O diálogo de Antonius Block com a Morte — O Sétimo Selo

Bruno Oliveira
Pirata Cultural
Published in
5 min readApr 13, 2020

Max von Sydow foi derrotado pela Morte, definitivamente. O famoso ator sueco que atuou em diversas produções, inclusive em Game of Thrones, morreu em 2020, ficou imortalizado por seus papéis em O Exorcista e principalmente nos filmes de Ingmar, como o Sétimo Selo.

Sinopse do filme O Sétimo Selo — Suécia, Idade Média. Um cavaleiro, após as cruzadas, embora tenha lutado pela cristandade, tem dúvidas sobre a existência de Deus. A peste devasta o país, e, em meio ao ambiente de pessoas condenada à fogueira, acusadas de bruxaria, ao invés de se encontrar com Deus, se depara com a morte em carne e osso. O cavaleiro, para ganhar tempo, desafia a morte para uma partida de xadrez, com quem mantém profundos diálogos sobre o sentido da vida.

Antonius Block conversa com a Morte sobre suas angústias, Deus e o aparente sem sentido da vida — 04m30s de muita profundidade filosófica

O sétimo selo tem alguns dos diálogos mais memoráveis da história do cinema, e é justamente de Antonius Block (personagem de Sydow) com a morte. Será que alguns anos depois, a conversa foi exatamente assim? Vejamos duas partes desses diálogos:

1ª Cena — Encontro com a morte.

[Cavaleiro] Quem é você?
[A morte] Sou a morte.
[Cavaleiro] Veio me buscar?
[A morte] Ando com você há muito tempo.
[Cavaleiro] Eu sei.
[A morte] Está preparado?
[Cavaleiro] Meu corpo está, mas eu, não.
[A MORTE AVANÇA]
[Cavaleiro] Espere!
[A morte] Está bem, mas não posso adiar.
[Cavaleiro] Você joga xadrez?
[A morte] Como sabe?
[Cavaleiro] Eu já vi nas pinturas.
[A morte] Posso dizer que jogo muito bem.
[Cavaleiro] Não é mais esperto do que eu.
[A morte] Por que quer jogar comigo?
[Cavaleiro] Isto é problema meu
[A morte] Está bem.
[Cavaleiro] Se eu vencer, viverei. Se for xeque-mate, me deixará em paz.[Sorteando a cor das peças diz]: Jogue com as pretas.
[A morte] Bem apropriado, não acha?

Em meio a uma sociedade devastada pela peste, o nosso cavaleiro tenta entender o sentido da vida (e da morte) através da racionalidade (e daí vem o simbolismo do jogo de xadrez). No final, esses questionamentos o leva até o ponto central sobre espiritualidade e religiosidade, ele tenta buscar ajuda em Deus decadente, que já não vem. A existência do divino, ou até mesmo do diabo, parece não fazer mais tanto sentido, aparecem apenas na forma de charlatões e a peste assume apenas a perspectiva de opressão.

Albert Hammond Jr. também joga xadrez com a morte e faz referência ao mestre sueco em seu videoclipe

3ª Cena — Confissão. Encontro com a morte em uma capela.

[Cavaleiro] Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e sinto repugnância e medo. Pela indiferença ao próximo, fui rejeitado por ele. Vivo num mundo assombrado, fechado em minhas fantasias.
[A morte] [DISFARÇADA] Agora quer morrer?
[Cavaleiro] Sim, eu quero.
[A morte] E pelo que espera?
[Cavaleiro] Pelo conhecimento.
[A morte] Quer garantias?
[Cavaleiro] Chame como quiser. É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não tem? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que Ele vive em mim de uma forma humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser uma falsa promessa eu não consigo ficar livre? Você me ouviu?
[A morte] Sim, ouvi. (A morte se vira, para não ser reconhecida).
[Cavaleiro] Quero conhecimento, não fé ou presunção. Quero que Deus estenda as mãos para mim, que mostre seu rosto, que fale comigo. Mas Ele fica em silêncio. Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve.
[A morte] Talvez não haja ninguém.
[Cavaleiro] A vida é um horror. Ninguém consegue conviver com a morte e na ignorância de tudo.
[A morte] As pessoas quase nunca pensam na morte.
[Cavaleiro] Mas um dia na vida terão de olhar para a escuridão.
[A morte] Sim, um dia.
[Cavaleiro] Eu entendo. Temos de imaginar como é o medo e chamar esta imagem de Deus.
[A morte] Está nervoso.
[Cavaleiro] A morte me visitou esta manhã. Jogamos xadrez. Ganhei tempo para resolver uma questão urgente.
[A morte] Que questão?
[Cavaleiro] Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem sentido ou ligações. Uma vida sem sentido. Não falo isto com amargura ou reprovação como fazem as pessoas que vivem assim. Quero usar o pouco tempo que tenho para fazer algo bom.
[A morte] Por isso jogou xadrez com a morte?
[Cavaleiro] Ela tem táticas inteligentes, mas até hoje não perdi para ninguém.
[A morte] Como vencerá a morte no seu jogo?
[Cavaleiro] Tenho uma jogada com o bispo e o cavalo que ela não conhece. Quebrarei sua defesa.
[A morte] [MOSTRANDO SUA VERDADEIRA FACE] Lembrarei disto.
[Cavaleiro] Você é um traidor e me enganou. Mas nos encontraremos de novo, e eu acharei uma saída.
[A morte] Nos encontraremos e continuaremos nosso jogo.
[A MORTE SAI]
[Cavaleiro] Esta é a minha mão. Posso mexê-la. O sangue pulsa nela. O sol está alto no céu e eu, e eu, Antonius Block, jogo xadrez com a morte.

A morte veste-se de preto (e escolhe as peças pretas também)

No fundo, o cavaleiro sabe que não pode vencer a morte, ela é inevitável. Mas mostra que pode encará-la de frente, sem ter medo de reconhecer o sofrimento e a própria condição finita de nossa vida. Independente de religião ou da intervenção de qualquer Deus — o indivíduo reconhece a sua solidão em um mundo em que o espiritual se recusa a surgir, a morte já não é mais sobrenatural, ela está na sua frente e é corpórea. A vida só tem sentido, ainda que mínimo, porque um dia ela termina.

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Bruno Oliveira
Pirata Cultural

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.