Ainda na era do amor que não ousa dizer o nome

ou daqueles que não querem ouvir a voz do nosso amor

Sandro Aragão
Pirata Cultural
5 min readDec 18, 2018

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“amor e sexo entre pessoas do mesmo sexo se passa na maioria das sociedades na sombra da marginalidade ou no invisível da privacidade do segredo” (Sapê Grootendorst, 1994)

“Sandro, se você quiser, pode levar o seu amigo”.

Acredito que essa ainda seja uma frase comum para parte dos gays, já que o afeto público, e principalmente para a família, parece ser algo proibido — ou para me utilizar de eufemismo, aparentemente os parentes não achariam de bom tom.

O que me fez pensar nesse assunto foi um impasse que tive com G.S., rapaz que conheci tempo atrás, e por quem carrego grande afeto. Nós moramos a duas ruas de distância, então as vezes combinamos de nos encontrar pelo bairro. Porém, todas as vezes que ele veio à minha casa, e eu à dele, foi de forma “escondida”. Ter percebido isso fez eu me perguntar o porquê de me sentir tão paralizado ao pensar na possibilidade de trazê-lo aqui com a presença de minha família.

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O primeiro namoro que tive surgiu de uma grande amizade. W.B. frequentava muito a minha casa. Conversávamos sobre muitas coisas, até o dia que tive coragem de me abrir para ele sobre minha sexualidade. Meses depois foi ele quem me expôs às dúvidas que tinha sobre ser ou não gay. Nesse movimento acabamos atando em um namoro. Minha mãe descobriu nossa relação por acaso, ao ver W.B. sentado em meu colo — inclusive, lembro da nossa surpresa por ela ter tido uma reação boa quanto a descoberta — . Ao contrário, para o resto de minha família, nunca disse nada. Provavelmente eles desconfiavam, mas o título de W.B. foi sempre o de “amigo” do Sandro.

Já meu segundo, e último namorado até então, nunca levei à minha casa. Como também nunca cheguei a dizer para os membros da família que estava em uma relação. A.R. tinha o desejo de conhecer ao menos minha mãe, mas nunca tive coragem para propiciar esse encontro. Quando nossa relação terminou, lamentei não ter tido coragem suficiente.

Relembrando esses episódios, pude perceber um fio condutor dentre todas as relações que tive até aqui: permitir que minha família conhecesse de forma aberta minhas relações de afeto era entendida inconscientemente por mim como uma ação proibida. O mais irônico é que para amigos ou desconhecidos sempre fiz questão de deixar claro com quem eu saía, mas para aqueles que me viram nascer, essa parte da minha vida sempre se manteve em segredo. E isso, por mais triste que seja, não é uma condição individual minha. Tenho dezenas de amigos que sentem o mesmo — claro, resguardando a individualidade de cada um.

Bem, talvez você possa tá se perguntando: já que você se deu conta disso, porque, então, não enfrentar esse medo? De imediato a resposta que me vem é: porque não me sinto completamente aceito — caso você tenha interesse, eu escrevi um texto que aborda melhor o assunto do se sentir aceito dentro da família: “O que nos faz sentir realmente aceitos?”. Obviamente eu sei que é uma resposta muito generalizada, porém acredito que seja a partir desse sentimento que surge todos os desdobramentos da hesitação em apresentar para família um parceiro amoroso.

Photo by Jordan McDonald on Unsplash

No meu caso, esse sentimento de medo quanto a (im)possibilidade de trazer, ou falar, sobre um possível namorado me faz sentir como seu eu fosse menos parte da família do que meus primos hetéros. Isso, inclusive, me faz ter a sensação de que o meu modo de amar é negado por eles, e que está sendo cotidianamente silenciado. Não é incomum você ouvir de um amigo gay que quer morar sozinho para ter mais privacidade, enquanto seu primo/prima, imão/irmã hetero vive levando a namorada/o para dentro de casa, tendo toda privacidade que você só vai conquistar quando sair de casa.

Nesse sentido, talvez, a pergunta que deva ser feita agora é: o que exatamente nos faz sentir assim? De modo muito rápido me vem uma lembrança: eu estava com meu primeiro namorado na casa de minha vó (lembrando que para minha família ele era tratado como amigo). O pus deitado em meu colo. Minha vó entrou no quarto, nos olhou de forma estranha e saiu sem dizer nada. Dias depois a ouvi falar com minha mãe sobre nós dois, como se estivesse alertando-a sobre uma condução errada minha. Ou seja, ela estava repreendendo a possibilidade de eu demonstrar afeto por outro rapaz, pura e simplesmente por sermos dois homens. Dessa forma, fiquei imaginando como esse tipo de lembrança — e, obviamente, esse tipo de ação por parte dos familiares — pode ser extremamente nociva para a construção da nossa subjetividade quanto ao desejo/coragem de apresentar um namorado para família: o lugar onde deveríamos nos permitir ser exatamente como somos se torna um espaço de desconforto, de mascaramento, de relações rasas nesse âmbito.

Mas então, diante de todas essas reflexões, o que devemos fazer? Eu não escrevi esse texto com a intenção de dizer se é errado ou não esconder a vida afetiva da família, assim como não estou aqui para enconrajar ou desencorajar a quebra dessa barreira. Minha intenção é causar reflexão, pois acredito que, independente de nossas escolhas, nós temos que ter clareza e senso crítico quanto as nossas ações para convivermos o melhor possível com elas.

Agora, quanto a mim, não sei se algum dia irei me sentir confortável suficiente para apresentar um namorado para meus familiares. Mas, enquanto isso não acontece, continuarei vivendo minha vida afetiva da forma que me é possível, e até onde minha liberdade alcança, tentando, a cada dia, ter menos medo de ousar a dizer o nome de meu amor.

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Sandro Aragão
Pirata Cultural

Professor de Língua Portuguesa, doutorando em Teoria Literária, fotógrafo e mais algumas coisas que não dá para dizer em 160 caracteres.