O maoísmo português e o “anarco-trotskismo”

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11 min readAug 1, 2017

João Moreira

Este artigo insere-se na série Trotsky e o Trotskismo em Portugal. O primeiro artigo encontra-se disponível aqui.

Consequente do conflito sino-soviético, o fenómeno maoista português teve as suas raízes no seio do quadro dirigente do Partido Comunista Português (PCP) após Francisco Martins Rodrigues desencadear um processo de rutura política no início da década de 1960 e que culminaria na sua expulsão do partido no final de 1963. Distanciando-se das orientações alegadamente recuadas do PCP e alinhando-se progressivamente com a nomenklatura chinesa, Martins Rodrigues apontaria “a necessidade de uma revisão total da linha […] do partido que propunha a unidade com a burguesia liberal e o abandono da «aliança operário-camponesa»”. Segundo o autor de História de Uma Vida, a ação armada faria finalmente parte da nova etapa da luta dos trabalhadores contra o salazarismo — iniciada com o golpe de Beja em 1962 (Cardina, 2011: 37–39).

Fundada a Frente de Ação Popular (FAP) em 1964, o novo agrupamento político de Martins Rodrigues adotaria a orientação da Revolução Democrática e Popular que conteria como “tarefas” essenciais “Liberdade, Paz, Pão, Terra e Independência” (AP, nº 1, Junho 1964), ao contrário da orientação pela Revolução Democrática e Nacional, adotada pelo PCP no seu VI Congresso em 1965. A FAP seria o primeiro de inúmeros coletivos maoistas a atuar em Portugal nas décadas de 1960 e 1970.

Relativamente à utilização do termo trotskismo por parte destas organizações a situação é um pouco diferente da do PCP. Se, por um lado, estas acabariam, em grande medida, por recuperar o ímpeto difamatório e caluniador do estalinismo durante as três décadas posteriores à Revolução de Outubro — e que os partidos comunistas tradicionais haviam, de algum modo, esquecido –, por outro, à personalidade de Trotsky e às correntes trotskistas já não lhes eram associadas as alegadas colaborações com forças anticomunistas e reacionárias (nomeadamente os diferentes fascismos), mas sim a alegada nefasta orientação liberal-democrática que aqueles poderiam dar ao movimento operário. Em todo o caso, o maoísmo foi/é um estalinismo. Apesar dos diferentes matizes maoístas (uns ideologicamente mais próximos do estalinismo, outros mais próximos, por exemplo, do conselhismo), a rejeição de Trotsky e do seu pensamento teórico, político e estético era/é geralmente programática, feita na base do juízo de intenção e um fator de «coerência» política.

A ideia genérica que o maoísmo português teria sobre o fundador do Exército Vermelho é, de algum modo, encontrada no nº 13 do órgão O Comunista[1] em julho 1972. Neste caracteriza-se Trotsky enquanto militante bolchevique de “uma notável instabilidade política” que, estando “frequentemente em contradição com Lenine […] personificou todas as hesitações do movimento revolucionário russo do princípio do século”. O Comunista denunciaria também o facto de Trotsky reconhecer alegadamente o proletariado como “a única classe revolucionária”, não devendo, então, “fazer alianças com outras classes menos progressistas”, como o campesinato, aquando da “tomada do poder” e do “início da construção do socialismo”. Tal orientação iria contra a de Lenine, para quem “a aliança do proletariado com o campesinato era fundamental” no início do novo capítulo da História da Humanidade. Nesse sentido, Lenine e o Partido Bolchevique haviam lutado com êxito “contra esta tendência «esquerdista» e idealista” que deixaria o proletariado “isolado perante a burguesia”. Quanto à teoria da revolução permanente/mundial, “tese tão extremista e «revolucionária»”, não seria “senão um fator de objetivo de desmobilização das massas trabalhadoras que conquistaram o poder”, nomeadamente as da União Soviética (C, nº 13, 1972: 1–6).

De acordo com O Comunista, depois da morte de Lenine, Trotsky, “desprezando o papel do coletivo, […] introduzia mais uma vez nos debates revolucionários a sua ideologia individualista e pequeno-burguesa”. Não verificando a aceitação das suas teses, o próprio “recusou a disciplina partidária e a obediência à maioria e organizou a sua própria fração dissidente”. Expulso do partido e da União Soviética, o autor de Literatura e Revolução “continuou até ao fim da sua vida uma atividade de constante sabotagem da República Soviética […] a coberto, evidentemente de duvidosos apoios de revistas e pseudorrevolucionários dos países capitalistas” (ibidem: 1–6).

Francisco Martins Rodrigues.

Os Núcleos «O Comunista» recordariam também os “planos [de Trotsky] de militarização dos sindicatos”. No final do artigo, concluindo, afirmava-se que Trotsky e aqueles que os seguiam “representam uma contradição antagónica em relação à ideologia do proletariado, não só pelos pontos teóricos defendidos, como pela prática histórica atualmente exercida”. Ainda assim, os Núcleos reconheceriam em Trotsky o “papel importante na Guerra Civil contra os reacionários” (ibidem: 1–6). A este artigo o Combate Operário[2] replicaria com outro intitulado Os Herdeiros de Estaline, composto por extensas citações de Trotsky.

Recuando à década de 1960 são encontradas algumas referências ao alegado trotskismo no seio de outros partidos e grupos maoistas. Em março de 1969, no nº 2 do Estrela Vermelha[3] dá-se conta de uma tal “oportunista Rita” que “no estilo do bom intelectual burguês e trotskista” declarava, no seio do CMLP «Basta de burocracia e autoritarismo!», afirmando igualmente que «a imprensa deve ser feita pela base» e “insurgindo-se contra a disciplina partidária e o centralismo democrático”. Na mesma linha de pensamento, um “comparsa” de Rita, David, também reclamaria a “discussão na base”. Ao “ultra-democratismo” desejado, o Estrela Vermelha, respondia com citações de Mao, o qual afirmava que tal orientação tinha a sua «origem no liberalismo e [no] relaxamento pequeno-burguês». Tais orientações seriam «absolutamente incompatíveis com as tarefas de combate do proletariado» (EV, nº2, 1969: 14–15).

Ainda no mesmo número, o Estrela Vermelha denunciaria “literatura anarquista e trotskista” propagada pelos Cadernos de Circunstância[4] que, alegadamente, teriam “uma conceção «marxista» muito liberal do mundo, uma visão muito eclética, nada «dogmática», e que”, desse modo, influenciaria sobremaneira “alguns jovens idealistas.” Assim, com tais “subprodutos literários”, a classe dominante penetraria na “parte mais destacada da juventude estudantil, incutindo-lhe uma série de preconceitos quanto à revolução e à ditadura do proletariado” (ibidem: 18).

O Estrela Vermelha faria ainda uma última referência a Trotsky, equiparando-o a Cunhal. O órgão afirmaria que “esses «marxistas-leninistas» que negam os pontos fundamentais do marxismo-leninismo (tal como Cunhal, que também se diz «marxista-leninista»), fazem lembrar Trotsky, que, primeiro foi «marxista» lá a seu modo (embora em divergência com Lenine, que era o «monopolista» do marxismo), e depois foi «leninista» a seu modo (embora em divergência com Estaline, «monopolista» do leninismo) (ibidem: 21).

Em fevereiro de 1972, no nº 7 do Unidade Popular[5], viria uma crítica aos “falsos marxistas-leninistas” de O Comunista que haviam sido “expulsos do CMLP por defenderem conceções trotskistas e por pretenderem colocar o CMLP ao serviço dos anticomunistas da LUAR[6] (UP, nº 2, 1972: 2). O mesmo número do Unidade Popular daria ainda a conhecer história de um militante que tinha por intenção “editar um órgão teórico” consequente da criação de “um Comité Comunista”. Ao militante havia sido respondido “que o leninismo […] ensina a necessidade de linha única, a necessidade de unificação absoluta do movimento, e a proibição da existência de frações no seio dum partido comunista” e “que a criação dum outro órgão, além de um desperdício de forças, era uma conceção trotskista” que se traduziria no “abandono da linha única” e na “autorização de frações no seio do partido comunista”. Desconhecendo a partir daí o paradeiro daquele militante, o Partido Comunista Português (marxista-leninista) reconhece no jornal O Bolchevista “a tal publicação teórica”, depois do supradito militante não ver aceite “as suas propostas trotskistas e liquidacionistas” de “a cada Comité Comunista um órgão teórico”. O Unidade Popular associaria então os militantes do grupo O Bolchevista a “todos esses oportunistas, trotskistas renegados” representantes “da burguesia radical, anti-marxistas e anti-leninistas”, depois tal publicação começar uma série de provações ao PCP (m-l) que iam desde a sua apresentação enquanto CMLP até à falsa associação da UEC (m-l) com o grupo/jornal (ibidem: 1–2).

O artigo já citado publicado no nº 13 de julho de 1972 d’O Comunista debruça-se também sobre o trotskismo partidário. Segundo O Comunista, “as inclinações passageiras do versátil e volúvel militante que era Trotsky” afluiriam na “proliferação de uma multidão de grupos todos ditos trotskistas, todos reivindicando a obediência ao «profeta», todos seguindo táticas absolutamente divergentes” e “todos unânimes na defesa da «revolução permanente» e na impossibilidade da construção do socialismo num só país” (C, nº 13, 1972: 3). Tal apreciação não deixaria de se revelar, em grande medida, razoável.

Segundo O Comunista, o trotskismo, que surge no período estudado essencialmente enquanto «concorrente» do maoísmo no movimento estudantil, reaparecera devido “ao desenvolvimento do capitalismo […] ressuscitando as velhas discussões e polémicas com a orientação leninista para a revolução”. Ao trotskismo, “produto direto da nova burguesia dos serviços, do teoricismo e da tecnocracia”, eram também identificadas uma série de posturas políticas: por vezes “tecnicista”, “militarista” e “ultra burocrático”, o trotskismo transformar-se-ia outras vezes em “federalista”, promovendo “a liberdade de discussão e de organização”. Às tendências trotskistas eram igualmente reconhecidos o “profundo desprezo pelas massas”, a “pretensão constantemente dirigista” e “uma retórica fértil”, ainda que simultaneamente “vazia”. Não sendo mais do que o “reflexo de uma pequena burguesia descontente”, a sua atividade no movimento operário significaria a “infiltração da ideologia capitalista” no seio deste (ibidem: 1–3).

Ainda para os Núcleos «O Comunista», a “única razão de existência” dos trotskistas seria denunciarem publicamente “os erros de Estaline”. No entanto, de acordo com a organização maoista, “o direito a discutir os erros do movimento comunista internacional” apenas cabia aos “militantes revolucionários marxistas-leninistas, e não aos sabotadores trotskistas” (ibidem: 3).

Apesar da reduzida influência dos trotskistas assumidos no movimento estudantil, também o Viva a Revolução[7], em março de 1973, dar-lhe ia um lugar naquela edição. Adotando também os ecos da retórica estalinista pré-1953, este equiparia o trotskismo emergente com o PCP, afirmando que “se bem que o lugar de honra dos serviços distintos prestados à burguesia continua de posse dos revisionistas do P«C»P e das suas tenebrosas filiais no M.E.[8] (a chamada UE«C»[9]), outros grupos lhe disputam neste momento o lugar”, nomeadamente “a camarilha trotskista que, do ponto de vista político e ideológico, faz da hostilidade do marxismo leninismo revolucionário a sua razão principal de existência desde as primeiras horas do seu aparecimento e nas suas diversas seitas” (VR, nº 5, 1973: 15).

No entanto, as principais críticas ao trotskismo nasciam das alegadas “características ideológicas”, entre elas, “a negação da necessidade operário-camponesa para o triunfo da Revolução, o escamoteamento do papel da vanguarda do Partido do Proletariado e da aplicação rígida do centralismo democrático” e “a pregação de um internacionalismo oco que desvia o proletariado da sua tarefa de emancipação em relação à burguesia do país”. Segundo o Viva a Revolução, todas estas orientações tinham “por fim retirar ao proletariado os seus aliados, a sua organização de classe e a sua estratégia revolucionária”. Este grupo maoista criticaria também o trotskismo por este, alegadamente, se afastar dos problemas dos estudantes. Para o primeiro “a discussão política dos problemas da Escola” deveria ser “para os estudantes um escalão necessário da discussão política dos problemas da Sociedade”. Segundo aqueles, “a negação do sindicalismo estudantil” objetivaria “o campo para a negação burguesa do carácter de massas da luta estudantil revolucionária”. A orientação trotskista para o movimento estudantil revelar-se-ia, então, “reacionária” (ibidem: 15–16).

Ainda de acordo com o grupo, uma parte do programa do trotskismo constituía-se pela “cisão do movimento revolucionário da classe operária”. Nesse sentido, “as teses idealistas e reacionárias dos trotskistas sobre «as castas burocráticas» nos países revisionistas são o melhor apoio destes para disfarçar a verdadeira luta de classes que se trava nestes países: a luta entre o proletariado despojado de poder e a nova burguesia de Estado que neles iniciou o processo de restauração do capitalismo”. Mais adiante, afirmar-se-ia ainda que, querendo “desintegrar e dividir as forças motrizes do processo revolucionário”, os trotskistas “negam a enorme importância das lutas de libertação nacional e pretendem separá-las do conjunto da Revolução Mundial Proletária”103 (ibidem: 15–16).

Em suma “as características ideológicas” do trotskismo acabariam por levá-lo à “prática grupuscular de alheamento das massas e do seu nível de consciência política”, ao “desprezo pela intervenção a nível sindical”, ao lançamento da “confusão” nos “setores de vanguarda” e, finalmente, à transformação daqueles “num punhado de sabotadores ao serviço da classe dominante”. Assim, tendo em conta que “hoje como no passado, o trotskismo faz a Revolução em palavras e sabota o movimento revolucionário na prática”, haveria que tomar precauções face “às possibilidades de confusão que possam lançar no movimento e às suas tentativas permanentes de sabotagem das lutas”. O Viva a Revolução terminaria com um objetivo significativamente expresso em maiúsculas: “FORA COM OS TRAIDORES TROTSKISTAS E COM TODOS OS OPORTUNITAS!” (ibidem: 14–16).

Também o Servir o Povo[10]se referiria ao suposto trotskismo de outras organizações, detetando-o, aliás, nas mais insuspeitas. Neste caso, o alvo seria o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP) — alegado aderente da corrente “oportunista”, ou, por outras palavras, do “trotskismo”. Tal acusação teria por base as suas “teorias trotskistas”, nomeadamente “a de um partido de frações” e “a da revolução socialista sem etapas”. Continuando a associação do MRPP ao trotskismo e às suas alegadas “formas radicais de luta”, a União dos Estudantes Comunistas (marxista-leninista) afirmaria que “não querendo educar revolucionariamente as massas, os trotskistas pretendem transformar as organizações de massas em organizações de minorias para aí poderem levar a cabo a sua luta política”. Prosseguindo “com a sua teoria do «poder duplo», [os trotskistas] pretendem transformar as organizações de tipo inferior (cooperativas, sindicatos, etc.) em instrumentos de «poder operário» ou do «poder estudantil» que estabelecerão o «controle operário das fábricas» (L. Trotsky), ou o «controle dos estudantes sobre o ensino»”. Desprezando as massas, o MRPP atuaria cada vez mais sob “conceções anarco-trotskistas”, com a intenção de conduzir o movimento estudantil “a «ousadas» aventuras”. Nesse sentido, o partido de Arnaldo Matos, “abraçando conceções declaradamente trotskistas”, tinha como objetivo “isolar os estudantes mais combativos convencendo-os que a luta verdadeiramente revolucionária é aquela que nas suas escolas desenvolvem «sabotando» o ensino da burguesia e «impondo» o ensino do povo” (SP, nº 10, 1972: 4).

O desconhecimento político combinado com alguma cegueira ideológica também levaria aquele órgão a equiparar o trotskismo à orientação do PCP adotada a partir do VI Congresso, que tivera lugar em 1965, afirmando que a teoria do «duplo poder» “em pouco ou nada se distingue da conceção revisionista da «transição pacífica para o socialismo»”. (ibidem: 4–5).

De espiões ao serviço dos diversos fascismos a anarquistas, passando por radicais pequeno-burgueses, as organizações portuguesas de matriz estalinista-maoista utilizariam o mesmo vocabulário que o seu patre russo para classificar os trotskistas portugueses ou, simplesmente, para se denegrir entre si. Não obstante, verifica-se uma certa evolução: no período final do Estado Novo, o termo trotskismo deixaria de ser associado, por exemplo, à colaboração com os fascismos, passando a adquirir muitas vezes um sentido democrático, liberal-libertário e (até) versátil, mesmo que esses adjetivos fossem olhados pejorativamente. O mesmo se passaria para com as organizações trotskistas propriamente ditas. Sobre estas versará o próximo artigo da série Trotsky e o Trotskismo em Portugal.

[1] Órgão associado aos Núcleos «O Comunista».

[2] Órgão da Liga Comunista francesa. Este estaria sob a direção de Fernando Baptista, Cândido de Azevedo e Ferreira Fernandes.

[3] Órgão teórico do Comité Marxista-Leninista Português. O seu principal dirigente seria Francisco Martins Rodrigues.

[4] Segundo Pacheco Pereira, “a revista mais influente no plano político-intelectual publicada na emigração”. Se bem que não pretendesse ser uma publicação excessivamente ideológica ou propagandística, no período posterior ao Maio de 68 seria influenciada por organizações como a Internacional Situacionista, o Movimento 22 de Março e grupos próximos do luxemburguismo e trotskismo. (Pereira, 2013: 222–225).

[5] Órgão central do PCP (m-l).

[6] Liga de Unidade e Ação Revolucionária.

[7] Órgão do Comité Revolucionário de Estudantes Comunistas

[8] Movimento Estudantil.

[9] União dos Estudantes Comunistas.

[10] Órgão da União dos Estudantes Comunistas (marxista-leninista).

Bibliografia

CARDINA, Miguel (2011), Margem de Certa Maneira. O maoismo em Portugal. 1964–1974, Lisboa, Tinta-da-China.

PEREIRA, José Pacheco (2013), As Armas de Papel, Lisboa, Círculo de Leitores.

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