Texto #Um: Ambientação e Rotina

Chrysologo Neto
Revista Passaporte
Published in
6 min readMar 29, 2020

Uma breve história

Esse é o segundo texto de uma série que idealizei e dei início a quase 2 anos atrás. É engraçado. Na época, repleto de motivação, dei o primeiro passo achando que todos os outros viriam com o mesmo fervor. Um grande (e presunçoso) erro derrubado pela impermanência.

A motivação oscila, como tudo ao nosso redor, e durante esses passados 2 anos me perguntei diversas vezes o porquê de nunca ter finalizado esse projeto. Hoje, um pouco mais calejado pelo Samsara vejo o quanto é, e sempre será, difícil ter coragem de se expor. Na escrita. Em fotos. Na fala.

Rompendo essa barreira, em convergência com o momento de expansão que vivo atualmente, decidi finalizar esse projeto e publica-lo por inteiro, de uma vez por todas e, quem sabe, motivar aqueles que já me deram esse voto de interesse.

Dando sequência, esse texto falará sobre meu primeiro dia com detalhamentos sobre a comunidade e da prática, dando enfoque na ambientação e na rotina que a partir desse dia comecei a fazer parte.

Quem está começando por esse texto, clica aqui para conferir o Texto #Zero e ter uma introdução da sequência que descreve a ideia no geral e explica o que será visto daqui pra frente até o último texto.

O Acordar no Retiro

Caminho e Iluminação

Tenho que confessar. Acordar as 5h da manhã exige muita força de vontade, isso não é novidade pra ninguém. Mas ver o sol nascer e ir sentar a bunda em uma almofada para tentar domesticar sua mente meditando, exige realmente a sabedoria de um Buda.

Isso deixou óbvio que não larguei o travesseiro antes das 7h. Aqui no Caminho do Meio (CM), a rotina de práticas budistas começa cedo: as 5h30 temos meditação, logo na sua cola, das 6h30 às 7h20, temos o misterioso Puja. Espero que ele não permaneça uma charada até o final do retiro.

Depois de acordado, limpo e bem alimentado, comecei a minha participação como voluntário visitando com a Taís as casas dessa linda comunidade em busca de um multímetro e um ferro de solda. Por que isso me faria voluntário? Todo lugar tem cabos quebrados a serem consertados e aqui, nesse pequeno céu alternativo, não seria diferente.

Lógico, tudo isso serviu de pretexto para mais exploração nesse território zen.

Comunidade Budista

A Comunidade do CEBB conta com mais de 130 moradores, os quais a grande maioria é budista. Muitos desses moradores sedem e alugam quartos pra quem tem vontade de vir passar um tempo se autoconhecendo por meio do Budismo.

Ambiente de entrada próximo ao refeitório, usado como espaço de convivência construído com a ideia de “Telhado Verde”

Uma das coisas legais de se ressaltar é como essas pessoas convivem como uma grande família [ ̶f̶o̶d̶i̶d̶a̶m̶e̶n̶t̶e̶ ] amorosa. Toda família tem seus problemas, mas essa (pode até ser idealismo meu), não parece ter. Conversando com a Denise, a gaúcha mais porreta que já conheci, ela diz que aqui esse amor todo é fruto do Darma. Para a surpresa da vossa senhoria, isso eu — acho — que sei explicar o que é.

No sentido prático da coisa, o Darma é o caminho para se chegar a iluminação. Sem misticismo, se trata dos ensinamentos deixados pelo nosso querido Buda, Sidarta Gautama. Aproveitando que o citei, gostaria de esclarecer que ele não era gordinho. A propósito, quase morreu de magreza. Mas isso não vem ao caso, continuemos.

Essa vida comunitária conta com pessoas dos mais diversos nichos: Engenheiros, Professores, Músicos, Agrônomos, Físicos e qualquer profissão que você possa imaginar. Isso torna o CM quase uma comunidade autossuficiente em vários sentidos.

Outro ponto legal é a estrutura para os moradores. Essa CEBB conta com uma escola para crianças de 1 a 10 anos, templo para as práticas e ensinamentos, sala de meditação, refeitório com refeições diárias e Wi-Fi, lavanderia coletiva e uma quadra poliesportiva em construção. Uma vida completa pra quem não chora de saudades pelo Burguer King.

Ao passear pela comunidade é impossível não se encantar com todo o cenário Kung-Fu ao redor. Trilhas de mata densa entre as casas, com algumas estradas bem definidas e de nomes pomposos como “Estrada da Gratidão”. Impossível não viver em paz. Casas sem muros, apenas cercas e belos portões de madeira ao estilo oriental. Cachorros, gatos, pássaros, abelhas e aranhas por todo lugar. Nem todos amam todos esses bichanos, mas é de comum acordo que todos devem viver. Isso também inclui as queridas aranhas.

As abelhas trabalhando pela manhã

Uma observação legal sobre as residências que, além de muito belas
arquitetonicamente, a grande maioria possui um terceiro andar ou algum espaço destinado a arte e meditação. Um ateliê, um espaço zen para o autoconhecimento e, quase que de praxe, um pequeno altar budista. Caso
você esteja se perguntando se eu fiquei brechando esse povo, você está
completamente certo. Não foi fácil parecer que não estava querendo
cometer um assalto.

Casas que foram “brechadas” na minha caminhada matinal (espero não ser processado)

Ao terminar essa visita, constatei que antes dos 25 anos quero estar morando aqui. Nesse lugar sinto que o tempo é eterno e não me devora como em todos os dias da minha vida. Sei que o relógio não para, mas parece parar.

E se você que está lendo esse texto também se sentiu atraído por esse cenário de paz oriental, me mande um e-mail, vamos ver as possibilidade para construir um espaço aqui na comunidade (estou falando sério). Só são necessários dois pré-requisitos: gostar de chimarrão e, pelo menos, simpatizar com o budismo. Eu sei, é difícil gostar de chimarrão, mas depois que se pega gosto…

Falando de Budismo

Hoje, além de consertar cabos, lavar bancos e ir ao centro de Porto Alegre, sentei minha bunda as 19h e participei, mais uma vez, do famigerado Puja. Foi exatamente a mesma coisa de ontem. Templo, alguém guiando, preces e agradecimentos. Na teoria. Na prática fui além.

Não sei se essa é a intenção dela, mas durante a leitura de uma das preces tive um insight profundo sobre os caminhos da vida e como as coisas são completamente mutáveis e impermanentes. Não pense que é uma chuva de insights, senti sono em alguns momentos, mas gostaria de deixar claro o momento que entrei em reflexão.

Como já expliquei, lemos ensinamentos que estão explicados nos chamados Sutras, e ao terminar o famoso Sutra do Coração é cantado o seguinte mantra (em sânscrito):

Gate Gate Pāragate Pārasaṁgate Bodhi svāhā

“Foi, Foi além (para a outra margem), foi completamente para a outra margem, Iluminação, quão maravilhosa!”

Mesmo sendo uma tradução encontrada no Wikipedia, quando a vi, fez todo sentido para mim quando analisado o que senti no momento da recitação. Sabendo que o Sutra do Coração aborda a vacuidade e a forma, é possível refletir a respeito do que na nossa vida é de fato permanente e qual a necessidade de nos apegarmos a tantas coisas fúteis e a circunstâncias que não temos o menor controle.

Sei que são muitos termos não explicados, interpretações incompletas e coisas que levam você a crer que sou um Wikipedia Fan. Mas a intenção é essa. Cativar a dúvida e construir a sensação crua de ser budista pela primeira vez.

E-mail: chrysologo@outlook.com

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Chrysologo Neto
Revista Passaporte

He’s an overthinking guy and has dreams toward music production, alternative lifestyle and skateboard. He’s vegetarian, buddhist and almost a lier, almost.