Para aqueles que estão fugindo #31: Thank you India

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
9 min readDec 18, 2020

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Compro uma passagem de avião de Mumbai a Londres e outra de lá a São Paulo — também escrevo ao Bonito avisando que deixarei a Índia em duas semanas. Antes disso pretendo conhecer Gokarna, uma cidade praiana no estado de Karnataka. Assim como Varanasi e Arambol, foi uma indicação da belga Estela, que ela me entregou escrita num papelzinho no camping de Paleohora, em Creta.

O Joan e eu pegamos um trem a Panjim, capital de Goa, no caminho para Gokarna. A Emile voltou à França; o Peter decidiu ficar em Arambol mais um pouco, mas deve nos reencontrar em Gokarna em alguns dias. Panjim poderia ser confundida com uma cidadezinha qualquer de arquitetura colonial no litoral brasileiro: igrejinhas brancas, palmeiras, as pessoas sentadas em bancos de praça ou caminhando sem pressa por ruas de paralelepípedo, envoltas pelo ar quente e úmido típico desses recantos tropicais. Após dois dias nos maravilhando por essas ruas antigas, experimentando frutas exóticas nas feiras e tentando falar português com os mais velhos, deixamos Panjim e seguimos de trem para Gokarna.

Como sempre, passamos um bom tempo contemplando a paisagem pela porta aberta do trem, tentando refrescar a pele com o vento, brincando com crianças que passam por nós. Chegamos de noite em Gokarna e um velho nos conduz a uma espécie de sítio, com horta, galinhas e porcos, onde aluga quartos de madeira. De manhã percebemos que o lugar fica na beira da praia. Mas Gokarna, conhecida entre os indianos por abrigar um importante templo de Shiva, é barulhenta e movimentada, por isso decidimos nos hospedar na próxima praia, acessível por meia hora de caminhada por uma trilha.

No caminho até lá, com as mochilas nas costas, passamos por uma king cobra morta — dizem que seu veneno mata um adulto em uma hora. Encontramos a hospedagem mais barata a cerca de um quilômetro da praia, onde o vale acaba em colinas cobertas de selva — para chegar até lá é necessário passar por umas pousadas e restaurantes, depois entre plantações de arroz.

Alugamos, cada um, uma cabana com parede circular de barro e teto de palha, as camas cobertas por mosqueteiros, por cinquenta rúpias a noite. Os dias passam tranquilos, idílicos, entre longas conversas e banhos de mar. O Joan é um verdadeiro moço do campo, cada gesto seu transparece pureza de coração: sempre sorri com o rosto todo e ri com o corpo inteiro. Temos um vizinho um tanto sério, de olhar duro, sempre usando um chapeuzinho estilo muçulmano — abaixo dele pendem densos cachos negros, que vão até o ombro. É italiano e aparenta ter trinta e poucos anos.

Durante uma conversa entendemos o porquê do chapéu. É tocador profissional de tabla, a percussão indiana considerada dificílima de tocar, e mora na Índia há sete anos. No ano passado teve um sonho. No sonho, um velho de longa barba e cabelos brancos o chamava, sem utilizar nenhuma língua específica. Na manhã seguinte abriu seu email e encontrou uma mensagem de um amigo com um anexo. Ao abrir o arquivo, levou um susto: lá estava a foto do velho do sonho da noite anterior, um mestre sufi (da vertente mística do Islã) do Chipre.

Decidiu ir até o mestre, no Chipre, no mês seguinte. Centenas de pessoas, falando diversas línguas, esperavam o ancião num campo aberto, quando ele chegou dirigindo um carro. Estacionou ao lado do nosso vizinho e desceu do veículo. Cara a cara com o sábio, as palavras pareciam sair sozinhas da sua boca, em inglês.

“Eu quero me tornar muçulmano.” O velho, com seus mais de oitenta anos, apenas o fitava profundamente nos olhos. O coração palpitava, suor escorria pelo seu rosto. Repetiu, com mais convicção: “Eu quero me tornar muçulmano.” Em resposta, o homem cantarolou algo em árabe, em voz alta — seu batismo no Islã.

Voltou ao Chipre meses depois e, novamente, ficou frente a frente com o mestre, de maneira inusitada. Ouviu dele que deveria iniciar um centro sufi no sul da Itália, na sua cidade natal. Aquilo não fazia sentido, comentou depois com outros seguidores do homem. O conselho deles foi ter fé, que algo aconteceria.

E aconteceu. Recebeu uma ligação do seu pai, no mês passado, com a estranha notícia de que um parente distante tinha morrido e lhe deixado um terreno de herança. Mais ou menos na mesma época descobriu que, durante a ocupação muçulmana do sul da Europa, séculos atrás, os sufis mantiveram um importante centro religioso não muito distante do local onde nasceu. Agora, em Gokarna, com a cabeça a mil, pensa nos próximos passos enquanto estuda os livros do mestre, lê o Alcorão e ora cinco vezes ao dia, na direção de Meca.

Numa manhã ensolarada encontramos o Peter na praia e o levamos até o nosso pouso, e ele também aluga uma das cabanas. Alguns dias depois, à noite, vou esperar pelo Bonito na estação de trem. Vem diretamente de Délhi só para me encontrar, três longos dias de viagem. Apesar da cansativa jornada, está cheio de empolgação, com os olhos mais amorosos, quando nos encontramos. Da estação vamos diretamente à loja de bebidas alcoólicas, onde compramos algumas garrafinhas de Old Monk, o tradicional rum barato da Índia.

Percorremos a trilha de meia hora no escuro da noite e, quando chegamos, encontramos a praia pontilhada por duas ou três fogueiras e algumas velas — pessoas conversam, namoram e tocam violão. Ao redor da maior fogueira está um grupo de umas quinze pessoas, quase todos integrantes de um grupo de teatro itinerante, formado por europeus, indianos e um peruano.

Um homem com uma enorme barba ruiva se levanta com um violão e começa a tocar e cantar War, de Bob Marley. A performance é acompanhada por homens e mulheres dançando performaticamente enquanto criam efeitos sonoros com a boca: o som de bombas caindo, metralhadoras atirando e pessoas gritando, tudo incrivelmente sincronizado com a música. A canção seguinte, também do Bob, é Rastaman Chant, a lindíssima letra carregada por um coro feminino de arrepiar a alma. É um dos espetáculos mais lindos da minha vida.

O Bonito bebe Old Monk como quem bebe água e tenta a sorte com uma ou duas garotas da roda, mas seu estilo sarcástico parece não dar certo dessa vez. No fim acabamos nadando pelados, sem a companhia de mulheres, e voltamos à fogueira para nos secar. O caminho até as cabanas é terrível. Eu levo a mochila do Bonito nas costas enquanto tento carregar ele apoiado no ombro — às vezes ele desaba e nós dois caímos juntos na lama do arrozal. Torço para a king cobra estar longe.

De manhã, abro a porta da cabana do Bonito e testemunho outra cena hilária: dorme diretamente no chão de terra, a cama ao lado, e tem as duas pernas enfiadas no mesmo buraco da bermuda — ele só percebe a situação quando tenta se levantar e não consegue. Em seguida reclama, fingindo braveza, que só pode ter sido vítima de alguma pegadinha. Eu e um rapaz que passa caímos na gargalhada com a cena.

O clima tranquilo do nosso recanto praiano não agrada muito ao Bonito. Eu reluto um pouco, mas ele acaba me convencendo a ir ao sul de Goa com uma scooter alugada, em busca de um ambiente mais festivo. A viagem dura poucas horas e chegamos à praia de Palolem um pouco antes do pôr do sol. Ele fica visivelmente decepcionado quando percebe que, apesar da orla estar tomada por estabelecimentos turísticos, não há quase ninguém circulando — bem diferente do clima de festa que esperava.

Após a janta engolimos o resto do meu charras e saímos caminhando pela praia. Para nossa surpresa, duas suecas que conhecemos em Gokarna estão sentadas em cadeiras na frente de um bar. Ficamos conversando um tempo com elas e, quando percebemos que não querem nada conosco, seguimos andando na escuridão da noite.

A praia está deserta e o som calmante das ondinhas quebrando na areia é gradualmente misturado ao de uma musica exótica, que vai ficando mais alta conforme nos aproximamos dela. Finalmente chegamos à frente de uma cabana mal iluminada, de onde o som parece vir.

Entramos relutantes no bar, sem saber se está aberto para visitantes, e ficamos imóveis por alguns segundos ao nos depararmos com a seguinte cena: uma banda de quatro homens, com cítara, o instrumento de cordas indiano, um didjeridu, instrumento de sopro dos aborígenes australianos, uma gaita e uma tabla, tocam quase em transe para uma plateia de… três pessoas.

Sentamos numa mesa e eu tiro o resto de um baseado do bolso. Com a primeira tragada vem, de uma vez, o efeito do charras que engolimos há menos de uma hora. Nesse instante a música para e o tocador de cítara — com cara de europeu — anuncia, num microfone, que compôs a música seguinte meses atrás, quando vivia numa praia isolada numa pequena ilha grega pouco conhecida. Mesmo antes de ele pronunciar os nomes eu já sei.

“A ilha se chama Gavdos e a música, em homenagem à praia, Lavrakas.”

Olho para o Bonito em total assombro e tento explicar, sussurrando, que Lavrakas foi a praia deserta onde morei por três semanas em abril — é inacreditável. A música chamada Lavrakas, totalmente instrumental, explode em nossas mentes por doze longos minutos.

No meio da caminhada de volta somos abordados, no escuro da praia, por dois homens com metralhadoras. Tento manter a compostura, apesar do coração quase saltando da boca, e reparo que estão vestidos com roupas militares — revistam nossos bolsos, provavelmente buscando drogas, e nos deixam ir. Por sorte, já comemos e fumamos todas as drogas que tínhamos. Caminhamos mais alguns minutos, ainda suando frio, até o centrinho comercial vazio de pessoas, onde retiramos os sacos de dormir do bagageiro da scooter.

Mal nos recuperamos do susto quando, no caminho de volta para a praia — onde pretendemos dormir — , aparece uma matilha de uns doze cachorros raivosos, vindo ameaçadoramente em nossa direção. Eu já tinha ouvido a história: durante a alta temporada os vira-latas magrelos e mendicantes são alimentados por turistas caridosos e irresponsáveis e, na baixa temporada, eles ficam com fome e atacam as pessoas, causando estragos às vezes fatais.

Tudo isso vem à cabeça num flash, mas é o Bonito que reage no mesmo instante. O líder da matilha, a alguns centímetros à frente dos outros cachorros, com todos dentes pra fora, rosna ferozmente e avança cautelosamente na nossa direção, mas interrompe a investida quando o Bonito berra como um louco e bate o saco de dormir no chão, com violência.

Eu o imito e de repente se instala um duelo de via ou morte — nós também nos tornamos feras de olhos arregalados, com os dentes para fora, recuando lentamente enquanto berramos enlouquecidamente e batemos os sacos de dormir no chão.

Os cachorros só desistem de nos comer depois de uma pequena eternidade, quando chegamos exaustos ao fim da ruazinha de terra. Caminhamos na praia até um ponto aparentemente seguro para dormir na areia e, apesar da adrenalina, o sono vem rápido. De manhã acordo mais cedo que o Bonito e vou até uma banca comprar uma garrafinha de água. Quando volto ele já não está mais lá — só o reencontro uma hora depois, saindo de um cybercafé, com metade do rosto ainda sujo de areia da praia.

De volta a Gokarna, nos despedimos do Peter e do Joan — o espanhol vai encontrar amigos escaladores na cidade de Hampi, o inglês deve ficar mais um mês em cidades praianas — e seguimos de trem a Mumbai. Um amigo do Bonito está viajando a trabalho e deixou a chave do seu apartamento conosco. Dormimos lá e na manhã seguinte, meu último dia na Índia, saímos para uma caminhada na cidade.

Toda a Índia é como uma grande feira, e a metrópole Mumbai não é diferente. No meio da rua, um homem ferve chai numa panela de ferro toda amassada, ao lado um bode come restos de legumes no chão. Em poucas horas passamos na frente de templos e igrejas de umas setes religiões. Vendedores de rua, paupérrimos, trabalham de sol a sol, mas ouvem música altíssima e riem muito, os olhos arregalados, como se estivessem profundamente mergulhados no momento presente. Talvez o mais marcante da Índia seja isso, essas pessoas vivendo vidas duríssimas, mas fazendo o melhor do pouco ou nada que têm.

Eu tenho o cabelo desgrenhado, endurecido e queimado pelo sol, uso um chinelo de dedo e uma calça jeans suja. Bebo feliz o último chai, depois subimos num rickshaw rumo ao aeroporto. O Bonito avisa o motorista que vai descer um pouco antes, pretende pegar carona para visitar uma ex-namorada em Puna. Quando chega o momento, nos despedimos apressadamente com um forte abraço e tapas nas costas — ele pula para fora do rickshaw e fica na beira da estrada.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com