Para aqueles que estão fugindo #35: Há uma beleza muito grande em se perder

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
6 min readAug 13, 2021

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Dez dias depois, o Bonito me recebe no aeroporto de Berlim com um largo sorriso e braços abertos, apesar de ter esperado por horas com o atraso do voo. No trem para o centro relembramos e rimos das aventuras em Barcelona e na Índia. Depois deixamos a mochila na casa do seu amigo, onde ficaremos hospedados até alugarmos algo, e saímos para uma fast-food turca e cerveja.

Quando o amigo franco-brasileiro chega no bar o Bonito passa a relatar uma anedota sobre um encontro com uma moça do Azerbaijão que ele teve na noite anterior. O clima é festivo, mas eu mal consigo interagir — estou exausto e só penso na Nefeli, com o coração apertado.

Dormimos por três semanas na sala do amigo e finalmente alugamos uma quitinete num bairro de imigrantes, artistas desconhecidos e boêmios, a melhor vizinhança de Berlim. Dividimos o mesmo espaço e revezamos entre a cama e o colchão no chão. Eu uso a sua bicicleta velha para ir ao centro zen praticar zazen e passo longos dias angustiado dentro de casa, na frente do notebook, enviando currículos e pesquisando oportunidades de trabalho. Nos intervalos desço até o parque mais próximo para respirar um pouco de ar puro e tentar refrescar a mente.

Já o Bonito está feliz em Berlim, fazendo mestrado e às vezes trabalhando como freelancer numa empresa de TI. Sua principal ocupação, no entanto, é curtir a cidade que talvez seja a capital alternativa da Europa, com seus traços remanescentes do comunismo, festas de música eletrônica, profusão de arte independente nas ruas, centros anarquistas servindo comida vegana em troca de nada ou doações, viajantes chegando e partindo todos os dias.

Participa de encontros do Couchsurfing, frequenta grupos de práticas sustentáveis e faz dumpster diving, que é basicamente pegar comida do lixo — de fábricas de pães, supermercados, feiras — , numa reciclagem dos desperdícios da sociedade, assim como são as viagens de carona.

Desde que largou o emprego em Madri já viajou de carona por mais de trinta países e Berlim, por estar no centro geográfico da Europa, é o ponto de partida de viagens alucinadas e relâmpago a diversos cantos do continente. Assim descubro que existe uma movimentada comunidade de caroneiros articulada pela internet e que o Francesco é um dos seus líderes. Certa noite vamos juntos a um encontro dessa galera, numa casa.

Dos vinte presentes cerca da metade vive em Berlim, a outra está em alguma jornada de carona. Os papos invariavelmente são sobre essas viagens e rapidamente eu me entedio com a situação. Meu mau humor talvez esteja relacionado ao péssimo estado de espírito, influenciado pelo desemprego e saudade da Nefeli, mas nunca me senti à vontade em tribos, e a sensação é de estar no meio de uma.

Na volta para casa, enquanto balançamos com as curvas do ônibus, comento isso com o Bonito. Ele tem se tornado uma espécie de divulgador das viagens de carona, de uma nova forma de nomadismo, e defende que viajar sem mapas, placas e destino certo é a melhor forma de transcender o ego e ampliar os horizontes políticos, culturais, espirituais.

“Cara, na estrada nós temos que nos entregar ao desconhecido, e há uma beleza muito grande em se perder!”

“É verdade, também sinto isso, mas não existe uma fórmula pra todo mundo, um caminho certo para as pessoas se encontrarem, ou se perderem. Nos anos sessenta caras como Timothy Leary e Aldous Huxley tomaram cogumelos e LSD e acharam que o mundo ia mudar se as pessoas tomassem essas substâncias. O mundo mudou, mas teve gente que não mudou, e gente que mudou pra pior,” retruco quase sem respirar.

“Tem pessoas que tomam um cogumelo, ou praticam meditação, ou viajam de carona, e passam a se achar muito especiais, aventureiros, desapegados. Lembro do Jimmy, um mexicano que conheci na Itália, falando de uns caras que ele conheceu num hostel e que se gabavam de ter viajado com pouco ou nenhum dinheiro, como isso fosse uma grande competição. Ele respondia com um ‘foda-se! Se você fez isso o problema é seu.’ Pra mim esse tipo de atitude é simplesmente uma outra forma, talvez mais sutil, de apego, de vaidade.”

“Eu sei o que você tá dizendo, mas como você vai conhecer sobre o mundo sem sair do seu mundo, através dos jornais, da experiência dos outros?” — retruca. “É claro que as pessoas podem acabar se apegando a essas experiências, mas aí o problema está no apego delas, não na experiência em si. Pra mim não existe melhor maneira de ser esmagado pela realidade que se jogando na estrada,” conclui.

O inverno gradualmente desce sobre Berlim e fortes tempestades também chacoalham o meu ser. A súbita separação da Nefeli, após mais de dois meses convivendo diariamente, foi um duro golpe. A primeira visita dela só aumentou a saudade e, com a distância, as brigas tornam-se cada vez mais frequentes.

Nos cerca de dois meses que estivemos juntos vivi como se cada dia fosse o último, sem dar a mínima importância aos gastos, e a reserva de dinheiro que era para durar anos na Ásia agora está quase acabando. É deprimente passar dia após dia num quarto escuro, na frente da tela de um notebook, buscando desesperadamente empregos mal remunerados que provavelmente vou detestar.

Mais umas vez longe das seguras margens do conhecido, flutuando no oceano da incerteza, angústias, dúvidas e medos antigos vêm à superfície. Lembro, porém, do maior ensinamento que recebi de uma professora da universidade, num encontro por acaso fora da sala de aula: as crises são importantes porque nos obrigam a sair do lugar. São uma oportunidade de renascer, crescer, desabrochar. Com isso em mente, tento me manter firme em meio à tempestade e seguir algum caminho, qualquer que seja ele.

Na sexta, como de costume, vamos à feira turca perto de casa ver o movimento. Uma fantástica banda dos Bálcãs, moleques com instrumentos de sopro e percussão, toca alucinadamente numa esquina, onde encontramos uma ucraniana do Couchsurfing um pouco excêntrica, que anda perseguindo o Bonito.

Ele sorrateiramente tenta desviar a atenção da menina para mim, sem sucesso, pois ela se convida a passar a tarde com ele. Nesse momento nossos olhares se encontram: o meu expressa um riso contido e o dele parece querer me mandar ao inferno. Ela vai nos acompanhando a pé, enquanto voltamos para casa. Como as respostas dele são monossílabas, ela se dirige a mim:

“O que você tá fazendo em Berlim?”

“Procurando emprego,” respondo emburrado.

“De quê?”

“Qualquer coisa… Lavando louça, garçom. Tenho espalhado cartazes de professor de português e tentado dar aula de inglês pra imigrantes, uma amiga brasileira faz isso, mas por enquanto nada.”

“Você estudou alguma coisa?”

“Jornalismo.”

“Hum… Porque não escreve sobre as suas viagens?! Vocês dois já viajaram tanto, têm tantas histórias pra contar!”

“Então, o Jack Kerouac dizia que escrever, pra ele, é uma forma de oração, uma maneira de se comunicar com Deus… Pra mim escrever também é algo meio sagrado, e fazer isso pra alguma revista de turismo ou algo do tipo seria como prostituir as viagens e a escrita, o que há de mais sagrado pra mim, então prefiro me prostituir com outras coisas,” respondo com um ar meio arrogante, um pouco irritado com a sua voz estridente.

Antes que ela retruque, acrescento: “Mesmo um livro. Na época do Kerouac era diferente. Hoje em dia as pessoas viajam muito mais, o mundo está cheio de relatos de viagem, e eu não vejo sentido em simplesmente ficar relatando as coisas simplesmente por relatar, como um colecionador ou esbanjador de experiências.”

A situação financeira chega ao limite e eu mudo de estratégia na busca por trabalho. A crise atingiu a Europa em cheio e, mesmo na Alemanha, o país menos afetado, já não é nem um pouco fácil conseguir emprego. Volto, então, os meus olhos ao Brasil e ao resto do mundo, concentro todas as energias na busca de trabalho como professor de inglês ou português online ou como tradutor. Finalmente uma escola de inglês de São Paulo me aceita como tradutor freelancer. Dias depois uma agência da mesma cidade começa a me mandar textos para traduzir.

O trabalho não é fácil. Certos conteúdos, como manuais de peças da indústria pesada, têm vocabulários tão complexos que não sei o significado da metade das palavras — isso em português, e muito menos em inglês. Tenho que correr com prazos, o que significa, às vezes, traduzir quinze horas por dia por dias seguidos, quase sem intervalos.

Os olhos e a coluna doem. É dificílimo, mas vou me aperfeiçoando nas técnicas. E, pelo menos por enquanto, é uma salvação. Posso trabalhar de qualquer lugar do mundo, de cueca, fazer meus próprios horários. O dinheiro é suficiente para me sustentar e ainda guardar um pouquinho. Depois do primeiro pagamento, então, me mudo para Atenas.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com