Ano Novo, velho amigo

Renata Bastos
Perdi o sono e escrevi
3 min readJan 1, 2022

Autoria: Renata Bastos

Ele chegou, mas esvaziou a mochila pelo caminho. Tanta responsabilidade, coitado! Ter nas mãos recomeços, promessas, tempo. E não se engane, também desejou. Sonhou com olhares mais leves, corações abertos e vozes doces, mas daquelas, recheadas com coragem de fazer o bem. Um lugar onde todos fossem aceitos, assim imperfeitos como faz mais sentido. Como um quebra-cabeça, assimétrico, por natureza complexo e por convicção, quase, completo. Abriu-se como um livro em branco e deixou-se pronto para uma nova história. Era assim, sempre que ele chegava.

Foto: Renata Bastos

Tão esperado. Bebeu água. A garganta seca como o deserto arranhava e machucava na alma. Mas era de se esperar depois de um caminho tão longo e pesado. Tanta sede. Sede de mudança. Deitou-se no colo alheio, recebeu afagos de esperança, mas continuou sem entender o motivo de não ter sido convidado antes. Logo ele, que morava logo ali. A um estalar de dedos de distância. Que sempre se fez disponível. Tão desejada era a chegada dele que poderia fazer tanto, mas era sempre o último da lista mesmo quando o mais importante. Ignorou. Por um instante não teve certeza se deveria mesmo estar ali, mas sentiu na face um sopro fresco de realidade. Sabia que seu dever era, apenas, mostrar o caminho.

Recebido com tanta comida por uns, tantos “queros” e roupas novas. Fartura. Já outros, por audácia e azar do destino, nem um café tinham para lhe oferecer. Não era essa assimetria que ele esperava. Mas esses sempre o aguardavam na sala. Sentados no sonho distante de um estômago em silêncio, sob um teto de estrelas, lâmpadas quentes como sol ou solitárias como a lua e portas desacreditadas por olhares desatentos, egoístas e apressados. Esquecidos no único cômodo de uma casa sem donos e com paredes sem limites. Os tijolos eram imaginados, mas nunca chegaram nesse lado da cidade. Também convidaram Deus, mas imaginavam se ele não estaria ocupado demais nos prédios altos com sacadas voltadas para os “eus” e com mesas cheias de frutas que posavam para fotos e que, quando cansadas, descansavam sob a sombra do exagero. Para esses, a solta de fogos vinha somente naqueles dias, raros, de barriga cheia. Quem sabe na próxima.

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Lá no alto daqueles prédios, ele quase passou despercebido. Até pareceu-lhe que tudo aquilo não era sobre ele. Lhe deram tanto para pôr na mochila vazia, mas ele sabia que muitos estavam ansiosos, afinal na última vez não havia tanto e nem tantos para comemorar. E na verdade, quando ele olhou para trás e para o agora viu que ainda havia um rastro de tristeza de Norte a Sul, mas um pontinho, ou melhor, uma picadinha de esperança se alastrava aos poucos. Ufa! Mesmo assim, ele não conseguia esquecer que para muitos o garfo e o prato continuariam sem função, guardados. Outros tiveram sonhos e toda uma história de vida levados pela chuva. Teriam estes não se esforçado ou rezado o suficiente?

Por onde ele passou pensou em pegar um pouco disso, daquilo e dividir nos lugares onde a falta ecoava mais alto, mas lembrou-se de que ele não tinha poder e que isso estava nas mãos daqueles que tanto esperavam por ele, mas por que poucos estavam se movendo? Estavam todos ocupados, o problema não era deles. Ele então se voltou para aqueles vestidos com ternos caros, protegidos por casas grandes, intocáveis com seus salários cada vez mais altos, beneficiados como reis e implorou por ajuda, mas não era do interesse deles. Nunca foi. A esperança estava naqueles, comuns, sentados longe de palanques e perto dos seus. Aqueles despidos de qualquer sensação de hierarquia e que mesmo sem muito nos bolsos tinham mais do que intuitos.

Ele olhou para o relógio, a mochila agora estava pesada. Quase pesada demais. A meia-noite chegou, ele então seguiu seu caminho. Não tão contente como gostaria, mas com a esperança e a força de quem daqui alguns meses estaria de volta. E talvez com lembranças um pouco mais confortantes. Encheu os olhos com toda a coragem de quem não desistiria nunca. Partiu.

Quando ele passava pelo portão, uma senhora quase no fim da vida ofereceu a ele um café adoçado com a experiência que o tempo nas costas lhe proporcionaram. Lhe deu um abraço e se despediu sem muito.

Te vejo em breve! Ano Novo, velho amigo.

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