O Delicado Equilíbrio da Escrita

Mente o escritor que diz escrever apenas para si, mas qual seria o propósito de escrever se sacrificássemos toda a nossa autenticidade?

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
6 min readJul 5, 2020

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Embora eu só tenha começado esse blog em meados do ano passado (abandonei a ideia por um período, e depois a retomei no início deste ano), não é de hoje que escrevo. Eu gosto de escrever, é o mais próximo que tenho de um hobby. Sempre fui uma pessoa mais ou menos imaginativa, e colocar no papel as ideias tira um pouco da ansiedade que é ter que lidar com elas girando pela minha cabeça. Pela minha inconstância no ofício, reluto em me descrever como escritora, mas cá estou eu, falando justamente do processo de criação. Para as finalidades deste texto, então, digamos que sou uma escritora.

Por vezes, o rótulo de aspirante a escritora seria mais justo para me descrever. Havia uma época em que eu amava falar da minha escrita, ainda que escrevesse muito pouco. Houve também a época em que escrevi umas novecentas páginas em pouco menos de um ano, e acabei passando anos sem revisar o texto. A escrita é inconstante, mas jamais a paixão, que está sempre aqui comigo. Portanto, eu falo de escrita com quem está disposto a ouvir, e as únicas pessoas dispostas a ouvir falar das angústias e do processo criativo de um escritor são outros escritores. Hoje, então, me dirijo especialmente àqueles que conhecem bem o dilema aqui descrito, mas mesmo quem não escreve nada além do necessário deve ter vivenciado em seu ofício alguma pergunta semelhante a esta: você escreve para quem?

Perdi as contas de quantas vezes eu contei a meus amigos esta mentira, e de quantas vezes eu tive de ouví-los contando-a para mim:

Eu escrevo para mim.

Tão comum é essa mentira que na época em que cogitei publicar meu romance, nenhum dos textos que li sobre o mercado editorial deixava de mencionar a sina dos autores egocêntricos. Você provavelmente já conheceu um criador egocêntrico, e, se já conversou com escritores, certamente já conheceu um escritor egocêntrico. O personagem de quem falo aqui é, normalmente, um jovem extremamente irritante, com uma tendência gigantesca a ser mimado. Ele divulga o que escreve para Deus e para o mundo, ainda que insista que escreve para si. Essa insistência vem especialmente quando ele escuta uma crítica. Por mais sensata e amável que seja a tal crítica, o ego de nosso protagonista está sempre vacinado contra a mudança, e a resposta a qualquer sugestão será sempre:

Não, você não entendeu, eu escrevo para mim, não para os outros, e eu gosto do que escrevi do jeito que está.

É importante, porém, fazer a esses gênios a pergunta de um milhão de dólares: se você escreve para você, por que me pediu para ler esse seu texto?

Eu lembro do quanto esse tipo de pessoa me irritava quando eu tinha entre treze e quinze anos, e tinha a mais absoluta certeza de que estava acima daqueles meros mortais. Obviamente, eu não estava tão acima deles quanto pensava, e, também obviamente, era idiotice me preocupar tanto com a estupidez alheia. Todo egocêntrico acaba levando um baque em algum ponto da vida, quase nenhum daqueles que eu tanto julgava naquela época se manteve a salvo. Se tornaram todos adultos — ou adultinhos — funcionais.

Uma hora, todos percebem que boa parte da motivação para escrever — ou criar qualquer coisa, na realidade — está naquele desejo que todos têm: de se sentir importante de alguma maneira. Se refletirmos cuidadosamente, essa também é uma motivação egocêntrica, mas pouco importa a motivação quando observamos os resultados daqueles que obtêm sucesso em sua busca por importância. Não há outra maneira: aquele que quer receber qualquer tipo de reconhecimento precisa entregar ao outro algo que lhe interesse. O adolescente egocêntrico que “escreve para si” eventualmente começa a aceitar feedback, ou então passa a verdadeiramente escrever para si e, pois, a deixar guardadas suas brilhantes obras.

Só que definir assim o processo criativo é uma simplificação excessiva, e aqueles que continuarão escrevendo após o fim da adolescência conhecem bem a eterna tentativa de balancear autenticidade e potencial reconhecimento. Há textos que são essencialmente comerciais: uma newsletter, por exemplo, pode reduzir sua autenticidade ao mínimo necessário para se diferenciar em meio à concorrência, pois sua finalidade essencial é promover vendas. Por outro lado, não há por que aperfeiçoar os textos de um diário, já que eles provavelmente serão lidos apenas por seu autor, e quiçá por um terapeuta. Porém, há, como sempre, uma zona cinza, e ela parece englobar a maioria esmagadora dos textos: para quem se escreve um livro? Um texto de um blog? Um artigo de opinião? Uma crônica? A lista pode continuar eternamente.

Decerto está mentindo o egocêntrico que jura escrever para si, mas qual seria o propósito em escrever exclusivamente para os outros? Desconheço escritor que seja desprendido o bastante para livrar-se de qualquer resquício de autenticidade. E, certo, mesmo nos textos mais técnicos pode-se encontrar traços de estilo e autoria, porém não há na escrita técnica a mesma catarse da escrita criativa. Não há na reportagem o mesmo prazer — e a mesma dor — da crônica. Assim, ficamos eternamente nos equilibrando entre oferecer ao leitor o que ele deseja e oferecer a nossas mentes o conforto da autoexpressão.

E talvez aqui esteja a chave para compreender por que esse questionamento pode gerar angústia a qualquer escritor: escrever, afinal, é uma forma de conforto. Por que tantos escritores são procrastinadores? Por que tantos de nós temos uma lista de histórias que juramos que ainda contaremos ao mundo? Ora, o preço de ter um acúmulo de ideias é o desconforto. Pense nas ideias como aquelas trocentas quinquilharias que se acumularam em sua gaveta: você não prestou atenção no processo, e apenas se deu conta da bagunça quando não conseguiu achar um documento em meio à papelada. O caos em que vivemos nos incomoda. Precisamos de um modo de tirar dos ombros aquele peso que pode ser o pensamento. E, na maioria das vezes, gostamos de nós mesmos — mesmo os mais deprimidos entre nós, e Deus sabe quantos de nós estão deprimidos — o suficiente para gostar daquele produto tão bruto de nossas mentes.

Ver aquela folha, outrora branca, preenchida por nossas ideias é reconfortante, e quase motivo de orgulho. Sentimos pelo texto um amor talvez paternal, como se ele carregasse nossos genes. E talvez aquele texto engessado, escrito sem preocupação alguma com os pensamentos e sentimentos que nos são caros, carregue menos de nós. Não é que sejamos incapazes de escrevê-lo — ou sequer de amá-lo —, porém ele jamais chegará aos pés daquela crônica que carrega nossa marca, do conto sem nexo que inclui as partes mais divertidas de nossa imaginação, de tanta coisa que escrevemos em serventia própria.

No fim do dia, contudo, todos precisamos encontrar nosso ponto de equilíbrio, e não conheço escritor que se venda a ponto de colocar no papel algo que viole as mais íntimas de suas crenças. Por outro lado, não conheço escritor que não se seduza pela leitura alheia — seja pela necessidade do aplauso, para conseguir monetizar seu conteúdo, ou mesmo pelo inestimável prazer de ter a certeza de que o conteúdo produzido pôde ser útil a alguém.

E não é também como se o leitor fosse autocentrado a ponto de rejeitar a autoria — pelo contrário! As pessoas gostam de sentir que estão diante de um produto sincero, e podem até mesmo sentir-se enganadas caso descubram que seu autor favorito — tão genuíno! — estava, na realidade, apenas tentando produzir aos montes algo que vendesse.

Quem escreve, querendo ou não, está constantemente se equilibrando em várias cordas bambas: estou sendo autêntico ou apenas egocêntrico? Estou sendo sofisticado ou prolixo? Estou escrevendo para mim ou para você? As linhas são sempre tênues. No fim, o equilíbrio acaba surgindo naturalmente, haja vista que o processo criativo sempre será tomado por paixões em alguns momentos, e o bom autor saberá quais delas devem ser cultivadas e quais precisam ser — mesmo que temporariamente — subjugadas.

Obrigada por ler este texto! Você que é escritor(a), me diga com sinceridade: você escreve para quem? Como você navega por essa linha tênue entre a autenticidade e o egocentrismo? Deixe aqui nos comentários! E não se esqueça de deixar seus aplausos (de 1 a 50) e de me seguir nas redes sociais se tiver gostado :)

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