Para aqueles que estão fugindo #29: Motocicleta, chai e escorpiões

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
11 min readOct 30, 2020

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Após uma noite inteira no trem, o Bonito me espera de braços abertos na estação de Delhi. Sua mãe nos recepciona em casa conversando alegremente em seu forte sotaque indiano, enquanto serve uma deliciosa e extremamente apimentada comida — o pai, de barba grisalha e turbante da religião sikh, é mais silencioso e se limita a concordar, num gesto afirmativo com a cabeça, com as afirmações da esposa. No dia seguinte três amigos do Bonito nos buscam de carro e partimos juntos rumo a Pushkar, para participar de um grande encontro do Couchsurfing que ocorrerá em meio ao tradicional festival de camelos.

O motorista, um amigo do Bonito e comissário de bordo de voos internacionais, freia bruscamente o carro numa curva a uma hora do nosso destino — quase atropelamos uma caravana de camelos. Observo a silhueta dos camelos contra a luz dourada do entardecer enquanto ouvimos pelos alto falantes do carro a voz arrebatadora de Nusrat Fateh Ali Khan, um cantor sufi conhecido no Paquistão como “a voz dos céus”.

Pushkar é uma cidade sagrada e todo ano, seguindo o calendário lunar, nômades do estado do Rajastão se reúnem num evento religioso que também funciona como feira para a troca e venda de milhares de camelos. À noite, na pousada, os indianos e estrangeiros do Couchsurfing reunidos, fazemos uma fogueira e me surpreendo com um holandês de dezoito anos, estudante de música, cantando Chega de Saudade num português impecável.

A caminhada matinal revela uma bela cidade de tamanho médio, cheia de templos. O lago central, uma das principais atrações turísticas, está seco, o que dizem ser incomum. A população do Rajastão, que faz fronteira com o Paquistão, é uma das mais coloridas da Índia. As mulheres, além das tatuagens e piercings tribais espalhados pelo corpo, se cobrem com coloridos sáris, braceletes e colares.

Uma barraquinha no meio da feira tem uma pequena televisão ligada a um aparelho de DVD. Cerca de quinze homens, alguns com longos bigodes brancos, túnicas e enormes turbantes rosa-choque ou verde-limão, observam de olhos arregalados as cenas de um filme de Bollywood — como se estivessem assistindo televisão pela primeira vez na vida.

A multidão de peregrinos e mercadores é reforçada por um bom número de turistas ocidentais, famílias obesas com enormes máquinas fotográficas, mochileiros magrelos e maltrapilhos. Após o final de semana em Pushkar o Bonito tem que voltar a Delhi e eu e o holandês cantor acabamos alugando um quarto juntos, em outra pousada.

Os gastos para viajar pela Índia são baixíssimos: é possível almoçar à vontade por vinte e cinco rúpias, ou um real, ou trinta centavos de euro. E nosso quarto custa apenas cem rúpias, mas mesmo assim decidimos dividir uma cama de casal para economizar dinheiro, pensando no longo prazo.

A pousada, um pouco afastada do centro, pertence a um indiano casado com uma italiana. Entre os hóspedes estão vários cantores e tocadores, e a música rola solta até a alta madrugada, quando todos se protegem do frio ao redor da fogueira, com cobertores e chá de gengibre e mel.

Certo dia chega inesperadamente na pousada o Suresh, um cara da minha idade de Mumbai, de longos dreads, meio andarilho, que eu tinha conhecido em Dharamsala, nos Himalaias. Em uma das noites de música ele batuca numa percussão ao redor da fogueira enquanto me conta das suas viagens por toda a Índia, às vezes fazendo algum dinheiro traficando charras. Também fala sobre como é barato alugar uma moto em Pushkar, o que me dá uma ideia. Quando chego ao quarto, minutos depois, acordo o holandês e o convido para atravessarmos o Rajastão de moto. Ele resmunga, respondendo que sim, e volta a dormir.

De manhã encontramos uma pequena moto para alugar por cento e cinquenta rúpias por dia e decidimos partir no dia seguinte. Fico feliz de ter encontrado um novo parceiro de aventura. O Tom é baixo, forte, de típicos traços nórdicos: rosto retangular e maciço, sardas, olhos claros, os cabelos curtos quase brancos de tão loiros. Como boa parte dos holandeses que já conheci, tem um quê de loucura na sua personalidade, além de certo espírito de descontração e coragem juvenis.

Começamos nossa aventura de madrugada, antes do sol nascer, o Tom pilotando a moto, eu na garupa, enquanto cantamos em alto e bom som What a Wonderful World — em parte para nos esquentar do frio, e também como um ritual de comemoração pelo maravilhoso início de viagem, com vento na cara e a maravilhosa luminosidade do amanhecer tingindo as colinas áridas e avermelhadas ao redor.

Esquenta muito no decorrer do dia e nos protegemos do sol amarrando panos brancos na cabeça, numa imitação barata de xeiques árabes. Às vezes paramos em barraquinhas de beira de estrada para tomar chai, a bebida típica feita de chá preto, leite, açúcar, gengibre macetado e especiarias em pó. Chegamos na pequena cidade de Bundi no final do dia.

Pela manhã a cidadezinha se revela uma joia rara: quase sem turistas, com um comércio vivo e riquíssimo, belíssimos palacetes, pequenos fortes e piscinas ornamentais centenárias. Na Índia é comum as pessoas andarem em até cinco pessoas numa única moto. Por isso, durante a caminhada no centro, aceitamos uma carona inesperada quando um senhor de cabelos brancos e ar respeitável insiste, fazendo mímica, para subirmos na sua garupa. Ele nos deixa, sem dizer nada, num lugar que parece um ponto turístico, mas logo descobrimos que está fechado.

Partimos de Bundi dois dias depois, cantarolando como dois moleques jubilantes ao raiar do dia. Mais tarde paramos para comer algo numa cidadezinha, na feira da rua principal. Um grupo de uns cinco meninos, vestidos com uniformes azuis, nos convence a visitar o pátio do seu colégio.

Assim que chegamos dezenas de outros moleques nos cercam, formando um grande círculo ao nosso redor, todos berrando, os olhos arregalados — provavelmente histéricos por verem estrangeiros pela primeira vez na vida. Um homem de bigode fura o cerco girando um bastão ameaçador no ar, depois nos conduz ao diretor. Ele nos dá uma bronca por termos causado a confusão e diz, com seu forte sotaque indiano, que deveríamos visitar o colégio da outra esquina, porque lá os alunos falam inglês.

Templos possivelmente milenares parecem abandonados nos arredores da cidade, na beira de grandes plantações de arroz. A estrada é boa mas frequentemente atravessada por animais, por isso não viajamos a mais de setenta por hora — de repente um pastor com enorme turbante vermelho cruza a nossa frente seguido pelo seu extenso rebanho de ovelhas. A paisagem é toda inóspita, com ares de deserto, e as paradas para chai invariavelmente revelam cenários bíblicos, homens cobertos por túnicas nos observando com olhos arregalados sob barracos de madeira e palha.

Ao final do dia, exaustos e doloridos após as horas em cima da moto, paramos em uma cidadezinha para dormir — encontramos alojamento num templo. Saímos para caminhar um pouco antes do anoitecer e avistamos alguns moleques jogando futebol numa área descampada, uns pedaços de pau delimitando os gols.

O Tom entra em um time e eu no outro. A partida é longa e disputada, mas o holandês é obviamente um reforço muito melhor que o brasileiro perna-de-pau. Quando a partida acaba os meninos, que até então não tinham dado nenhuma atenção especial a nós, de repente se dão conta da situação e, assim como os moleques da escola, começam a agir como se fossemos dois extraterrestres, nos rodeando e gritando com os olhos arregalados.

Uma semana e centenas de quilômetros depois, finalmente avistamos no horizonte nosso destino final: Jaisalmer, a belíssima cidade dourada. O Rajastão abriga um vasto deserto e foi ocupado, durante séculos, por temidos reis guerreiros. De Pushkar até aqui encontramos inúmeros resquícios dessa era: fortes, templos e palácios construídos com uma arquitetura que lembra As Mil e Uma Noites. Mas, mesmo para o Rajastão, a cidade de Jaisalmer é uma jóia rara.

Ela eleva-se majestosa no deserto, construída e fortificada com grandes blocos de pedra cor de areia dourada. Nosso anfitrião do Couchsurfing nos encontra de carro no primeiro portão de entrada e o seguimos de moto, entre ruelas, até sua casa na parte da cidade que fica no interior das muralhas fortificadas. Ele é esquisitão e explica que pertence a uma família da casta dos brâmanes, por isso não pode hospedar estrangeiros na sua casa. Mas tem uma espécie de pousada grátis para couchsurfers, logo ao lado.

Consumidos pela exaustão, a noite de sono profundo passa num piscar de olhos. De manhã caminhamos pela inusitada cidade esculpida dentro das enormes muralhas, depois atravessamos grandes portões e caímos no burburinho comercial ao redor do forte. Uma placa de madeira acima de uma porta discreta anuncia uma loja de bhang, ou maconha — “autorizada pelo governo”, a plaquinha acrescenta.

Viajar pela Índia às vezes causa a impressão do mundo ter virado de cabeça pra baixo. É estonteante e libertador pensar que bilhões de pessoas têm costumes tão diferentes e que, afinal, a cultura ocidental — incluindo as Américas colonizadas por europeus — não é portadora exclusiva da verdade.

O primeiro grande ato de rebelião do Bonito, aos olhos da família dele, foi ter cortado o cabelo — o que não é bem visto para homens da religião sikh. Semanas atrás um rapaz indiano, numa vila de montanha no Himalaias, me disse, com um sorriso malicioso, que sua mãe, uma tradicional velhinha hindu, tinha orgulho de ele fumar charras — a maconha é associada ao deus Shiva e consumida por parte dos seus devotos. Quantos jovens já não foram repreendidos ou expulsos de casa, no Brasil, por deixarem o cabelo crescer ou por fumar maconha!

A maconha é ilegal e seu uso é passível de severas punições na Índia. Paradoxalmente, o bhang, que é uma mistura das flores da cannabis indica, um poderoso psicoativo, é vendido legalmente em alguns cidades sagradas — e Jaisalmer é uma delas. Dentro da loja sentamos em banquinhos de madeira e pedimos bhang lassi, o tradicional iogurte com maconha.

Uns trinta minutos depois entramos numa loja de tecidos e é como se tivéssemos atravessado um portal — centenas de panos trabalhados à mão, arrebatadoramente coloridos e intricados, remetem aos mais fantásticos contos orientais. Os quatro vendedores que imediatamente nos abordam, no entanto, nos trazem de volta à realidade.

Mas a realidade se revela ainda mais absurda que a fantasia. Os quatro vestem as tradicionais roupas para indianos homens: camisas sociais desabotoadas ao peito, calças boca de sino, topetes bem engomados, bigodinhos e chinelos de dedo. Os olhos arregalados e vermelhos parecem indicar que também consumiram o bhang e que estão tão loucos quanto nós.

O Tom já tinha comprado uma colcha típica do Rajastão para os seus pais, em outra cidade, e entramos na loja apenas por curiosidade, para comparar os preços. Mas a arte de persuasão dos quatro vendedores é quase hipnótica, algo recorrente em cada cidade turística da Índia. É como se a disputa pela sobrevivência num país pobre, com uma população de mais de um bilhão de pessoas, resultasse num talento inimaginável para convencer as pessoas a comprar coisas que elas não precisam — sem falar nos inúmeros pequenos golpes praticados todos os dias contra uma multidão de turistas.

Eles parecem totalmente atentos, alertas para cada sinal transmitido por um comentário ou gesto nosso, com respostas prontas e principalmente intuitivas cujo objetivo é nos convencer a comprar suas mercadorias. Quando tentamos partir eles nos trazem chai ou puxam assuntos aleatórios — só conseguimos escapar com muito esforço.

Seguimos caminhando sem rumo certo, observando a vida da cidade, até que numa ruela inesperada encontramos uma casa de dois andares com a parede totalmente esculpida, certamente um trabalho de décadas, obra de um grande mestre. Sentamos num banco à frente da casa e logo somos abordados por uns rapazes que vendem belas marionetes feitas de madeira e pano. O Tom faz uma piada e desperta o riso geral — oferecer uma piada, por simples que seja, é quase garantia de despertar a amizade imediata e calorosa dos indianos.

O muro esculpido é visitado por uma procissão de turistas e os rapazes correm para tentar vender marionetes a eles, depois voltam conversando animadamente conosco. Quando não há movimento se divertem brincando com as próprias marionetes, criando inacreditáveis cenas de danças, lutas, romances.

O rapaz mais conversador nos conta, num inglês quebrado, que a sua família é de uma espécie de casta dos fazedores de marionetes, e que o seu pai, e o pai do seu pai, e assim por diante, faziam marionetes e representavam em teatros de rua pelo Rajastão. Vacinado contra a malandragem dos indianos, infinitamente maior que a dos brasileiros, mantenho um ar de desconfiança, mas assim mesmo acabo comprando um boneco para levar de presente — são lindos. Em seguida ele nos convida para conhecer sua casa.

O bhang é um estouro na mente, os sentidos totalmente aguçados para a absurda mistura sinestésica da Índia, e isso é um pouco assustador. Mesmo assim aceitamos o convite e vamos caminhando até a “casa” nos arredores da cidade.

Eles são nômades e estão alojados em habitações improvisadas que lembram ocas. A mulher do nosso amigo prepara o tradicional dhal, ou lentilha, com chapati, o pão sem fermento indiano. Provamos um pouco e ele então mostra os bonecos em diferentes estágios de fabricação: primeiro uns montes de galhos grossos, depois esses galhos esculpidos sem roupas, e finalmente os bonecos com roupas. Eles falam o dia e o local da sua próxima apresentação e nos despedimos agradecendo muito por tudo.

Os dias passam e o nosso anfitrião quase não aparece, mas os funcionários da sua agência de turismo fazem repetidas visitas à “pousada grátis” nos oferecendo passeios de camelo pelo deserto — fica claro que o Couchsurfing está sendo indevidamente usado para fins comerciais. Ao invés desses passeios de camelo, vendidos por agentes em cada esquina, decidimos ir de moto mesmo passar a noite sozinhos no deserto.

Saímos um pouco antes do entardecer e percorremos uns quarenta quilômetros pela estrada vazia que vai até a fronteira com o Paquistão. É uma paisagem árida, plana, com arbustos e pequenas árvores aqui e ali — dunas de areia dourada se levantam ao fundo, a cerca de um quilômetro da estrada. Seguimos até o início das dunas de moto e a escondemos atrás de um arbusto, depois subimos as dunas a pé, carregando apenas sacos de dormir e a comida para passar a noite.

A fogueira é insuficiente contra o frio e somos obrigados a entrar nos sacos de dormir assim que escurece — uma névoa fina cobre o céu e mal conseguimos distinguir as estrelas. Passamos o tempo conversando, tentando esquecer a possível presença de animais peçonhentos, bandidos ou guerrilheiros. Mas de repente vejo um pequeno escorpião bem próximo do saco de dormir, depois outro: dou um pulo e os afasto com um graveto. Acordamos repetidas vezes à noite para acrescentar lenha à fogueira e inspecionar os arredores contra cobras e escorpiões.

O sol da manhã dissipa rapidamente a névoa e ilumina bandos de camelos selvagens e veados correndo não muito longe. Voltamos a Jaisalmer para pegar o resto da bagagem e iniciamos a jornada de volta a Pushkar. Leva três dias, num total de doze dias na estrada. O Tom decide ir a Agra, conhecer o Taj Mahal, e eu compro uma passagem para Goa, ao sul, em busca de descanso num recanto praiano. O trem para lá sai de manhã.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com