Para aqueles que estão fugindo #27: Nefeli

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
15 min readOct 2, 2020

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Levo um susto numa tarde quente no trabalho: o Iorgos chega ansioso para me dizer algo. Achava que nunca mais ia vê-lo, e agora reparo que se tornou outra pessoa — está corado, menos magro, com um aspecto muito mais saudável. Conseguiu trabalho como ajudante numa fazenda, onde foi bem alimentado, e diz ter parado de fumar e beber. Está dormindo há alguns dias em Lyssos e veio a Sougia só para me convidar a passar a noite de lua cheia lá, depois disso vai deixar Creta. Terei que chegar atrasado no trabalho num dia bem movimentado, mas aceito o convite na hora.

No fim de tarde do dia seguinte, partimos para Lyssos eu, a Jade e sua amiga dos Estados Unidos. Ela tem o rosto coberto de sardas, olhos verdes, olhar penetrante, cílios compridos, o cabelo avermelhado cacheado e volumoso. Seus longos vestidos são coloridos como ela mesma, parece um ser mágico dos contos de fada da Irlanda — todas as noites, de dentro da barraca, ouvimos a melodia da sua flauta brincando na noite.

Já está completamente escuro quando chegamos a Lyssos. Encontramos o Iorgos na capela ortodoxa rústica onde tem dormido e partimos juntos para a praia. Mesmo de noite, faz calor e entramos todos na água, nus. Transbordando de risos incrédulos, percebemos que o mar está tão “estrelado” quanto o céu: algum tipo de plâncton brilha vivamente quando nos movimentamos nas águas escuras. Intuitivamente, sem dizer nada, nos damos as mãos e formamos uma ciranda aquática, interestelar, nadando juntos em círculo, entre gargalhadas enlouquecidas…

Depois do banho, aquecemos os corpos molhados numa fogueira e, com uma grelha e panela encontradas no mato, preparamos um chá de ervas da montanha colhidas pelo Iorgos. Enquanto ele bate gentilmente nas cordas do bouzouki, a lua cheia nasce com seu rastro reluzente no mar — a noite está clara, como se fosse dia, mas um dia muito mais suave, mágico, onírico, suspenso no tempo. Brincamos como crianças da eternidade até a alta madrugada, quando deitamos sobre esteiras, embaixo de uma árvore, e repousamos até o raiar do dia.

O Iorgos também finalmente deixa Creta, e mais essa despedida me faz sentir que os dias dourados de Grécia estão perto do fim. Os pensamentos se movem cada vez mais na direção da Índia, e o Bonito insiste para eu ir para lá o mais rápido possível, antes que o inverno chegue e seja tarde demais para começarmos nosso projeto nos Himalaias.

Quinze de agosto é o dia mais movimentado do verão. Depois disso o fluxo de turistas diminui, a praia fica mais tranquila, o trabalho também. Num desses dias mais calmos, no final do mês, tenho a sorte de atender duas belas jovens gregas. Pedem um lanche cada e uma salada de atum para uma amiga que está na praia — conversam com uma doçura e cordialidade incomuns. A de cabelo ondulado pergunta de onde sou, intrigada com meu estranho sotaque quando falo grego. Ficam bastante surpresas com a resposta.

O dia seguinte é igualmente tranquilo no trabalho e saio a tempo de pegar uma horinha de sol, que tem se escondido atrás da montanha perto das nove da noite. Caminho um pouco na praia e, antes entrar no mar, avisto as duas gregas do dia anterior e mais uma amiga, completamente nuas, sentadas sobre cangas estendidas nos pedregulhos. O coração dá um salto violento — não devem ter mais de vinte anos e são todas belas, os corpos em flor, mas só tenho olhos para uma delas.

O sol brilha suave, o mar é de um azul turquesa profundo, ela escreve num caderno apoiado no colo, de folhas grandes, amareladas. Parece viajar nas profundezas da própria mente, ao mesmo tempo consciente do ambiente ao redor. Sua postura é ereta e relaxada — os olhos negros, grandes e curiosos estão focados, os cachos balançam com os gestos delicados e precisos do seu corpo.

Tem um ar de realeza, uma jovem rainha altiva e sonhadora. Ao mesmo tempo uma garotinha um pouco triste e solitária — tão frágil e tão forte. É como se nesse instante eu pudesse vislumbrar sua alma em toda profundidade e beleza arrebatadora, e uma certeza visceral então emerge, subitamente, penetrando o âmago da minha existência: sei que vou amá-la até o fim da minha vida.

Outro dia passa e só penso nela. À noite vou sozinho ao bar mais movimentado, com esperança de encontrá-la — a Jade foi jantar com sua amiga. O lugar está lotado e eu sento numa mesa, me perguntando se ela vem, o coração disparado. De repente entra no bar vestida toda de preto, rumo ao balcão, acompanhada pela amiga. Levanto no mesmo instante e ando rápido na sua direção, num impulso.

Dois gregos são mais rápidos e chegam conversando com elas. Afundo no desgosto e peço uma cerveja, encostado no balcão, suando frio, torcendo para os dois darem uma trégua. Um deles se afasta e me aproximo, puxando conversa. Ela parece indiferente e me responde com monossílabas — a cordialidade do outro dia desapareceu.

É lógico, sou apenas um garçom e ela uma moça educada, é claro que não quer nada comigo. O papo vai ficando impossível quando chega a terceira amiga, a da salada de atum, toda expansiva, sorrisos e braços abertos. Sugere, berrando, irmos todos tomar umas cervejas na praia. Eu apoio entusiasticamente a ideia e seguimos para lá, com umas latinhas compradas num quiosque.

Chegamos à parte mais turística da praia, com guarda-sóis de palha, cadeiras de madeira e, durante o dia, sem nudismo. Sento ao lado dela e conversamos paralelamente aos outros. Aos poucos as pessoas vão indo embora, uma a uma — estamos tão entretidos na conversa que quando percebemos não há mais ninguém ao redor.

É a minha chance de agir, mas ela está sentada numa cadeira de praia e eu no chão. O coração dá saltos enquanto penso em como beijá-la. Ela começa a enrolar um cigarro de tabaco e percebe que perdeu seu isqueiro lilás: é a oportunidade. Aproximo fingindo procurar o isqueiro e roubo um beijo.

Caminhamos até um lugar mais escuro da praia e rolamos nas pedrinhas por horas, a lua crescente amarelada descendo na direção do mar. Minha intuição estava certa: jamais experimentei beijos, abraços, ou mesmo um toque ou cheiro assim.

Olhamos nos olhos um do outro sem acreditar que finalmente nos encontramos ou reencontramos, finalmente. Entre os amassos ardentes conversamos longamente, trocando carinhos como amantes apaixonados de longa data. Fico sabendo que parte em poucas horas para Atenas, com as amigas, anoto mentalmente seu telefone e faço um convite impensado: viajarmos juntos por uma semana, depois que eu partir de Sougia, daqui uma semana.

Pela sua reação percebo que encara tudo isso como um sonho, uma maluquice. É uma estudante de dezenove anos numa viagem de verão com as amigas e de repente um forasteiro barbudo, vindo das Américas, se apaixona por ela e ainda a convida para viajarem juntos! Não chega a responder e nos despedimos ao raiar do dia, mordendo os lábios. Mergulho no mar como um ritual de agradecimento ao universo e caminho para casa sob um céu ainda estrelado, em êxtase.

De manhã, acordo mais cedo que a Jade e subo uma montanha próxima com o falso pretexto de colher um pouco de orégano selvagem — se ela perceber os arranhões nas minhas costas e braços, posso colocar a culpa nos galhos e arbustos da escalada.

A Jade decide deixar Creta alguns dias antes de mim, com sua amiga. Na manhã da despedida acordamos com um lindo nascer do sol, desfazemos nosso lar em silêncio e nos separamos com um beijo na boca e um longo abraço apertado, na praia vazia — no coração, uma doce melancolia e a sensação muda de que nada jamais poderá expressar tudo que vivemos juntos.

Dias depois eu também deixo Creta. O barco noturno na volta a Atenas está lotado e o clima é festivo, bem diferente da viagem fria e solitária a Creta cinco meses atrás. Estendo o saco de dormir no teto do navio, sob as estrelas, entre pessoas que bebem cerveja conversando alto. Nesse meio encontro, surpreso, a amiga da salada de atum — conta que ficou uns dias a mais em Creta com a família depois de as amigas terem partido para Atenas.

“A Nefeli disse que vai me esperar no porto,” digo.

“O quê?” — questiona, incrédula. “Chegamos às cinco. Só se ela estiver voltando de uma balada…”

Eu mesmo não acredito quando desembarcamos instantes antes do sol nascer e a vejo sorrindo docemente na minha direção, no meio de uma pequena multidão — a mais deliciosa demonstração de amor. Mora no norte de Atenas com a família, a cerca de uma hora de carro do porto, e fez seu amigo acordar às quatro só para trazê-la. Ele nos leva ao centro, onde compramos um expresso gelado cada um, depois vai embora, nos deixando a sós.

Bebemos o café sentados num banco de cimento, perto de uns moradores de rua usuários de heroína, quando um cão grande e peludo se aproxima: sou apresentado ao Loukanikos, um vira-latas lendário do centro de Atenas, famoso por suas participações em protestos.

Não são nem sete horas e já faz calor. Anseio por um banho, mas não há como: vou ficar na casa de uma couchsurfer da Finlândia e nos encontraremos só à noite, quando ela sair do trabalho. Deixamos então minha mochila num armário com cadeado na estação de Monastiraki e saímos caminhando pelas ruas de Atenas, ela meio sem saber aonde ir.

Após algumas horas rodando finalmente decide que vamos tomar cerveja numa praça anarquista. Conta que dezembro passado um policial matou com um tiro na cabeça um jovem de quinze anos no bairro boêmio, esquerdista e um pouco decadente de Exarhia. Atenas ficou em chamas com as revoltas que se seguiram por semanas, e desde então o anarquismo continua a se disseminar entre jovens de toda a Grécia — ela mesma lê Errico Malatesta e participa de um coletivo anarquista. Depois dos protestos a comunidade ocupou um estacionamento, quebrou o cimento, plantou árvores e vive defendendo a agora praça contra ataques da polícia.

Compramos dois latões de cerveja num mercadinho — ela se dirige ao dono, um tiozinho curdo da Turquia, pelo nome — e sentamos num banco improvisado na praça empoeirada. Logo somos rodeados por moradores de rua e imigrantes clandestinos. Ela volta ao mercadinho e compra algumas latas para eles também. Passamos a tarde conversando, ouvindo suas histórias.

Ao invés de pontos turísticos, ela me leva para conhecer uma praça ocupada, na companhia de imigrantes e moradores de rua: fico cada vez mais apaixonado. Seguimos caminhando pelas ruas da cidade e finalmente chegamos, pouco antes do entardecer, às colinas que beiram a Acrópole. Sentamos num banco de mármore branco, no meio de um bosque de oliveiras. É uma paisagem surpreendentemente bucólica para Atenas, a sensação é de termos sido transportados, por instantes, ao passado clássico e idílico da Ágora ateniense.

Nos enlaçamos em beijos ardentes, depois vem um silêncio. Ela parece mergulhada em pensamentos, então vira o rosto para mim e diz com os olhos mais tristes e amorosos: “Eu gosto muito de você.” Eu imediatamente a envolvo com um abraço apertado e descanso meu rosto nos seus cachos negros — uma paz quente e perfumada permeia tudo e lembra o fim do mundo.

No começo da noite nos despedimos. Encontro a finlandesa na saída da loja de roupas onde trabalha e vamos a pé até sua casa, conversando. Quando chegamos, deito num colchonete ao lado da cama e apago imediatamente, exausto.

De manhã vou a um brechó e me desfaço de boa parte das minhas roupas e livros. Depois vou à embaixada da Índia, onde dou entrada no visto — são quatro dias para ficar pronto. Por mensagens de texto a Nefeli confirma nossa viagem para o dia seguinte: vamos a Agistri, uma ilha a uma hora de barco de Atenas, também conhecida pelo nudismo e free camping.

À noite saio com a finlandesa e alguns dos seus amigos do Couchsurfing. Fico rapidamente entediado com a conversa típica de couchsurfers citadinos na mesa do bar, mas fascinadíssimo com o espetáculo ao redor. As ruelas mediterrâneas de Exarhia têm paredes com a pintura descascando e uma profusão jorrante e viva de grafites. Centenas de jovens fluem por elas como rios em corredeira, bebendo cervejas baratas, conversando e rindo alto. O bairro vibra em vida, o sangue pulsa com a sensualidade da noite de fim de verão.

Sei que a Nefeli está em algum lugar por aqui, com amigos, e de repente a vejo descendo a rua — veste roupas velhas e rasgadas num estilo meio underground bastante sexy, caminhando a passos elegantes. Deixo o pessoal na mesa sem falar nada, como um cachorro que sai em disparada atrás de um barulho não notado por mais ninguém.

Ela me percebe quando já estou próximo — nossos corpos trombam ao encontro. Interrompemos os beijos obscenos em meio à multidão só para olhar nos olhos um do outro, certificando-nos de que tudo é mesmo real, juntos novamente. Confirmamos que amanhã pegaremos o barco para Agistri, o ponto de encontro é a estação de Monastiraki. Volto à mesa e ela aos seus amigos, em direções opostas, mas até onde é possível nossos dedos se mantêm entrelaçados.

Saio de manhã cedo da casa da finlandesa, o que me deixa algumas horas de espera até a Nefeli chegar, e aproveito para subir, com a pesada mochila nas costas, por um calçadão que leva à Acrópole. Dois homens conversam atrás de uma mesinha com artesanatos, protegidos do sol forte pela sombra de uma árvore, um deles com um violão na mão. Nossos olhares se cruzam e ele faz um gesto para eu me aproximar.

É italiano, dono dos artesanatos e do violão, tem uns quarenta anos. Seu amigo tem aproximadamente a mesma idade e é de um país do leste africano que nunca ouvi falar. Ao saber que sou brasileiro, o italiano conta que seu avô veio do Brasil, numa migração incomum, inversa ao fluxo da época: nasceu em Piracicaba, no estado de São Paulo e, por algum motivo, se mudou para a Itália.

O africano acende um baseado e, arriscando algumas palavras de português, conta que foi marinheiro e já aportou em Salvador. Tem a cara de quem passou por muita coisa na vida: é cego do olho esquerdo e uma enorme cicatriz atravessa o seu rosto. Conversamos os três em inglês, usando um pouco de espanhol, português e grego. O italiano então passa o violão ao seu amigo e a primeira música que ele manda é What a Wonderful World — me arrepio todo. Depois começa a tocar músicas de autoria própria.

Caralho! Jamais esperava algo assim, jamais. As letras num inglês rústico, a sabedoria, a violência, a profundidade, a beleza das suas palavras! Nunca presenciei nada comparável ao vivo, é inacreditável. Canta com a alma, a voz de trovão chamando a atenção dos transeuntes, que olham assustados para o deus negro enlouquecido destilando sua poesia suave e selvagem em plena luz do dia. A primeira música fala sobre o que você faz quando não tem o que comer, onde dormir…

São canções melancólicas e cheias de vida — diz que começou a aprender a tocar violão recentemente para passar a mensagem pras pessoas. Ele então acende outro baseado e eu pergunto se tem um pouco para vender, explicando que estou indo acampar numa ilha com uma garota por quem estou apaixonado. Responde que não vende, mas generosamente oferece, de presente, um tanto suficiente para fumarmos nos três ou quatro dias de viagem.

Na volta para a estação de metrô compro um cacho de uvas verdes e doces, de um vendedor ambulante. Elas vêm num saquinho de papel e vou degustando uma a uma, sentado num degrau, de frente com a praça viva e colorida, quando a Nefeli aparece de shortinho jeans desfiado, blusinha branca, os cachos negros balançando com seu caminhar esbelto e felino.

A viagem de barco transcorre sem muitas palavras, com longos abraços, toques e olhares apaixonados. O sol já se afundou por completo no mar quando atracamos na pequena ilha — nuvens cor-de-rosa deslizam tão lentamente no céu que parecem estáticas.

Durante a caminhada pela ruela de casinhas brancas e azuis, rumo ao local de camping, paramos numa lanchonete e compramos uma marmita para a janta: horiatiki, a típica salada grega, e retsina, uma espécie de vinho branco barato. A ruela dá lugar a uma trilha entre uma floresta de pinheiros, com o mar azul à esquerda. No final há uma descida íngreme, quase vertical, e lá embaixo uma prainha de pedregulhos, onde algumas dezenas de jovens, a maioria nus, acampa.

Mergulhamos no mar antes de escurecer completamente. A praia já está com muitas barracas, por isso armamos a nossa acima do barranco, numa clareira da mata, com vista para o mar. Decidimos fumar antes da janta. A maconha do marinheiro africano é forte e ela tem uma crise de riso meio assustadora, logo depois das primeiras tragadas.

Algumas substâncias, como a maconha, especialmente em lugares assim, talvez tenham o poder de revelar o que alguém chamou de “ser arquetípico” de cada pessoa: agora a vejo, essa garotinha da cidade tão delicada, como uma poderosa bruxa. Sinto todo o seu poder feminino brotando das profundezas obscuras da vida, da natureza — é uma mulher muito forte, a floresta é sua casa.

Quando o efeito da maconha diminui fazemos a refeição, iluminada por uma vela, apoiados num grande carretel de madeira abandonado, que usamos de mesinha. A salada típica da Grécia consiste em pedaços de tomate, pepino, cebola roxa, azeitona preta, queijo feta, orégano, um pouco de vinagre e muito do azeite mais delicioso do mundo. Servida em abundância com pão caseiro, sustenta muito bem. Uma lua crescente aparece entre os galhos da árvore que balançam com a leve brisa. Nós entramos na barraca e tiramos a roupa um do outro. É a noite de amor mais selvagem da minha vida, com a criatura mais doce que já conheci.

Os dias transcorrem assim, nas maravilhas do amor, entre águas azuis transparentes, o perfume dos pinheiros, coloridos crepúsculos. Os momentos mais marcantes, porém, são quando acordamos.

Abro os olhos e a observo dormindo, linda. Ela então também acorda. Parece uma criança abandonada no mundo, seus olhos dando voltas na barraca até encontrarem os meus: não chega a sorrir, mas o seu semblante subitamente relaxa e transmite uma paz profunda. Com ar protetor, a envolvo com o meu corpo todo e a encho de beijos. Pela primeira vez sinto que encontrei uma mulher com quem poderia passar o resto da vida.

Chegamos de volta ao porto de Piraeus, em Atenas, pouco antes do almoço, e sugiro comermos numa típica taverna decadente. Ela conversa toda sorridente e gentil com o velho que serve a comida, e mais uma vez admiro o modo como interage com as pessoas: amável, sem ser falsa. Em tavernas tradicionais os pratos ficam à mostra, atrás de uma pequena vitrine. Apontamos com o dedo nossa escolha e vamos sentar no fundo.

Um velho todo enrugado, de bigode branco e boina, certamente um lobo do mar, repara na conversa e pergunta de onde somos. Tem um inglês com sotaque carregado, a voz rouca. Ao saber que venho do Brasil fala um pouco em português, sobre as brasileiras, cheio de gracejos e piscadelas — já conheceu algumas brasileiras em suas passagens de navio pelo Brasil.

Em seguida a Nefeli vai para casa e eu ao apartamento de uma estudante cretense, do Couchsurfing, que aceitou me hospedar. Passamos o fim de tarde conversando no sofá e não demoro muito para dormir. De manhã nos despedimos e eu vou à estação comprar a passagem de trem para Thessaloniki. De lá irei de ônibus a Istambul, de onde sai o voo de duzentos euros a Délhi — o Bonito deve me buscar no aeroporto.

Almoço com o grego e a eslovaca com quem trabalhei em Sougia e peço para deixar a mochila na casa dele — a grega do Couchsurfing foi viajar, estou sem teto e planejo passar a última noite com a Nefeli sem dormir.

No fim do dia a Nefeli me leva a um alto e belíssimo mirante a poucos metros da Acrópole, onde os atenienses se reúnem, à noite, para observar a cidade e o Parthenon iluminados — as luzes de Atenas se estendem até as negras montanhas ao fundo. Bebemos vinho caseiro numa garrafinha de plástico e seguramos as mãos um do outro com força, os corações apertados. Não muito longe, alguém toca um violão apaixonado.

Faço então outro convite surpresa: passar a noite num hotel. Tenho o dinheiro contado e sei que cada centavo fará diferença nos próximos meses na Índia, mas não importa. Pegamos um quarto por sessenta euros, num hotelzinho simples, mas com vista para a Acrópole. No auge do amor lágrimas escorrem dos olhos, suas unhas cravadas nas minhas costas — sagapo, sagapo, te amo, te amo.

Passamos a noite em claro e deixamos o hotel às seis da manhã, rumo ao metrô. Dentro do trem ela me explica rapidamente como chegar à casa do meu amigo. Quando as portas automáticas abrem não consigo articular nenhuma frase ou palavra de despedida — damos um último beijo desesperado e olho pra trás uma única vez.

Leva um tempo para acordar o meu amigo e recuperar a mochila, e ele faz graça das marcas no meu pescoço. Na estação principal, de onde parte o trem para o norte da Grécia, procuro a passagem no bolso e encontro, surpreso, um papelzinho inesperado, cuidadosamente dobrado. Sem eu perceber, a Nefeli colocou no meu bolso um poema escrito por ela para mim — parte em inglês, parte em grego, num pedaço de folha de caderno, amarelada.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com