Vista da baia de Luanda, capital de Angola. Área também conhecida como marginal de Luanda

Reflexões sobre minha experiência na África

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Revista Passaporte
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12 min readJul 9, 2018

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Venho editando esse texto há algum tempo, escrevendo e reescrevendo na ânsia de transmitir com fidelidade meu olhar sobre o período em que vivi em Angola. Acredito que hoje quase 2 anos depois de deixar Luanda, capital de Angola, eu já posso compartilhar minha experiência nesse País africano. Relutei em escrever sobre isso porque foi realmente uma experiência intensa e que mudou minha percepção sobre alguns aspectos da vida, logo nada melhor do que deixar o tempo passar para amadurecer bem os sentimentos e percepções.

Sair da zona de conforto sempre é um desafio. Se torna um desafio maior ainda quando se trata de sair da sua terra natal, conforto do lar e da família para uma vida em Angola. Não quero supervalorizar minha experiência, até porque diferentemente de algumas pessoas, eu fui com toda a infra-estrutura proporcionada pelo fato de que meu marido já estava lá, ou seja, casa, transporte e todos esses itens essenciais já estavam solucionados. No entanto, o impacto aconteceu e por mais preparada que eu estivesse, não foi o suficiente, nunca é eu diria.

O primeiro deles foi o de ser pela primeira vez minoria, ser a pessoa diferente, não somente estrangeiro, mas estrangeiro branco. O povo em Luanda está acostumado com essa invasão estrangeira branca, que infelizmente capta as melhores ofertas de trabalho. Esse foi meu primeiro questionamento. Como assim eles aceitam tranquilamente que brasileiros e portugueses qualificados, ou muitas vezes nem tanto, cheguem aqui consigam os melhores empregos, morem nas melhores casas e fica tudo por isso mesmo? Meu primeiro pensamento foi: como eles não se rebelam?

Pórtico de entrada da Fortaleza de Luanda, hoje o principal museu da cidade com o maior acervo de guerra e que retrata bem a história do País

Aos poucos fui entendendo que esse povo que tanto sofreu e sofre até hoje não gosta de se rebelar, talvez tenham se acostumado a aceitar. O país até então era governado pelo mesmo pseudo-democrata presidente há quase 40 anos, em um regime falsamente democrático. Quando comecei a ficar mais próxima de alguns angolanos eu perguntei como não se rebelavam, já que as mazelas do País estavam ainda tão evidentes e os ricos cada vez mais ricos. E a resposta era sempre, mas mesmo assim, agora estamos melhores do que no passado, hoje pelo menos temos um teto. A partir daí fui construindo minha percepção de que angolano é um povo pacífico.

O que mais impressionou-me e o que mais sinto falta de Angola até hoje é do sorriso fácil dos angolanos, da alegria, do bom dia com sorriso no rosto, do boa tarde, do como vai sua família. Isso realmente sinto muita falta ainda mais depois de me mudar para a Irlanda. Angolanos sorriem com a alma, com gosto, com essência. Lá aprendi de verdade o poder de um sorriso, de um sorrir verdadeiro, do sorrir humano. Quando dava aulas era sempre com uma satisfação tão grande porque aquele sorriso que vinha deles de forma tão espontânea e natural enche qualquer coração mais gelado de alegria.

Alex, meu marido, vestido de papai noel na festa das crianças de um orfanato local. Esse sorriso que eles cultivam mesmo depois de adultos e com as adversidades da vida.

Essa alegria fica mais explícita ainda mais nas ocasições especiais, as festas são sempre animadas, por mais pobre que seja o vilarejo, por mais recursos que faltem, uma comemoração nunca passa despercebida. Isso é levado muito a sério, tanto que os velórios também são celebrados com festa. E infelizmente isso acontece toda hora, visto que índice de mortalidade do País ainda é muito grande. A saúde continua sendo precária para a população que não tem acesso ao atendimento particular.

Durante meu cotidiano em Luanda tive contato em particular com dois Angolanos que fizeram meus dias lá mais fáceis e divertidos. Juju, a moça que trabalhava na minha casa e o Zaca, motorista que prestava serviços para mim e o Alex. Vou contar o impacto que foi quando cheguei lá ao saber que eu deveria ter motorista. A empresa proporcionava esses dois recursos para todos os colaboradores, fazia parte do pacote de benefícios para quem trabalhava lá. O motorista acaba sendo um recurso muito importante, já que praticamente não existe transporte público em Luanda. As vans, que são conhecidas como “candongas”, operam um tipo de transporte quase ilegal e totalmente irresponsável. Ao qual o governo finge que não vê.

As pessoas utilizam carro massivamente, o que torna as ruas da cidade um caos, já que regras de trânsito não são propriamente cumpridas. A polícia, que fiscaliza as ruas infelizmente é extremamente corrupta e os estrangeiros que dirigem acabam sendo iscas fáceis para eles conseguirem algum tipo de suborno. Dessa forma para evitar problemas com os colaboradores estrangeiros boa parte das empresas que contratam estrangeiros preferem proporcionar motoristas locais. Isso acaba não sendo tão ruim, pois gera mais empregos para os moradores locais.

Imbondeiro, árvore símbolo de Angola e que dá origem a fruta Mucua, amplamente popular e tradicional

Demorei a me acostumar com alguém me carregando para cima e para baixo, mas em pouco tempo vi, que para a maioria da população isso era um trabalho muito bem vindo, afinal é melhor do que ficar vendendo coisas na rua, por exemplo, sob um sol de mais de 40 graus. Logo que cheguei ao prédio onde morava, todos os dias eu era abordada por alguém perguntando se eu já tinha empregada ou motorista, pois eles sempre tem um amigo ou familiar para indicar. Na cabeça deles a lógica era bem simples, se é estrangeiro aqui precisa de álguem para trabalhar para ele. E esses empregos como disse acabem sendo bem vistos, pois proporcionam condições melhores de trabalho, do que a irregularidade que impera nas ruas.

Outra lição aprendida em Angola foi sobre o sentido de comunidade, eles tem uma irmandade muito grande entre eles, sempre se ajudam, não interessa o parentesco, o grau de amizade. Angolanos sempre tem um amigo/conhecido para realizar alguma atividade, um emprego, um trabalho pontual, o que você precisar e imaginar. A irmandade entre eles é algo incrível e que eu ainda não presenciei em outra sociedade.

O Zaca e a Juju me ensinaram muito sobre a cultura angolana, hábitos locais, tradições e até mesmo sobre comportamento. A Juju, principalmente, foi minha companhia quase diária até eu começar a trabalhar. Na época em que eu estava lá ela tinha 27 anos, 4 filhos, casada com um professor primário. Com eles viviam mais duas crianças, que eles resolveram assumir porque estavam necessitadas. Além de trabalhar comigo 3 dias por semana, ela trabalhava outros 2 dias em outra casa e a noite ela estudava em uma espécie de supletivo que a igreja Adventista proporciona lá através de voluntários. Tudo isso somado ao fato de que qualquer simples deslocamento em Luanda usando as candongas pode levar de 2 a 3 horas ou até mais, percorrer singelos 20km naquela época poderia levar até 3 horas dependendo do horário.

Muitas vezes me perguntei como que uma pessoa que já tem uma situação super complicada de vida, ainda assume a responsabilidade de criar mais duas crianças e ter que dividir o pouco que eles tinham. Mas isso também foi algo que aprendi lá, que sempre se tem um pouco mais a dividir, por menos que se tenha. Eu nunca a vi reclamar de nada, de todo o peso que ela carregava, de todas as responsabilidades, da falta de sono. No olhar da Juju eu sentia a esperança, o desejo que ela carregava de ver seu País prosperar, de ver seus filhos crescerem vivos e terem uma infância normal.

O famoso e vibrante sol vermelho de Angola

Até então meu contato com angolanos estava muito restrito à essas duas pessoas e algumas interações nas ruas, academia, lojas, restaurantes, etc. Ainda não tinha embasamento suficiente para análises mais profundas. Foi quando comecei a dar aulas que eu tive a alegria de poder entrar um pouco mais na vida das pessoas e ter um pouco mais de tempo de conhecer um sobre a essência desse povo.

Como já destaquei anteriormente a alegria do povo Angolano é sem sombra de dúvida uma das características mais marcantes e que eu continuei presenciando durante as minhas aulas. Aqui vou fazer um parêntese para explicar um pouco o contexto social de Angola. Eu fui contratada por uma empresa de treinamentos portuguesa para ministrar aulas de marketing, vendas, atendimento, etc através deles. Algumas dessas turmas eram abertas, pessoas pagavam e se inscreviam, mas boa parte delas eram “in company”, de acordo com a necessidade das empresas.

Como Angola de forma geral ainda é um País carente de profissionais qualificados e com ensino superior. Somente recentemente que as faculdades e escolas começaram a ser mais acessíveis à população, mas mesmo assim ainda é muito caro e difícil para eles terem acesso. Essa falta de mão-de-obra qualificada fazia com que no passado as empresas trouxessem levas de estrangeiros para desempenharem essas atividades, mantendo os angolanos somente em trabalhos super básicos, como motoristas, serventes e operações simples.

Mas a realidade é outra agora, o governo começou a criar algumas leis que tentam proteger o trabalhador angolano, ou seja, empresas tem que ter um percentual X de locais versus estrangeiros. O País vive uma recessão complicada devido ao preço do barril de petróleo que ficou muito barato nos últimos anos. Como consequência não tem reserva de divisas para converter a moeda local em dólar para poder operar transações bancárias, por exemplo. Essa soma de fatores, entre outros, fez com que a farra de empregar estrangeiros diminuisse, mas em contrapartida a população continua crescendo, tem gente ascendendo socialmente e querendo consumir, a economia local continua emergindo. Ou seja, as empresas precisam de pessoas a qualquer custo para manter a engrenagem rodando.

A cidade de Luanda é uma constante construção, em dois meses um bairro pode estar completamente diferente do mês anterior. Infelizmente isso não alcança todas as parcelas da população que são cada vez mais empurradas para as zonas mais pobres, como em geral acontece em países de terceiro mundo. Como brasileiros conhecemos bem essa realidade.

Aí entrou o meu papel, treinar pessoas das mais diferentes origens de acordo com a necessidade daquela empresa que estava me contratando. O resultado eram turmas de gestão de atendimento, por exemplo para um banco estatal, onde quase toda a turma era formada por ex-motoristas, serviços gerais, algumas pessoas com experiência de balcão, outros com experiência cuidando de crianças, etc. Não preciso mencionar aqui o tamanho do desafio. Pois não se tratava somente de ministrar o treinamento e sim de elevar minha capacidade de me colocar no local daquelas pessoas e fazer com que elas saíssem dalí com algum conhecimento que pudessem aplicar na seu cotidiano e as destacassem nas suas atividades. Um desafio que vai muito, mas muito além do que aprendemos nos livros e na teoria.

Vista de cima do centro de Luanda

Hoje posso dizer que o tamanho do desafio foi igualmente proporcional à alegria e felicidade que me trouxe ter tido essa oportunidade em Angola. A cada turma que eu encerrava eu aprendia um pouco sobre esse povo. E rapidamente eu aprendi também que angolano é por natureza um empreendedor nato. A primeira coisa que eles fazem quando conseguem um emprego um pouco melhor é empreender. Ministrei uma turma de táticas de negociação para um grupo da maior empresa de diamantes de Angola, um dos maiores consórcios mundiais de exploração de diamantes. Para se ter ideia do tamanho essa empresa é dona da quarta maior mina de diamantes do mundo.

O grupo por consequência era um pouco mais qualificado, pessoas que já estavam há 20 anos na empresa. Alguns que tinham tido a chance de através da empresa buscar o ensino superior em outros Países como Portugal, por exemplo. Nessa turma boa parte dos alunos tinham uma segunda atividade empreendedora fora do horário comercial. Uma das alunas era dona de um salão de beleza epecializado em cabelos afro naturais, sem apliques ou qualquer tipo de química. Outro aluno estava no mercado de carros, muitos deles envolvidos com vendas, restaurantes, enfim atividades diversas.

Praia de Cabo Ledo famosa por ser a preferida para quem quer praticar surf próximo à Luanda

Eu não tenho conhecimentos antropológicos e sociais suficientes para entender a razão dessa natureza empreendora que tanto me chamou a atenção. Na minha modesta opinião tem a ver com o sentido de sobrevivência, desde muito jovens e em um passado não muito distante esse povo tinha que literalmente travar uma batalha diária para viver. Sair para a rua de dia para batalhar o jantar da noite e torcer muito para não morrer em uma das tantas guerras civis recentes. Acho que esse espírito permanece com eles e faz com que enxerguem oportunidades, onde talvez a maioria enxergasse problemas.

Obviamente um País que cresce em alta velocidade e com algumas dificuldades de acesso se torna um País de demandas. A demanda por determinados bens de consumo em Luanda é muito alta, o que faz com que a proliferação de novos negócios seja evidente. Eu posso falar por minha experiência, foi a época da minha vida em que mais tive ideias. A criatividade aflora ainda mais quando se chega lá tendo tido contato com outras realidades e ao ver as oportunidades latentes que o país tem.

Miradouro da Lua, que fica entre Luanda e a praia de Cabo Ledo. Uma formação rochosa e arenosa completamente diferente do restante da biodiversidade local. Uma paisagem muito bonita de se presenciar pessoalmente

Eu pude presenciar isso nas ruas, onde o pessoal vende de tudo que se possa imaginar até animais de estimação. Na falta de um isopor ou caixa térmica para vender bebidas geladas no congestionamento um saco plástico super resistente ou de lixo com gelo atende a necessidade. Para os que preferem café no congestionamento de manhã cedo, problema solucionado: carregue as garrafas térmicas com café nas costas em uma mochila e venda café servidos em copinhos térmicos. Na falta de um carrinho de mão para carregar as coisas, vi alguns construídos de madeira e pedaços de metais velhos. Na necessidade de ir para a rua vender e não ter com que deixar o filho pequeno, as mulheres os carregam nas costas.

Mulheres vendendo frutas e vegetais na beira da estrada. Elas são conhecidas como “zungueiras”, algo como o nome camelôs no Brasil. A diferença é que em Angola essa é uma atividade majoritamente feminina.

Para qualquer lado que você olhe o instinto de sobrevivência grita, mesmo para mim que sou brasileira e no quesito sobrevivência temos alguma experiência. Nada se compara ao que vi e vivi nas terras angolanas. Foi uma imersão e tanto em uma cultura que em muitos momentos pude ver familiaridades com a nossa, mas que sobretudo cresce, emerge e tem muito potencial. Infelizmente não preciso comentar aqui que a corrupção é o grande fator que impede-os de se tornar uma potência. Se achamos que a corrupção no Brasil é alarmante, lá ela chega em todas as pequenas esferas da vida em sociedade.

Angola marcou muito a minha vida, eu tenho plena certeza de que sou uma pessoa muito melhor e mais grata, depois da minha vivência lá. Profissionalmente o saldo foi ainda maior, pois eu vi como compartilhar conhecimento pode ser algo tão transformador. Até hoje tenho na memória o email que recebi de um dos alunos ao final do primeiro treinamento que ministrei dizendo que ele estava muito feliz com o conhecimento adquerido no primeiro curso que ele fazia na vida.

Foi lá talvez que eu tenha realmente entendido que ser “bem educado” e cordial não tem a ver com o quanto você estudou e sim com o quanto você se importa com as pessoas. Já que como mencionei anteriormente, angolanos de forma geral sempre dão bom dia, boa tarde, perguntam pela família, querem saber de você, etc. Eu sei que algumas pessoas serão da opinião de que esse comportamento tem a ver com a relação de querer algo em troca, de ser “puxa-saco”, como geralmente falamos no Brasil. Eu discordo, eu acho que tem a ver com o fato de se importarem mesmo, de valorizarem como você está.

A África é um continente muito vasto, diverso, imensamente rico, sei que pode parecer clichê, mas é isso mesmo. Cada País tem uma diversidade natural e um povo com culturas e tradições diferentes. Eu não tenho dúvidas do potencial Africano, como profissional de marketing e pensando no capitalismo não tenho dúvidas de que o futuro virá de lá. Países com populações jovens, com alta capacidade de empreender e com muita vontade de consumir, mas infelizmente ainda com governos caóticos.

Do ponto de vista pessoal e profissional eu não poderia ter sido mais grata à tudo que Angola me proporcionou. Para todos que buscam uma experiência totalmente “fora da caixa” como está na moda dizer, ou para quem quer sair da zona de conforto é realmente algo muito efetivo. Hoje concluo que Angola foi o estágio que eu precisava para o passo posterior que daria na minha vida, que foi a mudança para a Irlanda.

Outros textos sobre Angola publicados anteriormente no blog.

Como e porque eu acabei dando aulas no Brasil e em Angola

Um pouco de Angola: Museu da Escravatura e Ilha do Mussulu

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Suellen Machado, a Brazilian living in Ireland, a journalist by degree, marketing for a living, a traveller when I can, and an occasional writer.