas que o Eduardo conheceu durante a manhã, mas antes vamos tomar vinho num barzinho, onde dois cabeludos e barbudos tocam rebetiko. Um garoto de uns oito anos, fascinado com a música, senta no chão, na frente da dupla, os olhos arregalados. Um dos músicos o repreende com sua voz grossa, mandando ele sentar numa cadeira.
O Eduardo, chocado com a grosseria, incorpora a imagem do homem tropicalista brasileiro sensível e romântico, contra o estereótipo grego de macheza e brutalidade. “Caramba, se fosse eu, adoraria uma criança sentada no chão assim pra me escutar!”
Encontramos as gregas em outro bar, são cinco e estão acabando de jantar. O sangue sobe quando percebo que uma delas é a loira que caminhava com os seios de fora mais cedo. Combinamos de nos encontrar de novo mais tarde, em uma balada de entrada grátis, a céu aberto, perto da praia.
Chegamos antes delas — ansioso, imagino se ela vem ou não. Meia hora depois, toca um reggae quando finalmente atravessa a porta toda linda, de vestidinho branco, descalça. Leve e solta, me fala da literatura sul-americana que aprecia — estou tonto e mal consigo conversar. Faço um convite para irmos à praia ver a lua, mas ela recusa dizendo que tem namorado. Eu respondo que não há problema, pois eu também tenho namorada.
Um pouco depois ela me puxa pelo braço em direção à praia. Estamos sentados na beira do mar conversando, completamente a sós, quando ela se levanta de repente. Com um gesto rápido e aparentemente impensado tira o vestido e fica só de calcinha. Depois, abaixa a calcinha com a ponta dos dedos, que desliza suavemente até o chão. Entra no mar a passos lentos, a luminosidade branca da lua banhando sua pele dourada. Agradeço aos céus, com fervor, por mais esse momento, e em seguida eu também tiro toda a roupa e entro na água fria.
É quase impossível acordar cedo com a ressaca, mas prometi chegar antes das sete no trabalho e saio da barraca com algum esforço. A caminho do costumeiro mergulho matinal avisto um cara dormindo na praia de pedregulhos sob o sol já forte do início da manhã. Que maluco, penso — até que ouço o sotaque carioca me chamando e percebo se tratar do… Eduardo!
Vou caminhando na sua direção com um largo sorriso. Trocamos histórias da noite passada e conto da minha paixão não consumada: apesar dos meus esforços nem mesmo um beijo aconteceu. Ele, por sua vez, finalmente transou, na praia, com a cretense por quem andava apaixonado e pegou no sono ali mesmo, depois de ela ter ido embora. Mas está cansado de ficar com mulheres aleatórias, precisa encontrar um novo grande amor, reclama, de mau humor.
O chefe foi viajar por dois dias e quem cuida do bar é seu pai. Tinha pedido que eu chegasse cedo mas, como o movimento ainda está fraco, ordena que eu volte mais tarde, para não ter que me pagar uma ou duas horas de trabalho. É contraditório e grosseiro nos seus argumentos e, puto, decido não trabalhar hoje. Falo isso para ele e saio andando, sem dar ouvido às suas reclamações. Será um merecido dia de folga depois de algumas semanas trabalhando ininterruptamente todos os dias.
Encontro o Eduardo deitado no mesmo lugar, ainda tentando se levantar. Decidimos tomar café da manhã juntos, num bar, e depois vamos a uma prainha onde só se chega andando com a água na cintura, após uma caverna frequentada por nudistas. De lá nadamos até umas pedras mais ao longe. Uns garotos pulam de uma rocha a uns vinte metros de altura. Ensaiamos saltar do mesmo lugar, mas não criamos coragem.
Ao invés disso pulamos de um lugar bem mais baixo, rindo do nosso próprio medo. Ele dá a ideia e a cada pulo no mar azul gritamos o nome da mulher amada, seguido de um “eu te amo!” — como bons moleques. Esse, aliás, é o traço principal da nossa amizade e todas as grandes amizades: falamos da vida e discorremos sobre assuntos “sérios” e filosóficos, mas jamais nos levamos tão a sério ao ponto de perder a essência de crianças brincalhonas — sem isso tudo estaria perdido.
Preparo lentilha para o almoço enquanto desabafo sobre minhas angústias amorosas. A relação com a Jade é idílica, surreal, intensa. Mas, aos poucos, as brigas e desentendimentos vão se tornando mais frequentes. E tenho me surpreendido com minhas próprias inseguranças e ciúmes — é assustador a intensidade com que esse sentimento às vezes toma conta de mim. Mais do que tudo, me sinto cada vez mais sufocado pelas circunstâncias, preso a um relacionamento enquanto há tantas possibilidades lá fora, mas não quero magoá-la. De qualquer jeito, vamos nos separar no final de agosto, em pouco tempo, e não vejo motivo para terminar antes disso.
O Eduardo discorda dos meus argumentos, dizendo que não ardo mais de paixão por ela — se a amasse de verdade não teria me apaixonado no dia anterior. Continuar com esse relacionamento, mesmo que por poucos dias, seria enganar a ela e a mim mesmo. Sei que está certo, mas não tenho a coragem de tomar uma decisão.
O dia transcorre assim, entre conversas de peito aberto, e à noite recebo uma ligação do chefe — ele pede desculpas pelo jeito do pai e combinamos que amanhã voltarei a trabalhar normalmente.
A Jade chega de ônibus acompanhada pela amiga de infância, não se viam há anos. Está feliz, mas ao primeiro contato percebe que estou diferente e me enche de perguntas, tentando entender o que aconteceu.
Com os dias e com cuidado, tento terminar nossa relação, explicando que estou me sentindo sufocado — intimamente reflito que, por causa de um relacionamento, acabei me fechando para um mundo de possibilidades. Ela tenta me convencer de que temos que desfrutar o pouco tempo que nos resta juntos — ouço desolado, ciente de que não sou senhor dos meus próprios sentimentos.
O Eduardo toca num restaurante algumas vezes por semana, come e bebe de graça e ganha algum dinheiro com isso. São noites especiais: eu, a Jade e às vezes o Pierre e outros amigos nos vestimos bem e sentamos numa mesa sob o céu estrelado para jantar e prestigiar ele e o Juan, que faz coro em uma ou duas canções.
Certa noite um holandês cinquentão pede para participar de uma música e, para minha surpresa, tocam e cantam juntos, em português, algumas canções de Vinícius de Moraes. É emocionante demais ouvir a poesia do grande poeta e profeta de Xangô, da entrega ardente à vida, Vinícius, interpretada pelo Eduardo, uma das poucas pessoas que conheço que poderia chamar de poeta no sentido mais belo e profundo do termo.
O holandês canta muito bem em português, mas só fala inglês. Já o Eduardo não fala inglês ou grego, mas entre uma música e outra tem o costume de se dirigir solenemente ao pequeno público de clientes do restaurante — que não entende nada — em português. Antes de tocar Trem do Pantanal sempre aponta na minha direção e, depois de um breve discurso, diz que é uma homenagem ao seu amigo.
Há anos sinto que o objetivo máximo de estar vivo só pode ser fazer da própria vida uma obra de arte — a escolha entre viver de forma medíocre ou extraordinária completamente em nossas mãos. Mas até agora não tinha encontrado um ser que realmente levasse isso às últimas consequências: a maneira como o Eduardo se joga na vida, como alguém que botou fogo na própria casa e saiu numa peregrinação sem retorno em busca de nada menos que a Verdade, olhando a morte nos olhos e gargalhando, funciona para mim como um espelho, onde vejo refletidas minhas próprias falsidades, falta de entrega, de coragem.
A sensação é de estar diante de uma reencarnação de Dionísio, deus selvagem do vinho, do êxtase religioso, dos rituais enlouquecidos, da poesia sobrenatural, que causa levantes e ciclones por onde passa — através da verdade que irradia simplesmente no seu jeito de ser, ficam expostas à luz as falsidades do mundo.
O Eduardo é um poeta vinte e quatro horas por dia: além dos poemas que recita sempre nos momentos mais oportunos e que, como palavras alquímicas, parecem abrir as portas da percepção, sua mais bela obra talvez seja sua própria vida, com seu jeito errante de ser e a chama que mantém acesa tão forte dentro de si que chega a incendiar alguns dos seres que cruzam seu caminho.
Finalmente, depois de ter juntado um pouco de dinheiro tocando no bar, ele pega o barco para Gavdos. O Juan volta a Barcelona e o Pierre segue para o leste de Creta, de onde deve tentar carona de barco ao Egito. Essa é a dolorosa, arrebatadora, e ao mesmo tempo belíssima realidade das viagens, e da vida: encontrar seres maravilhosos, compartilhar com eles o que há de mais lindo no mundo e depois dar adeus talvez para todo o sempre.
*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.