(III/III) “Neo-feudalismo: o fim do capitalismo?” de Jodi Dean

Ariel Cardeal
7 min readJun 7, 2021

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Iniciei a tradução deste artigo da pesquisadora e professora Jodi Dean, publicado em Maio de 2020 no blog da LA Review of Books.

O texto original está dividido em três partes, e fiz a tradução de forma faseada também. Alguns conceitos usados no artigo que foram emprestados da História e Economia contam com hyperlinks que podem auxiliar a interpretação do texto. Além disso, adicionei em forma de comentário grifado uma nota de tradução sobre a escolha do termo “enfraquecimento dos direitos trabalhistas” para o termo “Labor's defeat” usado pela autora.

A tradução da parte 1 (I/III) você pode encontrar aqui:

A tradução da parte 2(II/III) você pode encontrar aqui:

Parte III/III

Qual o benefício de pensarmos sobre a precariedade do nosso capitalismo presente como algo pós-capitalista, como algo neo-feudal? Para conservadores como Kotkin, a hipótese neo-feudal os ajuda a identificar o que eles querem defender — o "capitalismo de carbono" (lastreado em combustíveis fósseis) e o "estilo de vida americano" — e contra quem eles precisam lutar — no caso, o segmento da elite capitalista que está enriquecendo às custas da classe média, ou seja, os empreendedores verdes e donos das tecnologias de ponta e seus aliados no mercado financeiro. O neo-feudalismo é parte de um diagnóstico feito com o objetivo de ganhar apoio da classe média para uma parte específica da classe capitalista, ou seja, o agro-negócio, o mercado imobiliário e os donos dos combustíveis fósseis.

Para os que estão à esquerda, o neo-feudalismo nos permite entender o conflito político primário que está surgindo a partir do neoliberalismo. O grande confronto hoje não é entre a democracia e o fascismo. Ainda que seja popular entre os liberais, essa definição faz pouco sentido frente ao poder dos oligarcas — dos mercados financeiros, dos magnatas da mídia e do mercado imobiliário, bilionários da tecnologia e dos combustíveis fósseis. Olhar pro nosso presente sob a perspectiva de uma democracia ameaçada pelo avanço do fascismo desvia a atenção do papel fundamental do capitalismo comunicativo, conectado globalmente, ao exacerbar a raiva e o descontentamento populares. Sob a politização à direita está a Economia: redes complexas que produzem desigualdades extremas, onde o vencedor leva tudo ou quase tudo do que é distribuído. A guinada para a direita é uma resposta à intensificação da desigualdade. Quando a esquerda está fraca, ou impedida de expressão política pelas mídias de massa e partidos políticos capitalistas, a raiva popular é expressa por outros no desejo de atacar o sistema. Atualmente, estes outros são a extrema direita. Pensar sob a ótica do neo-feudalismo nos força a confrontar o impacto da desigualdade econômica extrema na sociedade política e nas instituições. Com isso nos deparamos com o fato de que os bilionários estão acumulando trilhões de dólares em ativos e estão se fechando dentro de seus próprios enclaves enquanto milhões se tornam refugiados por causa das mudanças climáticas e centenas de milhões se vêem com suas perspectivas de vida diminuídas, numa luta cada vez mais intensa apenas para sobreviver.

A aposta do neo-feudalismo também aponta para uma mudança nas relações de trabalho. A social-democracia estava baseada numa premissa de compromisso entre o trabalho e o capital. O trabalho organizado, na maioria do Norte Global, entregou uma classe trabalhadora cooperativa em troca de um pedaço de uma boa vida. O enfraquecimento dos direitos trabalhistas e o subsequente desmantelamento do Estado de bem-estar social mostrou de uma vez por todas a falência de uma estratégia que exigia um compromisso com a exploração capitalista. Ainda que alguns socialistas continuem a esperar por um capitalismo mais bondoso e gentil — como se os capitalistas se fossem se render apenas para serem simpáticos, como se eles também não estivessem sujeitos às lógicas do mercado que tornam a recompra de ações mais atrativas do que o investimento na produção. A hipótese neo-feudal nos mostra que qualquer luta laboral baseada na premissa da continuação do capitalismo é inútil. O capitalismo já se transformou em algo pior.

Nas economias dominadas por serviços do Norte Global, a maioria das pessoas trabalha no setor de serviços. Descobriram que seus telefones, bicicletas, carros e casas perderam seu significado como propriedade pessoal e foram transformados em meios de produção ou em meios de gerar renda pelo seu aluguel. Vinculados a plataformas que são de outras pessoas, os itens de consumo e os meios para viver agora são meios para a acumulação dos donos das plataformas. A maioria de nós faz parte de uma sub-classe sem propriedades que apenas pode sobreviver servindo às necessidades daqueles que ganham mais. Um relaório da Secretaria de Estatísticas Trabalhistas dos Estados Unidos aponta que nos próximos 10 anos a ocupação que irá gerar mais empregos será a de auxiliares de cuidados pessoais, não a de trabalhadores da saúde, mas auxiliares que dão banho e limpam as pessoas. A dependência das classes dominantes do vasto setor de serviços — faxineiros, cozinheiros, vendedores, caixas de supermercado, entregadores, funcionários de centros de distribuição, etc — sugere novos pontos de discussão, pontos de fraqueza onde os trabalhadores podem exercer o poder. Greves de enfermeiras, trabalhadores da Amazon e outros, ao bloquear o acesso a serviços essenciais, miram na carência destes serviços pelos mais ricos. Se as lutas pelos direitos trabalhistas durante o capitalismo focaram na produção, no neo-feudalismo elas acontecem na prestação de serviços.

Afinal, o neo-feudalismo é uma ideia que nos permite identificar a fraqueza primária da esquerda contemporânea: as ideias de esquerda mais comuns são as que mais afirmam do que contestam o neo-feudalismo. O localismo encoraja a divisão e repartição. As abordagens de tecnologia e plataforma reforçam a hierarquia e a desigualdade. O municipalismo reafirma a divisão de zonas rurais e urbanas associada à periferização. A ênfase na subsistência e na sobrevivência procede como se as economias camponesas fossem plausíveis não apenas para aquela metade do planeta que vive nas cidade (incluindo 82% dos norte-americanos e 74% dos europeus) mas também para os milhões que são deslocados pelas mudanças climáticas, guerras, grilagem e roubo de terras. Muitos daqueles que habitam as periferias enfrentam condições políticas, culturais, econômicas e climáticas que tornam quase impossível que eles possam viver por meio do trabalho agrícola. A "Renda Básica Universal" é uma abordagem sobrevivencialista insustentável, prometendo apenas o suficiente para manter os que vivem nas periferias e nem alcança o suficiente para os que moram nas cidades para pagar seus aluguéis. O catastrofismo se torna aquela negatividade deprimente que desacredita a esperança e o esforço, como se os próximos 100 anos não importassem.

Juntas, estas ideias da esquerda atual sugerem um futuro de pequenos grupos engajados na agricultura de subsistência e na produção de (coisas como) queijo artesanal, talvez nas bordas das cidades onde enclaves de sobrevivencialistas e pilotos de drone e profissionais da tecnologia fazem experimentos com jardins urbanos. Estes agrupamentos reproduzem suas vidas em comum, ainda que os bens comuns que eles reproduzam sejam necessariamente pequenos, locais, e de alguma forma exclusivos e para uma elite, exclusivos na medida que sua população seja necessariamente limitada, e de elite porque estas aspirações são culturalmente específicas, ao invés de algo extremamente difundido.

Distantes de uma visão ancorada na emancipação de uma classe trabalhadora multinacional engajada numa variedade diversa de trabalhos remunerados, pouco remunerados ou não-remunerados, as recapitulações populares da esquerda no neo-feudalismo não conseguem enxergar uma classe trabalhadora. Quando o trabalho é imaginado — e alguns na esquerda pensam que nós deveríamos adotar um "imaginário pós-trabalho" — parece uma agricultura romântica sem riscos ou trabalho tecnológico, "trabalho imaterial". Desde já, as revelações sobre o trabalho braçal feito nos call centers, para não mencionar o traumático trabalho de monitorar sites como Facebook para filtrar conteúdos ilícitos e perturbadores, mostram que é inegável que a ideia de "trabalho imaterial" é inadequada. Deve ser evidente que o imaginário pós-trabalho também ignora a produção e manutenção da infra-estrutura, além dos diversos tipos de trabalho necessários para a reprodução social e da estrutura do Estado em paralelo.

A hipótese neo-feudal então nos permite enxergar tanto o apelo como a fraqueza das ideias populares da esquerda. Elas são apeladoras porque ressoam com o senso comum. Elas são fracas porque este senso comum é uma expressão de tendências do neo-feudalismo.

Assim como as relações feudais persistiram durante o capitalismo, também as relações capitalistas de produção e a exploração continuam durante o neo-feudalismo. A diferença é que as dimensões não capitalistas da produção — a expropriação, a dominação e a força — se tornam ainda mais fortes a tal ponto que não faz mais sentido presumir que há pessoas e instituições que sejam livres e iguais se encontrando no mercado de trabalho, mesmo como uma narrativa fictícia que sirva para nos direcionar. Isto significa que o arrendamento e a dívida tem tanto ou mais peso na acumulação do que o lucro, e que o trabalho excede cada vez mais a relação salarial. O que acontece quando o capitalismo é global? Ele se volta a si mesmo, envolvendo, gerando, e minando aspectos da vida humana por meio das redes digitais e a mídia de massa personalizada. Esta auto-canibalização produz novos senhores feudais e novos servos, vastas fortunas e extrema desigualdade, e as soberanias repartidas asseguram esta desigualdade enquanto a maioria das pessoas perambulam desamparadas nos subúrbios e nas periferias.

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