Para aqueles que estão fugindo #33: El Alto
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Após um ano dando aulas de inglês surge a possibilidade de tirar uns dias de férias. O objetivo principal é juntar dinheiro para ir à Ásia, mas não resisto ao chamado da América do Sul, a tão sonhada América do Sul.
Anos antes, num bar de sinuca esfumaçado em Curitiba, o Gorgonzola e eu, entre goles generosos de cerveja, discutíamos a longínqua possibilidade de viajar o mundo. Provar sabores e cheiros distantes, beijar lábios de outras línguas, desbravar horizontes. Tudo isso soava improvável de tão fascinante. Mas sonhávamos, ao som de Manu Chao. As viagens de bicicleta, as trilhas e acampamentos na natureza pareciam anunciar algo maior por vir.
Lembro o meu velho amigo disso quando o convido, por email, a viajar pela Bolívia e Peru de carona, por vinte dias. Ele está desempregado e não tem um real no banco, mas em breve começará a trabalhar como servidor público e poderá me devolver um pequeno empréstimo.
Na véspera do natal chega a São Paulo, de ônibus. Pegamos carona com meu primo até a casa de parentes no interior do estado, onde passamos o natal, e depois a Campo Grande. Contra a expectativa dos que julgavam impossível e perigoso pegar carona na zona de intenso narcotráfico, saímos de Campo Grande meio-dia e conseguimos três caronas até Corumbá, na divisa com a Bolívia, percorrendo quatrocentos quilômetros numa tarde.
A última delas, durante um entardecer suave, é no carro de um pantaneiro de cabelo comprido, olhar sereno e jeito silencioso como a extensa planície verde ao redor. Recebe uma ligação no celular e depois explica, com poucas palavras, o motivo do seu súbito e tímido sorriso: a “sua morena” o espera em casa com um prato de comida quente, arroz, feijão e bife.
Passamos a noite em Corumbá num hostel e de manhãzinha caminhamos na direção de Puerto Suarez, de onde sai o “Trem da Morte” para Santa Cruz de la Sierra. Na fila da aduana encontramos uma dúzia de mochileiros brasileiros esperando impacientemente para atravessar a fronteira. Horas depois, na estação de trem, descobrimos que os bilhetes estão esgotados para os próximos dois dias, e somos os únicos brasileiros que não aceitam pagar a propina por lugares “extras” no trem supostamente lotado.
Vamos de ônibus, à noite, e aproveitamos para circular por Puerto Suarez durante o dia. Como toda cidade de fronteira, tem seus bêbados, intenso comércio de ambulantes e algumas figuras suspeitas andando pelas ruas. A pobreza da Bolívia já se evidencia pela falta de pavimento e crianças maltrapilhas. Sua riqueza, pela maravilhosa variedade dos alimentos vendidos no mercado público, nas calçadas, pelo colorido do povo.
Sentamos num boteco e pedimos duas cervejas em lata. Uma velha índia, de longos cabelos brancos, deixa na calçada umas ervas e outros produtos que vende, senta numa mesa ao lado e também pede uma cerveja. Em seguida usa uma moeda para escolher um hit boliviano numa jukebox empoeirada — a música, chamada Cholita Marina, nos parece hilária. Ela abre um delicioso sorriso banguela enquanto dança alegremente e nos saúda com a lata de cerveja. Sorrimos empolgados: a Bolívia não poderia nos recepcionar de forma melhor.
Na rodoviária investigamos sobre como pegar carona de Santa Cruz a Cochabamba. Um “ex” contrabandista nos informa que o melhor ponto é a cidade de Montero, a uns quarenta quilômetros de Santa Cruz. Também descobrimos que o presidente Evo Morales utilizou a data do Natal para cortar subsídios da gasolina, o que elevou consideravelmente os preços dos alimentos. Protestos e bloqueios nas estradas do país inteiro já estão acontecendo e muitos outros são esperados.
Após uma noite sacolejando no ônibus e algumas paradas para comer comidas típicas, chegamos na rodoviária de Santa Cruz antes do nascer do sol. O café da manhã, servido numa mesinha improvisada numa calçada, é um delicioso caldo roxo, adocicado e esfumaçante, cujo conteúdo não conseguimos identificar. É consumido por trabalhadores bem agasalhados, rumando a mais uma longa jornada.
Uma van lotada nos leva a Montero. A cidade é impressionante, parece uma enorme feira: por todos os lados bancas de frutas, verduras, cereais, ervas, folhas de coca e até cabeças de boi dependuradas. Esse visual, junto com a maneira colorida de se vestir dos bolivianos, faz o Gorgonzola apelidar o país de “Bolíndia”, em referência à distante e exótica Índia.
Compramos de uma mulher uma sacola cheia de folhas de coca, por algumas moedas, e iniciamos uma caminhada até o pedágio mais próximo. Consumimos a coca imitando os pedreiros e motoristas de caminhão: acomodamos um grande maço num lado da boca, deixando um calombo visível na bochecha. Com o tempo essa pasta vai se desfazendo e eventualmente uns pedaços de folhas enegrecidas se alojam entre os dentes da frente. Isso acontece comigo e o Gorgonzola ri: “Não vejo a hora de você ir conversar com uma mina com o dente preto, vou dar muita risada!”
A caminhada é longa e a coca faz um pouco de efeito — não dá a euforia do café, mas o corpo é todo vigor e a mente tem muita disposição. Inspirados, inventamos uma canção lisonjeira à folha de coca e seguimos cantando felizes e completamente desafinados, hábito antigo em nossa amizade.
Tentamos carona por algumas horas no posto de pedágio, sem sucesso. Até que um funcionário se solidariza conosco e passa a conversar diretamente com os caminhoneiros, pedindo carona para nós. Um deles faz sinal para subirmos na caçamba. Lá dentro, uma surpresa: sentadas no chão estão três cholas, as bolivianas vestidas com trajes tradicionais, saias fartas, coloridas e rendadas, os longos cabelos negros trançados cobertos por chapeuzinhos que lembram cartolas. Algumas crianças as acompanham. Elas respondem ao nosso cumprimento timidamente e continuam conversando entre si.
É quase meio dia e o sol castiga, sem piedade. Uma selva tropical se estende até umas colinas delineando o horizonte, ao longe. Estamos com pouca água e quase sem comida, mas não importa, temos uma sacola cheia de folhas de coca e não sentimos fome nem sede. Por volta das duas da tarde o caminhão para num congestionamento quilométrico. A população de uma vila queima pneus e bloqueia a estrada, protestando. Por sorte a manifestação começou cedo e depois de uma hora somos liberados.
É grande a possibilidade de bloquearem as estradas por vários dias. Para diminuir o risco de ficarmos bloqueados em alguma cidadezinha por vários dias, decidimos não parar em Cochabamba, como o planejado, e ir direto a La Paz, se os quatro motoristas que se revezam na cabine concordarem.
Aproveitamos a parada em Cochabamba para o jantar, já tarde da noite, e fazemos o pedido, que eles aceitam. Uma das cholas desce, deixando algumas notas com os motoristas, e outras duas sobem. Isso confirma o boato de que as caronas na Bolívia costumam ser pagas. Custam cerca de um terço da passagem de ônibus — já baratas para os padrões brasileiros, como tudo na Bolívia.
Nas mais de dez horas de viagem até Cochabamba subimos cerca de dois mil metros de altitude. O calor fulguroso do dia dá lugar agora a um frio cada vez mais cortante — estamos subindo os Andes. Vestimos de uma só vez todos os nossos agasalhos, entramos nos sacos de dormir e ainda assim sentimos frio. As cholas devem perceber isso, pois nos oferecem emprestado um grosso cobertor, que aceitamos com grande alívio. Pouco depois o caminhão encosta no acostamento e um dos motoristas estende uma lona sobre nós, tampando a visão do céu estrelado e causando uma sensação um pouco claustrofóbica.
Os raios de sol do amanhecer já iluminam a lona suja e amarelada quando o Gorgonzola se levanta e vai à traseira do caminhão para urinar. Volta e senta ao meu lado. A gola e o capuz do casaco cobrem sua testa e queixo, destacando os seus olhos grandes, arregalados e fascinados como quase sempre. Lágrimas escorrem deles. “É lindo demais.”
Eu também saio pela lona e me maravilho com as cordilheiras, os picos nevados, os rebanhos de lhamas, a paisagem acolhedora e ao mesmo tempo grandiosa do altiplano boliviano — tão diferente da selva tropical do dia anterior. O céu está completamente azul e o ar frio e puro enche os pulmões. Volto com um enorme sorriso e encontro o meu amigo ainda comovidíssimo.
“Mano, acordei algumas vezes no meio da noite me perguntando, ‘o que que eu tô fazendo aqui, vou morrer no meio da Bolívia, na traseira de um caminhão?’ — pensando nos penhascos, quando o caminhão chacoalhava. Mas agora essa paisagem… É a primeira vez que vejo neve. Lindo demais… demais.”
A viagem termina no El Alto, uma cidade na região metropolitana de La Paz e lar dos motoristas. Pagamos as nossas “passagens” e pegamos duas vans e um ônibus, lotadas de trabalhadores rumo ao expediente, até o centro da cidade. Encontramos um hostel próximo da Plaza Murillo, onde fica a sede do governo, no coração de La Paz.
O Gorgonzola vai usar a internet num computador na recepção e eu subo ao nosso quarto, onde encontro um homem barbudo, de boné e cabelo ondulado até o ombro, que me cumprimenta com um sorriso escancarado, de rara pureza. Conversamos em uma espécie de espanhol, o dele com traços de italiano e o meu carregado de português, o portuñol. É o nosso vizinho de beliche e diz estar viajando sozinho pela América do Sul há três meses.
La Paz é a capital mais alta do mundo, fica a mais de três mil e quinhentos metros de altitude, e lembra uma cratera. Quem vem do El Alto, espalhado num vasto altiplano, tem que descer uma longa ladeira para chegar ao “buraco” que La Paz é — do centro dá para ver as casinhas marrons encarapitadas nas encostas, ligando a parte central à periferia, bem acima.
A bela arquitetura predominantemente espanhola é o palco de uma cidade vibrante e quase totalmente indígena: o aimará e outras línguas nativas são tão comuns quanto o espanhol, as cholas circulam por toda a parte com seus trajes coloridos, os mais variados produtos agrícolas são vendidos nas calçadas. A sensação é de estarmos imersos numa civilização milenar, exótica e longínqua — surpreendentemente, é a vizinha Bolívia.
Passamos os dias caminhando, visitando feiras, conversando com pessoas nas ruas. Sempre na companhia do Roberto, que aos poucos descobrimos se tratar de uma verdadeira lenda do rock. Começando pela aparência: suas poucas camisetas são todas pretas com estampas de bandas rock, há três meses não lava a sua única calça jeans e usa sempre as mesmas botas surradas. Às vezes veste um chapéu de couro, lembrança da Austrália.
Possui uma lanchonete no norte da Itália, que só funciona nos meses de verão. No restante do ano se dedicava a um selo musical voltado a bandas underground — a que obteve maior sucesso vendeu quase mil discos. Percorria a Europa, América do Norte e Austrália dirigindo furgões por milhares de quilômetros, como produtor e “assistente” das bandas mais alucinadas.
Fez isso por dez anos até que as loucuras, calotes e prejuízos o cansaram um pouco e decidiu dar um tempo. Ano passado rodou por meses o sudeste asiático e agora pretende subir, aos poucos, até a Colômbia — ainda tem três meses de viagem até o trabalho recomeçar na Itália. Tem um coração gigantesco e exibe quase o tempo todo um largo e sincero sorriso — já o consideramos um irmão para a vida toda.
Numa manhã, de uma passarela conectada ao mercado público, testemunhamos um cortejo incrível: centenas de cholas, as mesmas que nos emprestaram o cobertor dias antes, lideram uma marcha de dezenas de milhares de pessoas descendo do El Alto. Guardiãs da Pachamama, divindade andina ligada à Mãe Terra, vão à frente de uma multidão que ruma à Plaza Murillo, protegida por barricadas de policiais. Revoltados com o presidente indígena que prometera representá-los, cantam em uníssono, fazendo as ruas e paredes tremerem:
“Derecha, izquierda, son la misma mierda!”
É de arrepiar. Mais tarde, numa lanchonete, vemos na televisão que alguns dos protestantes empunhavam espingardas. O governo de Evo, após dias de pressão, cede e revoga o corte de subsídio. No dia seguinte a Plaza Murillo amanhece tranquila. Mas o episódio todo me deixa bastante pensativo. Os brasileiros, no geral, parecem exceção na América do Sul quando se trata de união e luta por direitos, menos engajados e talvez mais comodistas. E isso também diz respeito a mim.
Aos quinze anos de idade comecei a ler sobre o comunismo, anarquismo e a me interessar por movimentos sociais. Em pouco tempo, no entanto, me pareceu que a mudança política é supérflua se não for acompanhada de uma radical mudança psicológica, cultural, espiritual. Mudar governos e sistemas políticos e manter a mesma mentalidade profundamente enraizada há milhares de anos é como cortar alguns galhos para matar uma árvore: ela só se fortalecerá com a poda.
Nos últimos anos, então, tenho buscado me conhecer melhor para cortar a raiz dentro de mim mesmo. Quando a impermanência de todas as coisas deixa de ser um conceito e é sentida nos ossos, qual o sentido de explorar o próximo para acumular coisas inúteis, de tentar dominar a natureza de forma tão absurda? Só quando a aflição da onda se dissolve na libertação do oceano o amor mais puro e transformador pode jorrar. As cholas, no entanto, passam uma mensagem clara: o mundo está cheio de injustiças e urgências, as lutas são diversas.
No último dia em La Paz decidimos subir o Chacaltaya, um pico nevado de mais de cinco mil metros de altitude. Fica a trinta quilômetros da cidade, mas levamos a manhã toda em ônibus e vans para chegar ao ponto onde somos obrigados a seguir de táxi.
Após o fim da estrada, já no alto, demoramos uma hora para subir a pé os últimos trezentos metros até o topo, sob todo o peso da altitude. Qaundo finalmente chegamos, começa a garoar umas gotículas de gelo, quase como neve. O silêncio é absoluto. De repente, nos damos conta da beleza do momento e explodimos em abraços e sorrisos. O Roberto pede para seguir viagem conosco. Vamos juntos até a Isla del Sol, no lago Titicaca, a Cusco e a Macchu Picchu. Depois disso nós voltaremos ao Brasil pelo Acre e ele seguirá pelo lado oposto, na rota para Lima.
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