Para aqueles que estão fugindo #28: A cidade mais antiga do universo
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Dias antes de chegar a Varanasi uma alemã que tinha passado por lá me descreveu a cidade como intensa. Ela sentia febre no meio da madrugada, como todos que visitam a cidade mais sagrada da Índia. Saiu do quarto às quatro da manhã e caminhou até a beira do Ganges. Com as mãos recolheu um pouco de água do rio e molhou o rosto. Olhou ao redor. Um grupo de pessoas descia por uma ruela entoando um mantra hipnótico, carregando um defunto para ser queimado, dois cachorros copulavam e uma vaca dava à luz um bezerro — todos os estágios da vida num momento só.
Eu também tenho febre e caminho por uma viela — tão estreita que não cabe um rickshaw — na direção da pousada. De acordo com a mitologia hindu, essa cidade é a mais antiga do mundo. Brahma é o criador do universo, Vishnu seu mantedor e Shiva o destruidor. Varanasi é uma cidade do deus Shiva, e ao fim de cada ciclo universal ele preservaria somente ela da destruição do cosmos. As ruelas estreitas e miríades de templos de ar ancestral atestam sua antiguidade de milhares de anos, se não de eras.
Tenho leves delírios de febre no quarto e envio uma mensagem desesperada de saudades à Nefeli — o mês e meio de distância parece uma eternidade, do tipo ruim. Viajar pela Índia nem sempre é fácil, graças ao choque cultural, à dificuldade com a língua, ao clima extremo, aos longos deslocamentos em assentos duros dos trens e ônibus superlotados. Depois de semanas nos Himalaias, o cansaço e solidão chegam ao ápice em Varanasi. Saio do quarto um pouco antes do entardecer para respirar um pouco de ar.
A cidade margeia o Ganges por quilômetros, com escadarias, chamadas ghats, descendo até o rio. Sadhus, os ascetas andarilhos cobertos de panos laranja, desempenham rituais, fumam charras — espécie de haxixe indiano — e pedem esmolas sentados no chão. Pessoas mergulham e lavam roupas no rio poluidíssimo, um homem banha seus búfalos.
Varanasi é um centro de peregrinação para milhões de pessoas de todas as regiões da Índia e turistas do mundo todo. Morrer e ser cremado aqui é garantia da mais alta realização espiritual no hinduísmo, então a beira do rio é incensada pelo odor de churrasco de cadáveres sendo queimados em piras erguidas com montes de lenha.
Avisto uma família em trajes típicos, as mulheres vestidas com sáris coloridos, atravessando o rio num barco rústico, de madeira — uma cena bíblica. Nesse momento um véu parece cair, revelando a Índia em toda a sua profusão de vida milenar, insana, caleidoscópica: é como se até agora a minha mente tivesse filtrado boa parte das informações vindas desse mundo tão diferente, numa tentativa inconsciente de preservar a sanidade. Mas agora tudo vem à tona de uma só vez, num arrebatamento espiritual de quem é esmagado por uma avalanche de realidade.
Atordoado, sento na escadaria e uma menina de uns dez anos, raquítica, olhar profundo e intenso como o de todas as crianças indianas, se aproxima e fala comigo em inglês, após arriscar frases em espanhol e italiano, tentando adivinhar minha nacionalidade. É como um soco no estômago ver essa adulta precoce e subnutrida, extremamente inteligente, tentando vender bugigangas para sobreviver enquanto eu faço turismo. Depois de conversar um pouco com ela levanto e, ao invés de caminhar à direita, na direção dos principais pontos turísticos, sigo a margem do rio à esquerda.
O cheiro de corpos queimando mistura-se ao de incensos adocicados e de fezes e urina, das escadarias cobertas de excremento humano. Como de costume, sou abordado por vendedores suspeitos a cada porção de metros — oferecem maconha, charras, ópio e uma infinidade de outras coisas. Quanto mais caminho, no entanto, as ofertas diminuem e as pessoas parecem não mais me enxergar como uma nota de dólar.
É profundamente reconfortante quando sou rodeado por crianças de olhos grandes e profundos e, surpreendentemente, elas me pedem abraços ou fotos — imaginando que tenho uma câmera — e nada mais. Um rapaz da minha idade puxa papo e não tenta me vender nada. Ao invés disso, me apresenta a toda a sua família. Diz que amanhã cedo haverá um ritual de celebração em homenagem ao deus Sol e insiste para encontrá-los no mesmo local antes do alvorecer.
Após uma noite suada, de sono perturbado, saio pela porta da velha pousada no fim da madrugada e me deparo com mulheres descendo em fila na direção do rio, pela escuridão úmida da ruela. Cantam um mantra baixo, em transe, e carregam na cabeça cestos de palha cheios de frutas coloridas.
A visão na beira do rio é ainda mais surpreendente: minutos antes do sol nascer, milhares de pessoas ocupam as escadarias, como uma multidão num estádio na final de um campeonato de futebol. Uma banda rústica toca tambores e cornetas. Mulheres vestidas com sáris de seda, os rostos pintados, estão dentro do rio com a água até a cintura, mãos em prece segurando incensos que queimam lentamente — na direção do nascente. Por centenas de metros, até onde a visão vai, as escadarias estão cheias de gente, velas e uma abundância de frutas e outras oferendas.
A Índia é como se o candomblé, essa religião ancestral vinda da África, fosse o culto principal do Brasil. A cada esquina incensos, flores, frutas e outros objetos — que me lembram as macumbas — são oferecidos a deuses em formas humanas e não humanas. Pequenas e grandes estátuas dos deuses do hinduísmo lembram as imagens dos orixás. O próprio rio Ganges e outros elementos da natureza, como o Sol, são considerados divindades — quão mais interessante que endeusar apenas uma figura masculina e paternal, penso.
Encontro a família antes do nascer do sol, no mesmo local da noite anterior. Eles me falam da sua vida, da profissão de cada um, enquanto observamos a outra margem, em ansiosa espera. Do outro lado não há cidade, apenas um longo banco de areia e uma floresta ao fundo. Os tons de vermelho e arroxeado concentrados num ponto no horizonte anunciam a iminente ascensão do astro-rei. Quando a bola de fogo se eleva a multidão de milhares de fiéis grita e comemora em devoção ardente, alucinada, as trombetas e tambores ressoando com força.
Na última noite em Varanasi, na lanchonete da pousada, alguém aperta o meu braço. Ao virar o rosto me deparo com um rapaz de cachos negros e olhos arregalados, que me pergunta em espanhol: “Você é latino, não é?” Parece extremamente feliz com a resposta positiva, ao perceber que consigo me comunicar com ele.
Na sua primeira viagem fora da Espanha, deixou sua cidadezinha no interior da Catalunha para conhecer a Índia, sem falar nada de inglês, e agora viaja com um casal de espanhóis que encontrou nos primeiros dias de viagem. Quando descubro que hoje é o seu aniversário só tenho tempo de lhe dar um abraço, pois ele sai apressado para pegar um trem para outra cidade.
No dia seguinte eu também pego um trem, para Delhi. A última vez que eu e o Bonito nos vimos foi nos Himalaias, no mês passado. Tínhamos viajado de ônibus de Delhi a Dharamsala, cidade de exílio do Dalai Lama. Lá, após desistirmos de abrir o bar, bebemos vinho local em cachoeiras, vivemos breves romances com mulheres e iniciamos um retiro de meditação e silêncio com duração de dez dias, da linha vipassana. Ele abandonou o retiro no segundo dia e não nos vemos desde então, mas deve me esperar na estação para irmos juntos a um grande festival de camelos que acontece anualmente na cidade de Pushkar, no estado do Rajastão.
*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.