programação suspensa no ar ✺ semana 6

O outono e o vírus

por Clair Aparecida

Casa do Povo
Programação suspensa no ar

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20 de março de 2020, eis que inicia o outono. Caracterizado pela transição de estações distintas. Folhas espalhadas pelo chão tendem a deixar a cidade mais bonita. Temperaturas elevadas no período da tarde, mas que diminuem gradativamente com o chegar do anoitecer. Jornalistas alertam: “Levem o casaco antes de sair de casa. O tempo é traiçoeiro!”. A incidência dos ventos tende a aumentar nessa época do ano. Para algumas pessoas a ventania chega a provocar arrepios na pele, mas eis que com a chegada da COVID-19 tal arrepio ultrapassa a derme e epiderme, chegando a atingir a alma.

Arrepios causados pelo medo, insegurança e impotência diante de um vírus que pode atingir os seus pulmões e te levar à morte devido à falta de ar. Crianças, adultos e idosos, começam a lidar cotidianamente com a possibilidade concreta de ter que pensar sobre a própria morte. O momento é de incertezas. Autoridades alertam: “Fiquem em casa! Lavem as mãos com água e sabão. Utilizem álcool em gel. Usem máscara. Evitem aglomerações”. Importante orientação, mas difícil tarefa quando o/a atendido/a que está na sua frente é uma pessoa em situação de rua.

Pergunto-me, ou melhor, me contesto: considerando que esses corpos têm raça/etnia, poderíamos chamar esses grandes centros de acolhida de senzalas modernas? Quais condições de sobrevivência o Estado oferta para lidar com os corpos indesejados dentro dessa estrutura capitalista? Se as pessoas em situação de rua não têm muitas vezes água potável para beber, teriam agora um lugar para lavar as suas mãos? Será que passarão a ter um espaço digno para dormir que não se caracterize por um galpãozão amontoado de beliches ou o espaçamento entre camas nos Centros de Acolhida é somente em época de pandemia? Qual será a estrutura dos novos equipamentos construídos pelo Estado para os casos suspeitos de COVID-19 — será aqueles feitos de contêiner, ou será uma estrutura de alvenaria construída debaixo de um viaduto qualquer localizado no centro da cidade? Ampliar a oferta de refeição no Bom Prato ajuda, mas como ficará quem não dispõe de 2,50 reais para fazer as 3 refeições diárias? Será ampliada a distribuição de refeições nos equipamentos já existentes para este segmento populacional? Como se dará via portas-abertas o cuidado de saúde mental da população em situação de rua para os casos que não se enquadram em “estado de crise”?

Diversas são as perguntas. Poucas são as respostas. Mas uma consideração se faz importante neste momento: população em situação de rua existe antes, durante e depois da COVID-19! Para alguns, talvez, passasse despercebida como parte da paisagem urbana, para outros, talvez fosse vista como se estivesse num zoológico. O fato é: estamos diante uma pandemia e de ano de eleição: Estejamos atentos para que os nossos discursos não venham estigmatizar ainda mais a população em situação de rua e para que não estimulemos a construção de manicômios modernos pautados no falso discurso de cuidado à saúde.

Há quem diga que o momento pede calma. Gostaria que essas inquietações e indagações não passassem de um humor melancólico embalado pelo clima de outono. Confesso: tenho mais medo da morte em vida, do que da própria morte em si…

o texto é de Clair Aparecida*, psicóloga e ativista na região da Luz, Bom Retiro e Campos Elísios. figura central no bairro, Clair acompanha há 10 anos o trabalho de ONGs e coletivos ligados à populações vulneráveis da região, como É de lei e o Coletivo tem sentimento, iniciativas que participam da nossa campanha de crowdfunding. as perguntas de Clair ecoam as perguntas de Bruno Latour, que publicamos aqui na semana #3 da programação suspensa no ar. enquanto Latour trazia uma perspectiva global para se pensar o futuro, Clair traz notícias do que é radicalmente local, imediato e urgente do presente que habitamos.

*Clair Aparecida, mulher cis, negra, periférica, psicóloga, pós graduada em Direitos Humanos e Lutas Sociais (UNIFESP) e Atenção Básica à Saúde (FCMSCSP). Trabalha há 10 anos com população em situação de rua. Atualmente trabalha como psicóloga no campo da saúde mental com este segmento populacional no território da Luz, vulgo Cracolândia.

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A Casa do Povo é um centro cultural que revisita e reinventa as noções de cultura, comunidade e memória. www.casadopovo.org.br