Quando não gostamos do que “devíamos” gostar

Dos pesos na consciência e da libertação

Luísa Ferreira
Pilha de Livros

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por Luísa Ferreira

Há muitos autores universalmente apreciados, louvados, e muito bem, pela sua inegável qualidade literária, pelo seu contributo para a cultura e para o pensamento, e pela marca indelével que deixaram ou que estão a deixar no mundo da literatura. Sim, são bons, mais do que isso, são excelentes, mas isso não significa que tenhamos de gostar deles. Ao longo de muitos anos, tentei gostar de alguns grandes autores e fracassei epicamente, para meu grande desgosto; é-me simplesmente impossível gostar de ler Jane Austen, Ian McEwan ou George Orwell. De facto, quando li o aclamado clássico 1984 de Orwell, a rejeição manifestou-se quase a um nível físico. O romance tinha tudo para me agradar, do tema aos ideais que defende, mas fui incapaz de retirar qualquer prazer da leitura e desde então que não voltei a pegar noutro livro do autor.

A frustração foi terrível, como era possível não gostar de Orwell? O que se passava comigo? E o que fazer quando não gostamos de autores ou romances de que “devíamos” gostar? Aceitá-lo. Aceitar o facto e preparar-nos para ser os alvos de expressões atordoadas ou horrorizadas quando dizemos abertamente que não apreciamos um autor estimado ou um clássico adorado. A verdade é que muitas pessoas não compreendem que é perfeitamente possível não gostar de um autor ou, melhor dito, da sua escrita, e mesmo assim reconhecer o seu valor e respeitar o seu génio. Não passa de uma questão de gosto pessoal e de sensibilidade e, no que toca a isso, vale tudo. Não há problema absolutamente nenhum se temos uma relação complicada com um autor aclamado, como as que mantenho com Murakami ou com o “Nobelizado” José Saramago. Repito, não há mal nenhum nisso, nem nos caem os parentes na lama.

Mas então, se não há mal nenhum, porque tantos de nós sentem a ferroada da vergonha e chegam mesmo a ver este desapreço como uma falha pessoa? A única resposta que encontro para esta pergunta existencial é que se trata de uma questão de crescimento e amadurecimento, tanto como leitor como a nível pessoal. À medida que envelhecemos, ou melhor, vamos acumulando experiências, que é uma forma mais agradável de pôr a coisa, a nossa autoconfiança e auto-conhecimento crescem connosco e aprendemos a aceitar o que não conseguimos mudar. Percebemos que temos o direito de não gostar de coisas que são universalmente amadas e de adorar livros que provocam nos outros um revirar de olhos ou um ressonar jocoso. Mas, no fundo, é também nisso que se baseia a literatura e a arte em geral: liberdade e sensibilidade individual. O gosto pessoal é bicho que não gosta de regras e, desde que não tiremos o respeito da equação, tudo é permitido.

Contudo, na mesma medida em que não somos obrigados a gostar seja do que for, também não será sensato impor limites à nossa vida literária e darmos por nós encurralados. Quero com isto dizer que, por vezes, acabamos por ficar a perder depois daquele primeiro encontro literário desastroso. Por exemplo, se tivesse dado com os pés ao Murakami depois do primeiro romance que li, e que abominei, não teria lido A Sul da Fronteira, A Oeste do Sol, que adorei. E, quem sabe, é bem possível que dê outra oportunidade a Orwell — ah, a generosidade! — um dia destes, talvez quando for mais crescida, mais sensata e paciente, e talvez me agrade… ou não. Depois fazemos um update, se e quando ganhar coragem.

Portanto, toca a aproveitar bem a liberdade literária, gostem do que gostam e não gostem do que não gostam. Pouco importa se o vosso gosto pessoal vai contra todas as convenções, cânones e leituras “obrigatórias”, desde que sejam leitores felizes. Há demasiadas maçadas na vida para transformar o prazer da leitura noutra chatice.

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Luísa Ferreira
Pilha de Livros

Leitora, tradutora, legendadora e a dar os primeiros passos na escrita sobre livros. Avid reader, translator, subtitler and now modestly writing about books.