Para quem se sente mórbido

Falemos um pouco sobre o terror

Luísa Ferreira
Pilha de Livros

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por Luísa Ferreira

Por vezes, sentimo-nos mórbidos. É um facto que (quase) todos nós temos um animalzinho sinistro e sombrio aninhado no canto mais obscuro do nosso cérebro que precisa de ser alimentado. Os filmes de terror costumam ser a opção mais óbvia e é uma escolha que faço amiúde, mas a literatura de terror é uma alternativa igualmente adequada e satisfatória para quem gosta de nadar nas águas profundas do susto, do desconforto e da pele de galinha.

Já perdi a conta às conversas que tive e tenho com amigos sobre a verdadeira definição de terror, mas, pessoalmente, fracassei redondamente no momento de chegar a uma conclusão definitiva. Seja como for, não sou mulher de conclusões dogmáticas, portanto, adoro aqueles debates intermináveis a que voltamos de quando a quando, aqueles temas de conversa que não se esgotam. Além disso, e peço perdão pelo chavão irritante, é sempre gratificante ter uma mente aberta. Mas a verdade é que cheguei a uma conclusão em construção, uma quase-conclusão, se preferirem. O terror vai muito além de rainhas do baile de finalistas empapadas em sangue de porco ou campanhas pouco palatáveis contra hostels da Europa de Leste com um gostinho pela pornografia da tortura. Uma verdadeira obra de terror, seja um filme ou um livro, é aquele carocinho de treva que nos tira dos eixos e toca os nossos medos mais profundos. Talvez seja por isso que bocejo com o gore mas sou incapaz de ver o “Brincadeiras Perigosas” ou tenha sentido medo a sério com “O Senhor Babadook”.

Mas estes são exemplos cinematográficos, e estamos aqui a falar de livros. Quando encontramos aquele livro de terror que não conseguimos pousar, é uma alegria indescritível. Sim, porque um filme acaba em duas horas, mas a leitura de terror é um prazer mais lânguido e demorado, é o medo sem pressas. Já li muitos livros de terror que me agradaram, — o Stephen King é, regra geral, uma aposta segura — mas apenas uma mão-cheia de autores e romances conseguiram conquistar verdadeiramente o meu coraçãozinho tenebroso. Vou apenas mencionar três, o meu ridiculamente pequeno e provisório top 3, e um deles nem sequer é considerado um livro de terror puro e duro. E os três bombons de chocolate bem amargo que partilham o pódio são: Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson, Deixa-me Entrar, de John Ajvide Lindqvist e a pérola de John Franklin Bardin que é Que o Diabo Leve a Mosca Azul.

Os dois primeiros não carecem de grande explicação para justificar porque são obras de terror basilares.

Eu Sou a Lenda é um romance genuinamente aterrador escrito de forma magistral que, além de nos fazer roer as unhas até ao sabugo, é tão prazenteiro como profundo, rico em temas de reflexão e em temor. Recordo-me do dia em que comprei o livro, ainda com a memória da inenarrável versão cinematográfica mais recente bem presente no cérebro. Mordi o lábio, li as citações de autores célebres que afirmavam que Matheson os tinha influenciado enormemente e pensei cá para comigo: “Levo ou não levo? Não julgues o livro pelo filme e leva, palerma.” Conclusão: comprei, deixei-o a marinar na estante durante uns tempos e, quando o comecei a ler, castiguei-me com uns beliscões mentais por não lhe ter pegado logo.

Quanto a Deixa-me Entrar, que muitos reconhecerão certamente da versão cinematográfica, é na minha humilde opinião uma das melhores histórias de vampiros de sempre, e isto porque é tão mais do que isso. John Ajvide Lindqvist é um autor com um talento muito específico; além de escrever lindamente, consegue transformar os chavões do terror como os vampiros ou os zombies em obras de grande profundidade e inteligência. E ficam já avisados, que eu não estou cá para ouvir queixas, além de criar uma narrativa atmosférica e destabilizadora, o autor faz sempre questão de incluir uma ou duas cenas que nos perseguem durante anos, garantido. E por isso, enquanto fã do terror, só tenho a agradecer ao autor sueco.

E agora, vamos ao terceiro romance da minha lista ridiculamente pequena, Que o Diabo Leve a Mosca Azul. O thriller psicológico de John Franklin Bardin deixou-me aterrorizada, até porque aborda um medo pessoal profundo: o medo de perder o tino e a noção da realidade. Não me vou alongar e estragar-vos a surpresa. Se ainda não leram esta maravilha, quero que vos surpreenda e delicie tanto como fez comigo. Limito-me por isso a dizer que é um verdadeiro diamante, uma pérola perfeita e, se não for perfeita como digo, perdoem-me, porque é assim que me recordo dela e é por isso que a recomendo vivamente, ainda com uma impressão na nuca só de pensar no livro.

Portanto, se estão a sentir-se mórbidos, peguem num bom livro de terror. Não há nada como este género para testar os nossos limites psicológicos em segurança e, nesse sentido, a literatura de terror, tal como o cinema de terror, atinge na perfeição um dos objetivos da ficção: permitir ao leitor jogar com as suas emoções, ser testemunha de situações e realidades que tanto lhe podem ser familiares como totalmente estranhas e, assim, aprender algo sobre si e sobre os outros.

E, claro, permite-nos mergulhar nas trevas por interposta pessoa, sem termos de sujar sequer os pezinhos, além de nos fazer o enorme favor de nos entreter enormemente.

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Luísa Ferreira
Pilha de Livros

Leitora, tradutora, legendadora e a dar os primeiros passos na escrita sobre livros. Avid reader, translator, subtitler and now modestly writing about books.