O PCP e o «Judas Trotsky»: 1920–1974

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10 min readJul 17, 2017

João Moreira

Pintura a óleo de Leon Trotsky. Autor desconhecido.

Este artigo insere-se na série Trotsky e o Trotskismo em Portugal. O segundo artigo encontra-se disponível aqui.

Segundo uma polémica afirmação do historiador britânico Eric Hobsbawm, a “importância [política] de Trotsky” à data da sua morte “era insignificante” (Hobsbawm, 1996: 82). A leitura de Hobsbawm é «suspeita» e perigosa, pois, para além de Hobsbawm ter sido um confesso militante do Partido Comunista da Grã-Bretanha, Trotsky era à época uma figura política de renome mundial, embora sem um papel político na URSS. Ainda assim, no caso da tese do autor de A Era dos Extremos estar correta, Hobsbawm esquece-se de dizer porquê. Em oposição, Osvaldo Coggiola, historiador argentino, lembra a influência crescente do revolucionário ucraniano “entre os opositores anti-estalinistas” durante a década de 1930 — ainda que a maioria se encontrasse espalhada pelos campos do Gulag –, o assassinato de Rudolf Klement[1] aquando do congresso de fundação da Quarta Internacional, a extrema dificuldade do revolucionário russo em encontrar um país que lhe concedesse exílio[2], a liquidação de trotskistas a nível mundial — antes ainda da II Guerra Mundial[3] –, a preocupação demonstrada pelo embaixador francês na Alemanha, Robert Coulondre, a Hitler da possível vitória de Trotsky na II Guerra Mundial que se adivinhava [4] e, finalmente, as 300 mil pessoas presentes no funeral, que duraria cinco dias, do companheiro de Lenine, na Cidade do México (Coggiola, 1999: 106–109). Coggiola recorda ainda as palavras de Pavel Sudoplatov, diretor dos serviços secretos soviéticos e responsável máximo, depois de Estaline, pelo assassinato do autor de A Revolução Traída. Segundo Sudoplatov, a ação política de Trotsky “confundiu” e “debilitou” a “posição” de Estaline ao longo de toda a década de 1930, em especial “na Europa Ocidental e na Alemanha”, através dos “seus esforços para cindir” e, mais tarde, “controlar o movimento comunista mundial” (ibidem: 111).

Mesmo se Hobsbawm estivesse correto, como explicar a preocupação de Estaline em decretar, no próprio mês do assassinato, “um novo regulamento militar […] destinado a substituir o antigo juramento internacionalista do Exército Vermelho” escrito pelo fundador deste? O legado internacionalista de Trotsky (e da própria Revolução Russa) também teria de ser liquidado. O Exército Vermelho não deveria ser um “instrumento de expansão da revolução” mas sim “um instrumento de defesa nacional” (Marie, 2004: 467–468). Como se verá adiante, dois anos depois, a própria Internacional Comunista (IC) seria dissolvida. Hobsbawm estava de facto equivocado: à data do seu assassinato, Trotsky encontrar-se-ia “no olho do furacão que arrasaria o mundo” (Coggiola, 1999: 137).

Gregory Zinoviev.

Ao que tudo indica, o trotskismo, enquanto movimento político organizado, surge em Portugal no início da década de 1970. Não obstante, no período de plena ascensão e vitória do estalinismo (1930–1950) existiriam alguns militantes próximos das propostas de Trotsky no seio do PCP. Essa tese é, de algum modo, confirmada por Pedro Rocha [5] que afirma que na passagem da década de 1920 para a década de 1930, “um tal Nunes”, depois de ficar à frente do quinzenário O Proletário[6], “aproximou-se, então, de alguns filiados falando-lhes de trotskismo, tentando provocar uma cisão, mas sem êxito”. Nas suas memórias, Rocha crê que esta havia sido “a primeira tentativa de criar uma fração trotskista em Portugal”.[7] Ainda segundo aquele militante do PCP, Nunes seria expulso passado algum tempo (Rocha, 1991: 14–15).

Pedro Rocha assegura também que mais tarde, “dada a atualidade do assunto [8], foi preparada uma reunião de militantes em que Pável[9] falou sobre o trotskismo”. Tal reunião, “organizada sob o disfarce de um inocente piquenique”, contaria “com mais de duas dezenas de participantes”. Segundo Rocha, “Pável, que havia estudado a questão e preparado conscienciosamente o seu trabalho, pronunciou uma palestra brilhante”, a qual, além de abordar a teoria da revolução permanente, a “atuação política” de Trotsky e a sua posição deste em Brest-Litovsk, refletiria sobre a “personalidade” do antigo líder do Exército Vermelho (ibidem: 38). Ainda assim, segundo Pacheco Pereira, este seria um “assunto abstrato para a maioria dos comunistas portugueses”, refletido na “quase ausência de influência política de Trotsky no comunismo português, como, aliás, os relatórios à IC irão sempre repetir” (Pereira, 1999: 85).

Somente alguns anos depois o termo voltou a fazer-se ouvir com alguma frequência no seio do PCP. Durante a batalha de 1940–1041 entre «franguistas» e «reorganizadores», o termo trotskismo, “pecado mortal em plena era estalinista”, foi “a acusação […] mais usada de ambos os lados”. Se os primeiros denunciavam os segundos por estes serem, alegadamente, «esquerdistas» e «trotskistas», os segundos comparavam o homem máximo dos primeiros, Vasco de Carvalho, ao «Judas Trotsky[10]» (ibidem: 73). Devedora dos acontecimentos na URSS e na Internacional Comunista, esta forma de combate político serviria de modelo na generalidade dos combates internos dos partidos de filiação orgânica estalinista.

Logotipo da IV Internacional.

Não se pense, no entanto, que as críticas se resumiam ao alegado trotskismo de alguns militantes. Outros também eram chamados à atenção por publicarem no primeiro número de O Militante “uma transcrição do traidor vendido ao fascismo Zinoviev, esse miserável assassino de Kirov, esse comparsa do bandido internacional Trotsky” (Cunhal, 2007: 256). Também Karl Radek, outro “traidor trotskista” (ibidem: 257) figurava no imenso quadro de infiéis, e do qual apenas escapavam Lenine, Estaline e alguns outros dirigentes do movimento comunista internacional. No âmbito dos Processos de Moscovo, o antigo companheiro de Lenine e Trotsky havia sido “condenado pelos tribunais soviéticos pela sua ação contra-revolucionária e ligações com potências fascistas” (SVI, nº 14, 1943) e executado em 1936. O seu nome não deveria, por isso, voltar a ser referenciado[11].

No rescaldo da batalha entre as duas fações, em maio de 1942, o Temas de Estudo nº1 do PCP salientava a vitória dos vencedores: “Como se dera com o Judas Trotsky e os seus sequazes, aquilo que já não podiam fazer contra o Partido dentro do seu próprio seio, passou a fazer-se fora dele […]. O traidor Trotsky e os seus sequazes organizaram a 4ª Internacional; o traidor Vasco de Carvalho e os seus sequazes organizaram o segundo Partido Comunista Português.” (PCP apud Pereira, 2001: 84). Seria o próprio Álvaro Cunhal a afirmar que o trotskismo, mais do que uma “corrente provocatória”, seria um “bando de assassinos e espiões ao serviço do fascismo e da reação mundial” (Cunhal, 2007: 257).

Note-se ainda que segundo Cândida Ventura[12], a primeira mulher no Comité Central do PCP depois da «reorganização», não fora tarefa “difícil aceitar as acusações de Estaline contra Trotsky, Bukharine e outros companheiros de Lenine” e o facto de estes serem “agentes do nazismo” (Ventura, 2012: 32).

Ainda antes do final do período correspondente à segunda Guerra Mundial, o Avante! afirmaria que somente um “parlador de café ou trotskista disfarçado” (Avante!, VI Série, nº 49, fevereiro 1944: 4) não compreenderia a substituição da Internacional [13] por um hino estritamente nacional na URSS, à semelhança de qualquer outro Estado-nação capitalista. No mesmo número do órgão oficial do PCP seria também celebrado mais um aniversário do Exército Vermelho mas sem qualquer menção ao nome de Leon Trotsky — seu fundador –, tal como havia feito o canal televisivo inglês BBC aquando da comemoração dos 25 anos daquele arsenal, como lembra George Orwell em Sobre a Liberdade de Imprensa — texto inserido na última edição portuguesa d’A Quinta dos Animais (Orwell, 2008).

Álvaro Cunhal.

Seria após um longo interregno, em 1970, que o PCP, pela mão, mais uma vez, de Álvaro Cunhal, voltaria a utilizar o termo trotskismo com alguma regularidade. Este reapareceria agora brevemente em O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista — obra que teria como objetivo principal ser uma “arma de combate para os setores do PCP que, no contexto da sua militância, buscavam reverter o aumento da influência de grupos e de personalidades que à esquerda questionavam as posições políticas e o papel de vanguarda da oposição ao regime assumido pelo partido” (Bebiano-Cardina in Neves, 2013: 79). Utilizando o método preferido de difamação de Estaline, Cunhal, 40 anos após o assassinato do fundador do Exército Vermelho, criticaria as organizações políticas criadas à esquerda do seu partido que, “numa misturada de velharias anarquistas e trotskistas”, desenvolveriam “um emaranhado de confusões e conceitos tipicamente pequeno-burgueses” tendo em vista a definição do «seu» socialismo. Segundo o antigo secretário-geral do PCP, estes grupos teriam como “mestres” os “trânsfugas e oportunistas de direita ou de «esquerda» que, noutros países, enveredam pelo anti-sovietismo e o anticomunismo”, entre eles, Herbert Marcuse[14], Daniel Cohn-Bendit[15], Jean-Paul Sartre[16], Rossana Rossanda [17], Roger Garaudy [18] e Ernest Fischer [19], alegadamente “heróis ideológicos do radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista” (Cunhal, 2013: 521). Porém, em sentido contrário, em A Situação Política e as Tarefas Imediatas do Partido, Cunhal condenaria a “demasiada politização” aquando de um colóquio sobre Marcuse (ibidem: 333). Todavia, era exatamente esse o caldo político-filosófico em que a parte mais significativa do trotskismo português mergulharia.

Por fim, para além da crítica de Cunhal aos alegados “heróis ideológicos do radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, refira-se também a caracterização que Vital Moreira[20]fazia de um desses ideólogos: mais uma vez Herbert Marcuse. Segundo o antigo militante comunista, no filósofo de Eros e Civilização, “pouco ou nada existe de genuinamente marxista”. Pelo contrário, naquele apenas “aflora a utopia pré-marxista”, não ultrapassando o «hegelianismo-de-esquerda» elementar (Moreira, 1973: 18). Já em maio de 1974, o PCP, agora pela mão de José Manuel Jara, continuaria a classificar o “trotskismo” e o maoismo de “ideias pseudo-socialistas” (Jara, 1974: 27).

Sobre a forma como as organizações de matriz maoista utilizavam a figura de Trotsky e os termos trotskismo e trotskista deter-se-á o próximo texto.

[1] Principal organizador do congresso de fundação da Quarta Internacional. Depois de morto, o seu corpo seria lançado ao rio Sena (Coggiola, 1999)

[2] Em 1933, o governo francês conceder-lhe-ia exílio perspetivando uma crise política na URSS que poderia fazer voltar Trotsky ao leme da URSS (Coggiola, 1999).

[3] O assassínio de trotskistas (e anarquistas) durante a Guerra Civil de Espanha seria um caso paradigmático dessa mesma perseguição. Segundo Coggiola, a GPU chegaria a ter uma secção denominada «secção Trotsky» (Coggiola, 2008).

[4] O embaixador francês diria “receio […] que no final da guerra só haja um vencedor: o senhor Trotsky” (Coulondre apud Marie, 2004: 466).

[5] Dirigente do PCP (Rocha, 1991: 39).

[6] Órgão do PCP.

[7] A estalinização do PCP ainda não estava consumada. Esta tese é suportada pelas afirmações de Pedro Rocha que refere a leitura de autores Alexandra Kollontai, feminista, dirigente da Oposição Operária no seio do PCUS e Comissária do Povo para o Bem-estar Social, e Federica Montseny, anarco-feminista.

[8] Em 1928 é editada e publicada uma conferência de cariz altamente conservador de Cunhal Leal com o título de Internacionalismo: Trotsky e Staline.

[9] Pseudónimo de Francisco Paula de Oliveira. Importante dirigente do PCP que acabaria por se renegado por este. Tornar-se-ia um escritor e crítico de arte de renome no México.

[10] A religiosidade estalinista também se faria sentir no PCP.

[11] O nome deste bolchevique e membro da Oposição de Esquerda figurava “numa lista de subscrição” no boletim do Socorro Vermelho Internacional (SVI) — “Teoricamente uma organização não comunista de solidariedade com os presos, mas na verdade uma secção do PCP” (Pereira, 2001: 79).

[12] Delegada do PCP na Checoslováquia aquando da Primavera de Praga. Mais tarde romperia com este.

[13] Música oficial das I, II e III Internacionais e que serviria de hino da URSS até 1944.

[14] Proeminente filósofo e sociólogo associado à Escola de Frankfurt.

[15] Estudante alemão e líder do Movimento 22 de Março em França.

[16] Filósofo e escritor existencialista francês que no final da sua vida se distanciaria do estalinismo.

[17] Militante do Partido Comunista Italiano (PCI). Expulsa deste no final da década de 1960 por fundar o Il Manifesto — jornal comunista mas crítico do PCI e da URSS.

[18] Militante do PCF. Viria a romper com este em 1968.

[19] Militante do Partido Comunista da Áustria. Por se opor à invasão da Checoslováquia em 1968, acabaria por ser expulso.

[20] Antigo militante do PCP.

Fontes e Bibliografia

Publicações

Avante!

Socorro Vermelho Internacional

Temas de Estudo

Bibliografia

BEBIANO, Rui e CARDINA, Miguel (2013), «À volta do radicalismo pequeno-burguês», in Neves, José (Coord.), Álvaro Cunhal — História, Arte e Política, Lisboa, Tinta-da-China.

COGGIOLA, Osvaldo (1999), «O assassinato de Trotsky à luz da história», Revista de História, nº 141, São Paulo, pp. 101–139.

CUNHAL, Álvaro (2007), Obras Escolhidas I (1935–1947), Lisboa, Edições Avante.

CUNHAL, Álvaro (2013), Obras Escolhidas IV (1967–1974), Lisboa, Edições Avante.

HOBSBAWM, Eric (1996), A Era dos Extremos, Lisboa, Presença.

JARA, Manuel João (1974), A Farsa dos Pseudo-radicais em Portugal: estudo político e teórico dos grupos maoistas e trotskistas perante a revolução, Lisboa, Edições Sociais.

MARIE, Jean-Jacques (2004), Estaline, Lisboa, Verbo.

MOREIRA, Vital (1983), “Marcuse sobre a revolução”, Seara Nova, nº 1536.

ORWELL, George (2008), A Quinta dos Animais, Lisboa, Antígona.

PEREIRA, José Pacheco (1999), Álvaro Cunhal — uma biografia política: «Daniel», o Jovem Revolucionário, Lisboa, Temas & Debates.

ROCHA, Pedro (1991), Escrito com Paixão, Lisboa, Caminho.

VENTURA, Cândida (2012), O «Socialismo» Que Eu Vivi, Lisboa, Bizâncio.

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